segunda-feira, 20 de novembro de 2017

RECUPERE O SEU LATIM > > PARTE 2


Por Francisco José dos Santos Braga



I. Horácio: Epistulae 2.1.156



«Graecia capta ferum victorem cepit et artes
intulit agresti Latio.»

"A Grécia, conquistada, subjugou o (seu) selvagem vencedor e introduziu as (suas) artes no Lácio rústico."

As conquistas de Alexandre, o Grande, espalharam o Helenismo imediatamente sobre o Oriente Médio atingindo o interior da Ásia. Depois de sua morte em 323 a.C., a influência da civilização grega continuou a expandir-se ao longo do mundo mediterrâneo e oeste da Ásia. O período helenístico da história grega começa com a morte de Alexandre em 323 a.C. e termina com a anexação da península e ilhas gregas por Roma em 146 a.C..
Embora militarmente a Grécia tenha sido derrotada por Roma, aquela impôs aos vencedores romanos a cultura helenística. As artes e literatura romanas foram calcadas sobre modelos helenísticos. A língua grega "koiné" (língua comum) tornou-se a língua dominante na parte leste do Império Romano. Na cidade de Roma, a "koiné" esteve em largo uso entre pessoas comuns, e a elite falava e escrevia grego tão fluentemente quanto latim.




II.  Quinto Ênio (239 a.C.-169 a.C.)

«Qui vincit non est victor nisi victus fatetur.»
O vencedor não é vitorioso se o derrotado não reconhecer como tal.

A respeito de Quinto Ênio, poeta e dramaturgo que viveu durante a República Romana, considerado pai da poesia romana, escreveu Aulo Gélio em Noites Áticas 17.17.1:
«Quintus Ennius tria corda habere sese dicebat, quod loqui Graece et Osce et Latine.»
Quinto Ênio dizia que ele possuía três corações, porque sabia falar três línguas: grego, osco e latim.

De fato, Ênio nascera em Rudiae, na Calábria, onde as três línguas estavam em contato uma com as outras.

Também dele tratou Ovídio:
«Ennius ingenio maximus, arte rudis.»
Ênio, o maior no gênio, (foi) falto de arte. (Ovídio, Tristia, Livro II, elegia única, verso 424)

Embora tenham sobrevivido apenas fragmentos de suas obras, sua influência sobre a Literatura Latina foi enorme, particularmente na introdução do estilo e de modelos literários gregos. Foi o primeiro poeta latino a adotar o hexâmetro dactílico usado na épica e na poesia didática gregas, em vez do antigo verso satúrnio (empregado por Lívio Andrônico para sua adaptação da Odisseia ao latim e por Gneo Névio em seu original poema épico sobre a I Guerra Púnica), levando o metro grego a tornar-se o metro-padrão para esses gêneros na poesia latina. Sua obra capital foi Anais, um poema épico em 15, mais tarde expandido para 18 livros, cobrindo a história romana desde a queda de Tróia em 1184 a.C. até o censor Catão, o Velho, em 184 a.C. Os Anais tornaram-se um texto obrigatório para escolares romanos, mais tarde suplantado pela Eneida, de Virgílio. 



III. Horácio: Ars Poetica, 133-134.

«(...) nec verbum verbo curabis reddere fidus
interpres...» 

"Como um verdadeiro tradutor, deverás ter o cuidado 
de não verter palavra por palavra." 

Preceito horaciano que todo tradutor deveria adotar.



IV. Horácio: Odes III, 30, v. 1.

«Exēgi monumentum aere perennius...»

É muito citado o primeiro verso da terceira ode de Horácio: "Concluí um monumento (de palavras) mais perene do que o bronze (isto é, garantindo-lhe a imortalidade)...". Importante observar a abertura para o poema escolhida pelo poeta: "Exēgi monumentum",  com o verbo no perfeito do modo indicativo. No infinitivo: "exigere monumentum". Os dicionários registram exigo, is, ēgi, actum, igere. Tal verbo tem a acepção de 'executar completamente, acabar, concluir, terminar, rematar, aperfeiçoar'.

Entretanto, é conveniente conhecer o pensamento de Horácio na sua integridade. Assim, sua ideia se amplia com a adição de outros oito versos. Para nossos fins, fica da seguinte forma:

(Horácio, Odes III,  XXX, vv. 1-9)

Exegi monumentum aere perennius 
regalique situ pyramidum altius, 
quod non imber edax, non Aquilo ¹ inpotens 
possit diruere aut innumerabilis 
annorum series et fuga temporum.
Non omnis moriar, multaque pars mei
vitabit Libitinam ². Usque ego postera
crescam laude recens. Dum Capitolium
scandet cum tacita virgine pontifex. ³ (...)


Minha tradução:
"Concluí um monumento mais perene que o bronze
e mais alto que o sítio régio das pirâmides,
o qual nem a chuva voraz, nem o Aquilão ¹ indômito
possa(m) destruir ou mesmo a inumerável
sequência dos anos e o decurso das eras.
Não morrerei completamente! e grande parte de mim
escapará ao túmulo ². Seguirei crescendo, renovado,
com o louvor póstero, enquanto o pontífice
sobe ao Capitólio com a virgem silenciosa. ³ (...)"

Esta ode de Horácio é um canto triunfal, um hino de reconhecimento que o poeta eleva a Melpomene, musa da tragédia (aqui da poesia lírica) invocada no verso final do poema, por haver-lhe dado a inspiração. O poeta, num sinal de modéstia, atribui os seus sucessos literários à sua musa inspiradora. Observe que a musa é representada portando um bastão e uma máscara trágica e calçando botas de couro.
Musa Melpomene, estátua de mármore greco-romana c. séc. II d.C. - State Hermitage Museum

  
NOTAS EXPLICATIVAS
  
¹ Aquilão: vento do Norte.
² Libitina é uma deusa romana antiga de funerais. Seu nome era usado como metonímia para morte. O túmulo de Libitina estava localizado na Colina Esquilina, indicando que a área tinha associações "insalubres e de maus presságios".
³  Nos dois versos finais do trecho aqui citado, Horácio refere-se à cerimônia, durante a qual o sumo pontífice subia ao Capitólio com a Vestal, guardiã contínua da lareira (lar doméstico ou focolare, no italiano moderno) de Roma. O poeta, associando a sua fama à de Roma, consagra-a à eternidade.

[LAROUSSE, s/d, 143-44], no verbete Exegi monumentum, informa que na antiguidade, os homens célebres se concediam a si mesmos a imortalidade, sem ferir as conveniências e costumes recebidos. Ulisses, na Odisseia, diz diante de Alcinoo: "Sou Ulisses, filho de Laerte, conhecido de todos os mortais por minha maestria, e cuja glória se eleva até aos astros." Na Eneida, o herói troiano diz de si mesmo: "Sou Enéas, o piedoso; a notoriedade levou meu nome até aos astros." Horácio fala do monumento, mais duradouro do que o bronze, que foi erguido por seus escritos.
Entre os modernos, Corneille disse com orgulho: "Não devo senão a mim mesmo toda a minha notoriedade." 
♧               ♧               ♧
Acreditamos todos ter o direito de colocar sobre nossos livros: Exegi monumentum. Palácio ou cabana, catedral ou casa com teto de palha, esta obra é nossa.
H. de Balzac 
Eis minhas obras! Não as publico por vaidade e não digo como Horácio: Exegi monumentum. Estou tão longe de me glorificar diante deste monte de folhas mortas ou efêmeras tombadas do ramo da árvore de minha vida, cujas raízes já sinto morrer, que digo com toda sinceridade: Gostaria nunca jamais ter sabido escrever.
Lamartine, prefácio das Obras Completas 




V. Ovídio: Amores, III, elegia 11b, vv. 7-8.

«Sic ego nec sine te nec tecum vivere possum;
et videor voti nescius esse mei.»
"Assim eu não posso viver nem contigo nem "sentigo";
e pareço não conhecer meus próprios desejos."  




VI.  Virgílio: Livro III, v. 57

«Auri sacra fames.»
Literalmente, maldita fome do ouro. Observe que sacrus, a, um possui também a acepção de maldito, além da mais comum: sagrado. Ao invés de fome, a língua portuguesa usa frequentemente sede (de ouro).


[LAROUSSE, s/d, 51-2], no verbete Auri sacra fames, observa: "Os Latinos diziam: A fome do ouro; para exprimir a mesma ideia, a palavra sede (la soif) é a única que o gênio da nossa língua (francesa) adotou; diz-se, entretanto, de modo figurado, affamé (no sentido de faminto):
«Esses autores renomados
que, enojados da glória e famintos de dinheiro...»
Boileau
Da mesma forma que nós comunicamos com a natureza e a humanidade pela fome e pela sede, igualmente comunicamos com Deus por uma fome e uma sede sagradas, não como disse Virgílio, auri sacra fames (maldita sede de ouro), mas Dei sacra fames (sagrada sede de Deus).
Lacordaire

Aqui (na Califórnia), lava-se a terra; ao lado, faz-se um canal para desviar o curso do rio; mais longe, sobre os flancos duma colina, nos sulcos das torrentes e das quedas d'água, os mineradores cavam leitos dessecados. Meu companheiro se achava sentado junto de um grupo de trabalhadores: "Auri sacra fames!" exclamou, virando-se para mim e juntando as mãos.
Laurent Pichat
 



BIBLIOGRAFIA



LAROUSSE, Pierre: Fleurs Latines des dames et des gens du monde, Paris: V. P. Larousse et Cie, Imprimeurs-Éditeurs, 519 p.

6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

O latim é uma língua descendente do grupo itálico do indo-europeu, possuindo particularidades muito comuns às línguas itálicas (osco, umbro, etc.).

Saber latim facilita na compreensão de muitos termos presentes em textos científicos, teológicos, filosóficos e jurídicos, além de ser o ponto de partida para muitas línguas, como, por exemplo, português, italiano, francês, romeno, espanhol, inglês, etc. Embora não seja uma língua românica, o inglês sofreu forte influência do latim. 60% do seu vocabulário são de origem latina, em geral por intermédio do francês.

Os falantes do latim eram chamados latinos e isso se deve ao fato de eles morarem na antiga região italiana de Lácio (Latium em latim). Além desta língua, outras ainda eram faladas naquela época e naquele local, como, por exemplo, o grego e muitos dialetos (prenestino, falisco, etc.).

“Latim clássico” ou “literário” é a norma literária, altamente estilizada, que compreende o período que vai de 81 a. C. a 14 d.C., momento de seu maior esplendor e fruto de prolongado amadurecimento e elaboração. É uma estilização do sermo urbanus, língua coloquial das classes cultas, com o qual convivia. Os seus principais representantes foram Cícero, César e Salústio, na prosa e, no verso, Virgílio, Horácio, Ovídio, Lucrécio e Catulo.

Além deste sermo urbanus, havia pelo menos duas outras variedades da língua latina: o sermo vulgaris ou plebeius (latim essencialmente falado pela grande massa popular menos favorecida), utilizado pela classe baixa, e, mais tarde, o sermo ecclesiae (utilizado pela religião católica). Depois do desaparecimento do Império romano do Ocidente, a Igreja de Roma não só continuou a servir-se da língua latina, mas dela se fez, de certa forma, patrocinadora e promotora, quer em âmbito teológico e litúrgico, quer no da formação e da transmissão do saber.

Durante a Idade Média e Renascença, sábios, filósofos e cientistas escreviam suas teses em latim. Portanto, escreveram suas teses em latim, entre muitos outros: Santo Agostinho, Santo Alberto Magno, São Tomás de Aquino, Nicolau Copérnico, Isaac Newton, Baruch Espinoza, etc. Descartes destoou/inovou quando publicou o seu “Discurso sobre o método” (obra inaugural da filosofia moderna) em francês em 1637; até então, as obras filosóficas eram escritas em latim e estavam voltadas para um público “douto”, constituído do círculo exclusivo de iniciados nas questões propriamente filosóficas. Como ele propugnava um uso público do bom senso ou razão, com isso ele pretendia alcançar um amplo público. Entretanto, em 1641, o próprio Descartes escreve em latim para aquele outro público: “Meditações Metafísicas” e, em 1644, “Princípios da Filosofia”.

Por fim, são ainda válidas as bem conhecidas palavras de Cícero e que endosso: "Non tam præclarum est scire Latine, quam turpe nescire" (Não é nada especial saber Latim: é uma vergonha não sabê-lo).

Com essa concepção, tenho o prazer de apresentar a segunda seção de "RECUPERE O SEU LATIM", que inaugurei em 18/04/2017 no Blog do Braga. Boa diversão!

Jota Dangelo (diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural, cronista e escritor) disse...

Belo texto sobre a língua latina! Troxe-me recordações dos tempos do Colégio Santo Antônio. No terceiro ano científico tínhamos aulas de latim com o Monsenhor José Maria Fernandes. Velhos tempos...Dangelo

Prof. Cupertino Santos (professor de história aposentado de uma escola municipal em Campinas) disse...

Sempre tive um fascínio pelo latim! Curiosamente, não sei o que seria se fosse uma matéria obrigatória, pois quando ingressei no antigo ginásio, em 1967, os legisladores já o haviam banido do currículo. De fato, é uma vergonha. Embora deva lembrar dela, deixo-lhe o registro da jocosa canção da cantora Meire Pavão - 1964 - numa versão do sucesso de Gianni Morandi ("Che me ne faccio del Latino"). A versão teria sido feita pelo próprio pai da cantora!
https://youtu.be/blU1ywsDT5w
Excelente a sua publicação!
Muito grato.

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Presidente) disse...

Na verdade, caro Braga, o latim não é uma língua morta, mas uma língua que nós matamos como esquecimento. Fernando Teixeira

Pedro Paulo Torga da Silva (participante e incentivador do Movimento dos Focolares no Brasil) disse...

Muito legal! Adoro saber a origem das coisas. E depois a história. Ótimo, parabéns.

Abração,

Pedro Paulo

O amor não é nada científico... mas leva muito mais longe

Prof. José Luiz Celeste (ex-professor da EAESP-FGV e tradutor) disse...

Prezado: Parabéns.
Diga-me contudo..."nisi victus fatetur" = a não ser que seja feito vencido, ie, a não ser que seja humilhado pelo vencedor, não é esse o sentido?
Bom, também cabe "a não ser que se faça vencido". Aí muda um pouco o sentido. É curioso, pois seriam formas equivalentes da voz passiva em Português, o sentido não deveria mudar. Vendem-se casas = casas são vendidas.

Não quero contestar seu entendimento, só quero saber. Isto é, nem sequer saber, só entender...
Abçs
Celeste