Por Francisco José dos Santos Braga
I. INTRODUÇÃO
Entre diferentes visões acerca dos Anthestéria, festas dionisíacas que serão tratadas aqui, W. Verrall (Journal of Hellenic Studies, xx., 1900, p. 115), pela primeira vez, explicou o nome diferentemente, como uma festa de revocação das almas dos mortos com o objetivo de trazê-las de volta ao mundo. Durante os festejos atenienses dos Anthestéria, segundo Verall, os espíritos dos mortos eram trazidos à terra dos vivos.
Também em Roma, acreditava-se que uma pedra cobria uma caverna (mundus Cereris ou mundus cerialis) que se supunha ser uma entrada para o mundo subterrâneo no Palatino. Esse portal para o submundo era obstruído por uma pedra, lapis manalis, que permitia aos Manes se juntarem aos vivos.
Plutarco, no capítulo em que descreve a fundação de Roma ¹, diz que o "mundus", ou marco zero da cidade, tinha origem etrusca. As primícias de todas as espécies eram lançadas na caverna. Também sabe-se que cada novo fundador trazia um pouco de terra de seu próprio país e lançava-o na caverna. Assim fazendo, Plutarco ligava o "mundus" romano ao centro religioso da cidade de Roma, umbilicus urbis Romae. Esse autor ainda coloca a caverna no Comitium ao invés do Palatino, mas observa que a palavra "mundus" possui identidade com o que entendemos por mundo.
Essa pedra era cerimonialmente aberta três vezes por ano, durante as quais os espíritos bem aventurados ou Manes podiam por-se em contato com os vivos. Os três dias em que o mundus era aberto eram os seguintes: 24 de agosto, 5 de outubro e 8 de novembro. Frutos da colheita eram oferecidos aos mortos nessa ocasião. Macrobius, citando Varro, diz desses dias que
Mundus cum patet, deorum tristium atque inferum quasi ianua patet.
Quando o mundo está aberto, é como se uma porta fica aberta para os deuses desgraçados do mundo ínfero. (Cf. Mundus patet)
Neste trabalho apresentarei duas abordagens que se complementam para as festas conhecidas por Anthestéria, a saber, primeiro a minha tradução de um texto que está fazendo muito sucesso na Grécia intitulado "AS RAÍZES DO CARNAVAL NA GRÉCIA ANTIGA" e depois, observações pertinentes a esses festejos dionisíacos, por parte do saudoso Prof. Junito de Souza Brandão (1924-1995), catedrático da cadeira de Mitologia Grega e Latina na PUC-RJ, autoridade no assunto e um dos maiores expoentes em mitologia no mundo.
Também a próxima seção, intitulada "Dioniso, deus do êxtase e do entusiasmo", reproduz o pensamento de Brandão, esclarecendo porque um deus, que faz seu aparecimento tão tardio na pólis ateniense (século VI a.C.), de certa forma contrapondo-se aos deuses do Olimpo, teve uma marcante influência sobre todo o mundo, bastando consultar o verbete "Carnival" na Wikipedia para verificar sua popularidade universal.
II. DIONISO, deus do êxtase e do entusiasmo
Também a próxima seção, intitulada "Dioniso, deus do êxtase e do entusiasmo", reproduz o pensamento de Brandão, esclarecendo porque um deus, que faz seu aparecimento tão tardio na pólis ateniense (século VI a.C.), de certa forma contrapondo-se aos deuses do Olimpo, teve uma marcante influência sobre todo o mundo, bastando consultar o verbete "Carnival" na Wikipedia para verificar sua popularidade universal.
II. DIONISO, deus do êxtase e do entusiasmo
BRANDÃO (1991, vol. I, 285-292), no verbete "Dioniso", faz as seguintes observações:
"Dioniso é um deus "novo" na pólis. Deus dos campônios, veio possivelmente da Trácia. Aparece muito pouco nos poemas homéricos (poemas da elite) séc. IX-VIII a.C., onde não se lhe dá a menor importância: Ilíada, VI, 132, XIV, 325; Odisséia, XI, 325, XXIV, 74, mas o deus já estava na Hélade desde pelo menos o séc. XIV a.C., como demonstram as tábulas micênicas de Pilos. (...)
Dioniso, também chamado Baco, tornou-se, a partir do séc. VI a.C., um deus essencialmente da videira, do vinho, do delírio místico e do teatro. Seu mito é complexo, porque é formado de elementos por vezes díspares, provindos de locais diversos, sobretudo da Ásia Menor. O todo apresenta-se, não raro, como uma soma de episódios mal alinhavados em torno de um núcleo central. (...)
Nascido da coxa de Zeus, Dioniso se tornou tão poderoso, que desceu até o fundo do Hades para de lá arrancar sua mãe Sêmele, conferir-lhe a imortalidade (o que mostra ter sido Sêmele um dos avatares da deusa terra), mudar-lhe o nome para Thyone e com ela escalar o Olimpo.
Viu-se que o filho de Zeus foi levado para o monte Nisa e entregue aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros. Pois bem, lá, em sombria gruta, cercada de frondosa vegetação e em cujas paredes se entrelaçavam galhos de viçosas vides, donde pendiam maduros cachos de uva, vivia feliz o jovem deus. Certa vez, este colheu alguns desses cachos, espremendo-lhes as frutinhas em taças de ouro e bebeu o suco em companhia de sua corte. Todos ficaram então conhecendo o novo néctar: o vinho acabava de nascer. Bebendo-o repetidas vezes, Sátiros, Ninfas e o próprio filho de Sêmele começaram a dançar vertiginosamente ao som dos címbalos, tendo a Dioniso por centro. Embriagados do delírio báquico, todos caíram por terra semidesfalecidos.
Historicamente, por ocasião da vindima, celebrava-se, a cada ano, em Atenas e por toda a Ática, a festa do vinho novo, em que os participantes, como outrora os companheiros de Baco, se embriagavam e começavam a cantar e a dançar freneticamente, à luz dos archotes e ao som dos címbalos, até caírem desfalecidos. Esse desfalecimento se devia não só ao novo néctar, mas ao fato de os "devotos do vinho" e do deus se embriagarem de êxtase e de entusiasmo, cujo sentido bem como cujas consequências se podem ver em Mitologia Grega, Vol. II, p. 123 sqq. e no verbete Antestérias. (...)
Já como deus do Olimpo foi que Dioniso raptou Ariadne em Naxos e tomou parte ao lado de Zeus e de outros imortais na luta contra os Gigantes, tendo inclusive matado a Êurito com um golpe de tirso. Deus das orgias, do êxtase e do entusiasmo e deus da liberação, Dioniso era festejado com procissões ruidosas, que, na realidade, nunca deixaram de existir, mas que acabaram também por dar origem ao ditirambo, ao drama satírico, à tragédia e à comédia.
Com a helenização de Roma, a partir do séc. III a.C., os mistérios dionisíacos com a sua licenciosidade e características orgiásticas, aliás mal compreendidas e interpretadas pelos descendentes de Rômulo, penetraram particularmente na Itália central e meridional. O Senado romano, por um decreto do ano 186 a.C. (Senatus consultum de Bacchanalibus), "também por motivos políticos", proibiu sob pena de morte (o que a bem da verdade jamais foi levado muito a sério) as chamadas Bacchanalia, "Bacanais".
As seitas místicas , por isso mesmo, sempre mantiveram a tradição dionisíaca e o deus das orgias chegou inteiro à época imperial." (grifo meu)
Alhures, BRANDÃO
(1988, vol. II, 123-126) coloca uma interessante indagação sobre o
aparecimento do culto ateniense tardio a Dioniso, à qual responde:
"Dioniso somente fez seu aparecimento solene e "oficial" na pólis de Atenas, assim como na literatura grega e, por conseguinte, na mitologia, a partir do século VI a.C. Por que tão tardiamente, se, como se disse, o filho de Zeus e Sêmele já aparece "atestado" lá pelo século XIV a.C.? A explicação não parece difícil. Dioniso é um deus essencialmente agrário, deus da vegetação, deus das potências geradoras e, por isso mesmo, permaneceu por longos séculos confinado no campo. É que Atenas, até os fins do século VII a.C., foi dominada pelos Eupátridas, os bem-nascidos, os nobres, que, sendo os únicos que se podiam armar, eram igualmente os únicos que podiam defender a pólis, tornando-se esta propriedade dos mesmos. (...) Senhores de tudo, eram também senhores da religião. Seus deuses olímpicos e patriarcais (Zeus, Apolo, Posêidon, Ares, Atená...), projeção de seu regime político, em troca de hecatombes e de renovados sacrifícios, mantinham-lhes a pólis e o status quo. A pólis e seus Eupátridas eram politicamente guardados pelos imortais do Olimpo.
Somente no século VI a.C., com o enfraquecimento militar e, por conseguinte, políticos dos Eupátridas, (...) é que o povo começou a ter certos direitos na pólis. As sementes da democracia frutificaram-se rapidamente, como é sabido, e de Sólon, passando por Pisístrato e depois por Clístenes, Efialtes e Péricles, a árvore cresceu e o povo teve, afinal, um vasta sombra onde refugiar-se. Sua voz soberana se fez ouvir: era a ekklesía, a assembleia do povo. Com o povo e a democracia, Dioniso, de tirso em punho, seguido de suas Mênades ou Bacantes, suas sacerdotisas e acólitas, fez sua entrada triunfal na pólis de Atenas.
Além do mais, é conveniente acentuar que a "demora" de Dioniso deve-se ainda ao próprio caráter do deus: o filho de Sêmele é o menos "político" dos deuses gregos. Enquanto os outros imortais disputavam a proteção, a posse e a eponímia das cidades helênicas, não se conhece cidade alguma que se tenha colocado sob sua proteção. Na realidade, Dioniso permaneceu estranho à religião da família bem como à da pólis e, conforme acentua (JEANMAIRE, 1978, p. 8) em seu livro Dionysos, existe latente no dionisismo, ao menos sob forma elementar, um conflito entre a vocação religiosa e o conformismo social, embora sancionado pela religião. Ao contrário de Apolo, jamais houve um Dioniso nacional e nem tampouco um Dioniso sacerdotal. Deus imortal, talvez o filho de Sêmele tenha sido mais humano que o próprio homem grego.
E se se esperou tanto por Dioniso, é ainda e sobretudo porque "sua religião" colidia frontalmente com a religião "política" dos Eupátridas, apoiados nos deuses olímpicos tradicionais e despóticos.
Expliquemo-nos. Na Grécia, as correntes religiosas místicas (Mistérios, Orfismo, Pitagorismo, Dionisismo...) confluem para uma bacia comum: sede de conhecimento contemplativo (gnôsis); purificação da vontade para receber o divino (kátharsis); e libertação desta vida, que se estiola em nascimentos e mortes, para uma vida de imortalidade (athanasía). Mas essa mesma sede de imortalidade, preconizada por mitos naturalistas de divindades da vegetação, que morrem e ressuscitam (Dioniso sobretudo), essencialmente populares, chocava-se violentamente, e ver-se-á por que, com a religião oficial e aristocrática da pólis: os deuses olímpicos sentiam-se ameaçados e o Estado também. Assim, a imortalidade na Grécia tornou-se uma espécie de competição. Justificam-se, desse modo, na Hélade, sob a tutela religiosa do Oráculo de Delfos, tantos apelos à "sophrosyne"(moderação); "gnôthi s' autón" (conhece-te a ti mesmo); "medèn ágan" (nada em demasia)...
A respeito dessa oposição feita à penetração do culto de Dioniso na Grécia, Brandão citou Mircea Eliade: "Qualquer que seja a história da penetração do culto dionisíaco na Grécia, os mitos e os fragmentos mitológicos que aludem à oposição encontrada têm uma significação mais profunda: eles nos informam ao mesmo tempo da experiência religiosa dionisíaca e da estrutura específica do deus. Dioniso devia provocar resistência e perseguição, pois a experiência religiosa, que suscitava, punha em risco todo um estilo de vida e um universo de valores. Tratava-se, sem dúvida, da supremacia, ameaçada, da religião olímpica e de suas instituições. Mas a oposição denunciava ainda um drama mais íntimo, e que aliás está abundantemente atestado na história das religiões: a resistência contra toda experiência religiosa absoluta, que só pode efetuar-se, negando-se o resto (seja qual for o nome que se lhe dê: equilíbrio, personalidade, consciência, razão, etc.)." ² (grifo meu)
III. As Raízes do Carnaval na Grécia Antiga (texto traduzido por mim e acompanhado de observações correspondentes de Junito de Souza Brandão)
As raízes dos costumes do Carnaval localizam-se na Grécia Antiga, precisamente nas festas dionisíacas, nas festas florais ³ , nos Anthestéria ⁴ e nas festas da Trácia, etc.
Festas florais: festa ática dionisíaca
As festas florais constituíam uma comemoração anual do renascimento da natureza e dos mortos em honra de Dioniso Lacustre e de Hermes Ctônico. Aconteciam em Atenas durante o mês Anthesterióna (fim de fevereiro, início de março), ao longo de três dias. Conjetura-se que o nome da festividade venha de "florescer" ⁶ , relacionando com o costume de no segundo coroarem-se os meninos de três anos com flores. Uma vez que os Anthestéria não era festa das flores, sustentara-se antigamente que a perspectiva como também o nome Anthestéria de toda a festividade não se relacionasse com as plantas, mas com o verbo revocar (as almas), trazê-las de volta ao mundo ⁵, relacionando a etimologia com o terceiro dia da festividade que era dedicado às almas dos mortos.
Resumidamente os eventos dos três dias dos Anthestéria eram os seguintes:
1º dia - Pithíguia
* Abriam os potes de barro com o vinho novo
* Costumavam trazer o primeiro vinho ao santuário de Dioniso em Límnais
* Faziam libações fora do templo fechado do deus, em homenagem a ele os que oram vão consumir favoravelmente a nova produção
* Provavam eles mesmos o vinho e dançavam e cantavam agradecendo a Dioniso
* Naquele dia e no seguinte, os Atenienses permitiam aos escravos beberem com eles.
BRANDÃO (1988, vol. II, 133-134) faz a seguinte descrição do primeiro dia dos Anthestéria:
BRANDÃO (1988, vol. II, 133-134) faz a seguinte descrição do primeiro dia dos Anthestéria:
"(...) abriam-se os tonéis de terracota, em que se guardava o vinho da colheita do outono, e transportavam-nos até um Santuário de Dioniso ou Lénaion, que só se abria por ocasião dessas festas da primavera. Dessacralizava-se o vinho novo, quer dizer, levantava-se o tabu que ainda pesava sobre a colheita anterior ⁷ e, após uma libação a Dioniso pela boa safra, dava-se início à bebedeira sagrada. Possivelmente, como nas Dionísias Rurais e nas Lenéias, também os escravos participavam dessa confraternização, porque uma das características fundamentais de Dioniso, "deus do povo", é sua universalidade social."
2º dia - Khóes
* Acontecia a saída processional de Dioniso na cidade em cima de barco com rodas
* Em cima do barco havia fantasiados em pajens do deus Dioniso. Esses fantasiados eram os Sátiros e zombavam das pessoas com as obscenidades criando bom humor, alegria e espírito cômico
* Os Sátiros fantasiados usavam máscara. Essas máscaras eram de argila e semelhantes entre si
* Outros Sátiros usavam peles de animais, untavam o seu rosto com a borra do vinho e se coroavam com hera, a sempre verde planta sagrada de Dioniso ⁸
* Os Sátiros tentavam parecer com os bodes e característico dos bodes é a sua imensa propensão aos afrodisíacos
* Os Sátiros saltavam em volta do barco com rodas de Dioniso batendo no chão com seus pés (talvez daqui proveio a palavra Carnaval, uma vez que significa
dança dos caprinos ⁹, que podem ser bode, cabra ou carneiro.
*Acontecia o "casamento sagrado" do deus com a esposa do rei soberano, o qual era chefe do clero e de todos os dignitários religiosos de Atenas
*Acontecia o "casamento sagrado" do deus com a esposa do rei soberano, o qual era chefe do clero e de todos os dignitários religiosos de Atenas
* Aconteciam jogos de bebida de vinho
* Na tarde dos Khóes eram comuns nas ruas "os insultos das carruagens", ou seja, caçoadas contra transeuntes (frequentes também nas festas das Lenéias).
BRANDÃO (1988, vol. II, 134-135) descreve assim o segundo dia dos Anthestéria:
BRANDÃO (1988, vol. II, 134-135) descreve assim o segundo dia dos Anthestéria:
"(...) Era o dia consagrado ao concurso dos beberrões. Vencedor era aquele que esvaziasse o cântaro (três litros e um quarto) mais rapidamente. O prêmio era uma coroa de folhagens e um odre de vinho. Nesse mesmo dia, em que se celebravam as Khóes, organizava-se uma solene e ruidosa procissão para comemorar a chegado do deus à polis. Mas, como Dioniso está ligado ao elemento úmido, por ser uma divindade da vegetação, supunha-se que ele houvesse chegado a Atenas, vindo do mar. É, por esse motivo, que integrava o cortejo uma embarcação, que deslizava sobre quatro rodas de uma carroça, puxada por dois Sátiros. Na embarcação via-se o deus do êxtase, empunhando uma videira, ladeado por dois Sátiros nus, tocando flauta. Um touro, destinado ao sacrifício, acompanhava o barulhento cortejo, cujos componentes, provavelmente disfarçados em Sátiros e usando máscaras, cantavam e dançavam ao som da flauta. Quando a procissão chegava ao santuário do deus, no Lénaion, havia cerimônias várias, de que participavam Basílinna, isto é, a esposa do Arconte Rei e quatorze damas de honra. A partir desse momento, Basílinna, a Rainha, herdeira da antiga rainha dos primeiros tempos da cidade, era considerada esposa de Dioniso, certamente representado por um sacerdote com máscara. Subia para junto dele na embarcação e novo cortejo, agora de caráter nupcial, conduzia o casal para o Bukolíon, etimologicamente, "estábulo de bois", mas, na realidade, uma antiga residência real na parte baixa da cidade. Ali se consumava o hieròs gámos, o casamento sagrado entre o "deus" e a rainha, conforme atesta Aristóteles, Constituição de Atenas, L3, c5. Observe-se que o local escolhido, o Bukolíon, atesta que a hierofania taurina de Dioniso era ainda um fato comum. De outro lado, sendo a união consumada na residência real e apresentando-se Dioniso como rei, o deus estava exatamente exercendo a função sagrada da fecundação. Essa hierogamia era, na realidade, o símbolo do casamento, da união do deus com a pólis inteira, com todas as consequências que daí poderiam advir."
BRANDÃO (1988, vol. II, 127) diz das Lenéias que
"pouco se conhece também acerca dessa festa muito antiga do deus do vinho. O nome Lenéias é uma abreviatura já comum em Atenas, pois que a designação oficial da festa era Dioniso do Lénaion, isto é, cerimônias religiosas dionisíacas que se realizavam no Lénaion, local onde se erguia o mais antigo templo do deus e, mais tarde também, um teatro. Segundo os arqueólogos que se têm ocupado da topografia da Atenas antiga, esse espaço consagrado ao deus do êxtase e do entusiasmo talvez se localizasse ou nas vizinhanças da antiga Ágora e da rampa que levava à Acrópole ou, ao contrário, na outra extremidade da rocha, que sustém a Acrópole, isto é, aos pés de sua fachada oeste. Se ainda se discute acerca da localização do Lénaion, nada de muito concreto existe a respeito de sua etimologia. A fonte tradicional de Lénaion é lenós, "lagar", quer dizer, "tanque ou instalação, onde se espremiam as uvas para fabrico do vinho novo."
3º dia - Khytroi
* Cozinhavam o multigrão (mix de sementes, trigo cozido oferecido em memória dos defuntos), que o dedicam a Hermes Ctônio, o condutor de almas. A tradição que explica o multigrão é que aqueles que se salvaram do Cataclisma de Deucalião, cozinhavam uma "panela de multigrão"
* No dia dos Khytroi acreditava-se que as almas retornavam ao mundo superno e tornavam-se invisíveis entre os vivos
* Acreditava-se ainda que entre as almas estavam presentes também espíritos maus que subiam à terra pela abertura do Hades e corrompiam as pessoas e os alimentos
* Colocava-se em volta dos santuários um fio vermelho que funcionava preventivamente e impedia os espíritos de ali penetrarem
* Também para impedirem que entrassem em suas casas, besuntavam as portas com alcatrão e mascavam bicos
* Expulsavam os espíritos maléficos do mundo ínfero, que em companhia das almas entrassem nas casas a partir da noite dos Khóes e ficassem com os vivos no dia dos Khytroi, com o seguinte dito: "Ide embora, almas dos defuntos, os Anthestéria já terminaram".
* As Hydrofória era uma festividade que ocorria no terceiro dia dos Anthestéria em memória daqueles que se afogaram no Cataclisma de Deucalião: "Hydrofória, festa fúnebre pelos Atenienses que pereceram no Cataclisma de Deucalião".
Durante essa festa jogavam pães de trigo e mel numa fenda que havia no templo de Zeus Olimpo, porque se acreditava que essa fenda da Terra absorvesse as águas do cataclisma.
Eis a descrição de BRANDÃO (1988, vol. II, 135-136) para o terceiro dia dos Anthestéria:
Eis a descrição de BRANDÃO (1988, vol. II, 135-136) para o terceiro dia dos Anthestéria:
"O terceiro dia intitulava-se Khytroi, "vasos de terracota, marmitas"... Os Khytroi são consagrados aos mortos e às Kêres: configuravam, portanto, um dia nefasto, uma vez que as Kêres (Aleto, Tisífone e Megera), "deusas dos mortos", são portadoras de influências maléficas do mundo ctônio. Por isso mesmo, logo pela manhã, se colhiam ramos com espinhos, cujo valor apotropaico é bem conhecido, e com eles todos se enfeitavam; as portas das casas eram pintadas com uma resina preta e todos os templos, exceto o Santuário de Lénaion, eram fechados. Orava-se pelos mortos, que, juntamente com a Kêres, vagavam pela cidade e, à tarde, oferecia-se a Hermes, deus psicopompo, uma panspermía, palavra composta de pân, "todo, total" e spérma, "semente", quer dizer, um tipo de sopa com mistura de todas as espécies de sementes. Da panspermia a pólis inteira participava em homenagem a seus mortos.
Chegada a noite, todos gritavam: "Retirai-vos, Kêres, os Anthestéria terminaram".
Soa estranho que, em meio ao regozijo da festa do vinho novo, surjam os mortos e as Kêres, veículos de terríveis miasmas. É bom, todavia, não nos esquecermos de que Dioniso, sendo um deus da vegetação, como Deméter e Perséfone, dele depende também a próxima colheita. O hieròs gámos com a Basílinna, no dia anterior, e a panspermia têm toda uma conotação de fertilidade. Além do mais, as forças ctônias governam a fertilidade e as riquezas, de que, aliás, são os distribuidores. Não é por metáfora que o senhor do reino dos mortos se chamava Plutão, o rico por excelência, o qual, como se mostrou, é uma deformação de Pluto, a "própria riqueza". Num tratado, atribuído ao grande médico Hipócrates, lê-se: "É dos mortos que nos vêm os alimentos, os crescimentos e os germes." Os mortos sobem a este mundo em busca dos agradecimentos e dos sacrifícios (frutos, cereais, animais...), daquilo que eles mesmos proporcionaram aos vivos.
Para uma boa safra futura, um hieròs gámos, em que a semente (sperma) de Dioniso é colocada no seio da Basílinna, hipóstase da Terra-Mãe e, logo a seguir, uma panspermia pesavam muito no mundo dos vivos e dos mortos.
De qualquer forma, os Anthestéria eram a festa sagrada do vinho, quando, então, os participantes dos festejos, sagradamente embriagados, começavam a cantar e a dançar freneticamente, não raro à noite, à luz dos archotes, ao som das flautas e dos címbalos, até cair semidesfalecidos. É, neste estado, que algo de sério e grave acontecia, porque a embriaguez e a euforia, pondo-os em comunhão com o deus, antecipavam uma vida do além muito diversa daquela que, desde Homero até os grandes e patriarcais deuses olímpicos, lhes era oferecida. É que, através desse estado de semi-inconsciência, os adeptos de Dioniso acreditavam sair de si pelo processo do ékstasis, o êxtase. Esse sair de si significava uma superação da condição humana, uma ultrapassagem do métron, a descoberta de uma liberação total, a conquista de uma liberdade e de uma espontaneidade que os demais seres humanos não podiam experimentar. Evidentemente, essa superação da condição humana e essa liberdade, adquiridas através do ékstasis, consituíam, ipso facto, uma libertação de interditos, de tabus, de regulamentos e de convenções de ordem ética, política e social, o que explica, consoante Mircea Eliade, a adesão maciça das mulheres às festas de Dioniso. E, em Atenas, as coisas eram claras: nada mais reprimido e humilhado que a mulher. Dioniso e seus Anthestéria simbolizam a sua libertação. Não era em vão que, unindo-se à Basilinna, ele contraía núpcias com todas as mulheres da pólis de Atenas."
Fonte das imagens e texto intitulado "AS RAÍZES DO CARNAVAL NA GRÉCIA ANTIGA" postado acima:
http://archaia-ellada.blogspot.gr/2014/02/blog-post_7332.html
IV. NOTAS
¹ "Quanto a Rômulo, assim que, em Remória, deu sepultura tanto a Remo como às pessoas que os tinham criado a ambos, tratou da fundação da cidade, depois de mandar vir da Etrúria homens que acompanhassem todos os pormenores, de acordo com certas normas e textos sagrados, e os instruíssem, como acontece na iniciação mistérica. Escavou um fosso em forma circular junto da zona onde fica agora o Comício, para nele serem depositadas as primícias de tudo quanto era considerado bom segundo o costume ou necessário por natureza. Por fim, cada pessoa trouxe uma pequena porção de terra do seu país de origem e atirou-a para o buraco, misturando-a com as restantes coisas. Designam este fosso pelo mesmo nome que dão ao céu: mundus. Em seguida, tomando este círculo como o ponto central, desenharam à volta os limites de toda a cidade." (PLUTARCO: Vidas Paralelas: Rômulo, XI, 1 e 2, trad. Delfim F. Leão, disponível na Internet)
² ELIADE, M.: História das Ideias e Crenças Religiosas, 1º vol., p. 325.
³ Os Florais ou Jogos Florais (ludi Florales) eram outra festa dos antigos Romanos igualmente marcada pela liberdade e licenciosidade, dedicada a Flora, deusa das flores e plantas, ligada aos rituais de fertilidade. Esses festivais realizavam-se entre 28 de abril e 3 de maio, e incluíam a representação de mimos repletos de obscenidades.
⁴ Anthestéria (neutro plural); portanto, os Anthestéria (τα Ανθεστήρια).
⁵ ανθέω=florescer; το ἄνθος=a flor
² ELIADE, M.: História das Ideias e Crenças Religiosas, 1º vol., p. 325.
³ Os Florais ou Jogos Florais (ludi Florales) eram outra festa dos antigos Romanos igualmente marcada pela liberdade e licenciosidade, dedicada a Flora, deusa das flores e plantas, ligada aos rituais de fertilidade. Esses festivais realizavam-se entre 28 de abril e 3 de maio, e incluíam a representação de mimos repletos de obscenidades.
⁴ Anthestéria (neutro plural); portanto, os Anthestéria (τα Ανθεστήρια).
⁵ ανθέω=florescer; το ἄνθος=a flor
⁶ αναθέσσασθαι=revocar (as almas), trazendo-as de volta ao mundo
⁷ Nota de BRANDÃO, J.S.: "Toda colheita era considerada um presente dos Deuses. Assim, enquanto não se fizesse uma consumação ritual e uma oferta das primícias aos imortais, para afastar quaisquer influências maléficas, a safra estava interditada, era tabu."
⁸ A vinha, a hera, o tirso, a taça e as máscaras dionisíacas são os itens mais comumente encontrados nas festas, procissões e banquetes. O tirso era um bastão, todo enfeitado com hera (enrolada), cuja extremidade terminava por uma pinha, que os fiéis erguiam acima da cabeça, dançando. A vinha, a hera e o tirso são emblemas que se prendem ao fabrico do vinho, ou aos efeitos que ele produz. A hera tinha a propriedade de impedir a embriaguez e era, por isso, que, nos festins, os convivas com ela se coroavam e é com essa planta que a coroa de Dioniso é frequentemente representada. Ainda, em inúmeros lugares, a pinha entrava no fabrico do vinho, que devia diferir, em muitos aspectos, do que é hoje em dia. Os antigos misturavam-lhe mel e quase sempre água. Raríssimo era ver alguém sorver vinho puro.
⁹ βαλλισμός των κάρνων > καρναβάλι
V. BIBLIOGRAFIA
BRANDÃO, Junito de Souza: Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, Petrópolis: Editora Vozes, 1º volume: 701 p.; 2º volume, 559 p.
— Mitologia Grega, Petrópolis: Editora Vozes, 2ª edição, 1988, 1º volume: 404 p.; 2º volume: 323 p.; e 3º volume: 407 p.
ELIADE, M.: História das Ideias e Crenças Religiosas, Porto: RÉS-Editora, 1º volume: 429 p.; 2º volume: 461 p.; e 3º volume: 332 p.
LESSA, F.S. e BUSTAMANTE, R.M. (orgs.) et alii: Memória & Festa, Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda, 2005, 638 p., disponível na Internet in
books.google.com.br/books?isbn=8574781789
FORTUNA, Marlene: Dioniso e a Comunicação na Hélade: o Mito, o Rito e a Ribalta, São Paulo: Annablume Editora, 298 p., disponível na Internet in books.google.com.br/books?isbn=8574194956
8 comentários:
Braga: Li com interesse a sua tradução. No Santo Antônio só estudei grego no curso clássico. Latim estudei no curso clássico e na Faculdade, em Belo Horizonte. Concluí o clássico em 1946 e a faculdade em 1951 ou 52, não estou bem certo. De lá pra cá, são 52 anos. Dediquei-me a aulas de português e de francês, depois só de português e envolvi-me em atividades diversas. Com isso perdi a maior parte do patrimônio que adquiri estudando, por conta própria, mitologia grega no Santo Antônio de São João del Rei, complementando a excelente base que uma encantadora História Universal lida a partir do curso ginasial em Ubá. A sua tradução fez ressurgir em mim muitos espíritos que aguardava três ou quatro vezes por ano a abertura dos portões do "mundo". Filippão
Prezado amigo FJSBRAGA, a cada artigo que recebo de sua lavra mais admiro a sua inteligencia.
"As raízes do carnaval na Grécia Antiga" é de tirar o folego. Um trabalho hercúleo.
Vou guardá-lo para consultas futuras e para presentear amigos que amam a Grécia e Roma.
Meus parabéns do seu amigo, Lucio Flavio.
Francisco,
eu é que lhe agradeço de coração as ricas contribuições que nos envia.
Grande e afetuoso abraço,
Alzira
Este texto é para não perder mais de vistas. É uma aula de grande erudição que nos faz sim refletir sobre as origens de nossa folia do momo. Grato pelo envio do link. Abç.
Caro amigo e confrade Franciso José dos Santos Braga. Desde meu ingresso na ALSJDR e contato com a genialidade e erudição do amigo, tenho, já na terceira idade (estou na terceira dentição), a satisfação de estar fazendo um novo curso acadêmico, via da forte caudal de sua vigorosa obra. Acho que estou, de novo, em meus tempos de juventude (pela segunda vez) e com euforia e grande proveito faço um novo curso universitário no contato com sua rica e ininterrupta atividade cultural. Obrigado.
Alair C.de Resende
Amigo, confrade e mestre Braga. O Curso Universitário que estou cursando, eu o faço MATRICULADO no seu estupendo e rico blog. Faço-o com empenho juvenil tardio. E juro que vale a pena. Obrigado mestre.
Um abraço
Alair
Prezado Braga,
Que artigo interessante! Tenho paixão pela história e origem dos fatos. Acredito que podemos aprender muito com isso.
Parabéns pelo trabalho!
Aproveito para te pedir um favor. Gostaria que você me reenviasse o link do artigo sobre a Atlântida . Estou abrindo uma pasta para guardar esses trabalhos feitos com tanto carinho e conhecimento.
Obrigada e um abraço,
Elza
Primeiramente, devo agradecer as excelentes pesquisas que me tem enviado, e que sempre leio com interesse, especialmente quando abordam temas ligados a S. João del-Rei e à Grécia Antiga, sua língua, literatura e cultura. Estudei um pouco de romaico quando de meu curso de Teologia (1950-1953): entre os pedreiros que trabalhavam na construção de um novo prédio, havia dois gregos analfabetos – em grego e em português (de grego só sabiam o alfabeto e escrever o próprio nome). Como eles moravam na área da construção, todas as noites eu ia lá para alfabetizá-los, em romaico e em português; e eles me ensinavam um pouco de romaico: meia hora cada. Claro que saí perdendo, pois eu dedicava mais tempo a eles; mas valeu para eu ter ao menos uma ideia das mudanças. Depois, consegui um livrinho de conversação (romaico-italiano).
Um forte abraço do amigo
Gruen
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