quinta-feira, 8 de março de 2018

CARTA DE EPICURO A MENECEU > > > Parte 1

Traduzida por Francisco José dos Santos Braga



I.  INTRODUÇÃO



A carta escrita pelo filósofo Epicuro a seu discípulo Meneceu, transcrita por Diógenes Laércio no livro X (dedicado a Epicuro e especialmente apreciado pelos historiadores e filósofos) de sua obra "Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres" é importantíssima, porquanto é uma das poucas fontes referentes ao pensamento de Epicuro (a maior parte das obras do seu autor se perderam), sobre os assuntos ali tratados: a ética e a busca da felicidade. A doutrina de Epicuro foi perpetuada no Império Romano no século I d.C., graças ao poeta filósofo Lucrécio que, retomando as teses epicuristas, as traduziu com linguagem poética em sua obra De rerum natura (Sobre a Natureza das Coisas). Cabe lembrar que Diógenes Laércio não salvou apenas a dita carta do olvido; no livro X, salvou ainda outra carta a Heródoto, onde a física de Epicuro é exposta, e na qual são discutidos os princípios, o método e a constituição do mundo; além disso, preservou da destruição a carta a Pithoclês, cujo eixo é um estudo dos meteoros ou fenômenos naturais; e, finalmente, transcreveu as Máximas Principais (Οι Κύριες Δόξες) de Epicuro.

Sobre a vida de Laércio, o principal biógrafo da filosofia grega, sabe-se pouca coisa, apenas que nasceu na Cilícia, ao norte da Síria. Há quase uma unanimidade sobre seu período de vida (⭐︎ c. 225-✞ c. 300), mas ignora-se quais foram seus pais, a sua formação e tendência filosófica, sua profissão e o local de sua morte. Ou seja, é impressionante que esse autor, cuja obra é citada em todos os estudos sobre a história da filosofia, seja um desconhecido biograficamente.

Vejamos o que o doxógrafo Diógenes Laércio diz de Epicuro como autor, segundo [LAÊRTIOS, 2008, 289]
"Epicuro foi um polígrafo extraordinário, e superou todos os seus antecessores pelo número de obras, que totalizaram cerca de trezentos volumes; nelas não há citações de outros autores, sendo todas as palavras do próprio Epicuro. Crísipo tentou sobrepujá-lo em autoria de obras, e Carneades o chamou de parasita dos livros de Epicuro: "Crísipo tenta emular Epicuro abordando cada obra escrita por ele sobre um determinado assunto em outra obra da mesma extensão. Por isso ele se repete com frequência e escreve tudo que lhe vem à mente, e por causa da pressa deixa tudo por rever; as citações são tantas que somente elas enchem seus livros. E é possível descobrir o mesmo procedimento em Zenão e em Aristóteles."
São esses então os dados sobre as obras de Epicuro e suas peculiaridades, sendo as melhores entre elas as seguintes: Da Natureza, em trinta e sete livros; Dos Átomos e do Vazio; Do Amor; Epítome dos Livros contra os Físicos; Contra os Megáricos, Problemas; Máximas Principais; Do que deve ser escolhido e rejeitado; Do Fim Supremo; Do Critério, ou Cânon, Cairêdemos; Dos Deuses; Da Santidade; Hegesiânax; Dos Modos de Vida, em quatro livros; Da Maneira Justa de Agir; Neoclês, a Temista; O Banquete; Eurílocos, a Metrôdoros; Da Visão; Do Ângulo no Átomo; Do Tato; Do Destino; Opiniões sobre os Sentimentos; Contra Timocrates; Prognóstico; Exortação à Filosofia; Das Imagens; Da Apresentação; Aristôbulos; Da Música; Da Justiça e das Outras Formas de Excelência; Dos Benefícios e da Gratidão; Polimedes; Timocrates, em três livros; Opiniões sobre as Doenças e a Morte, a Mitres; Calistolás; Da Realeza; Anaximenes; Epístolas."
Em [LAÊRTIOS, 2008, 5-11], Mário da Gama Kury, tradutor da obra Vidas dos Filósofos de Diógenes Laércio, autor da Introdução na edição brasileira e autor das notas da referida obra, defende que o autor teria escrito as Vidas dos Filósofos nas primeiras décadas do século III d.C., sendo portanto contemporâneo mais novo de Luciano, Galeno, Filóstrato e Clemente de Alexandria, não muito distante de Apuleio e Ateneu. Considera mais provável que este biógrafo de filósofos não tenha pertencido a nenhuma escola filosófica, nem mesmo tenha tido a pretensão de estudar filosofia. Apesar de seus elogios fervorosos a Epicuro (Livro X), Laércio não professou sua condição de adepto de Epicuro. [LAÊRTIOS, 2008, 9] entende ainda que 
"a condição de mero compilador atribuída a Laércio (alguns estudiosos falam até de plágio puro e simples) não diminui de forma alguma o valor inestimável de sua obra para nós, entre outras razões porque quase nada sobreviveu das obras compiladas (ou plagiadas) além dos fragmentos conservados por nosso autor." 
Apesar de todas as limitações que lhe foram imputadas, Laércio, segundo Kury, deixou-nos a obra mais preciosa da Antiguidade sobre a história da filosofia e Nietzsche achava a exposição da Laércio preferível à grande história de Zeller em seis volumes, principalmente por seu conteúdo humano. Assim, conclui ser  
"um dos méritos da obra ora traduzida é a evocação da atmosfera do mundo em que viveram os filósofos antigos, graças aos numerosos detalhes aparentemente insignificantes e aos elementos míticos e fantásticos em mistura com anedotas de sabor popular, tudo muito significativo e esclarecedor. (...)
Outro aspecto a destacar é o caráter às vezes superficial da exposição, que passa abruptamente da constatação cosmológica para a anedota jocosa, revelando uma dimensão nova: a intenção de popularizar a filosofia. (...)"  

II. Minha tradução da Carta de Epicuro a seu discípulo Meneceu (Vidas, Livro X, 122-131)


Epicuro saúda Meneceu.

(122) Que ninguém ¹ quando jovem demore a filosofar nem, quando chegar à velhice, se canse de filosofar. Porque ninguém é imaturo ou demasiado idoso para fazer aquilo que torna a alma saudável. Quem disser que ainda não é tempo ou que (já) passou a hora de filosofar, assemelha-se àquele que diz que não chegou o tempo ou que (já) passou o tempo para a felicidade. Desse modo, tanto o jovem quanto o idoso deve filosofar: o jovem, para se jovializar enquanto envelhece por causa do medo das coisas que estão por vir; o idoso, para permanecer jovem com a lembrança das coisas boas que gozou. Devemos, então, examinar tudo aquilo que proporciona a felicidade, para que, quando a temos, tenhamos tudo, e quando ela nos faltar, façamos tudo para obtê-la.

(123) Põe em prática e exercita essas coisas ² que continuamente eu te recomendava, distinguindo as que constituem elementos fundamentais do bem viver ³. Em primeiro lugar, pensando que deus é um ente imortal e bem-aventurado, como se esboçou a percepção comum de deus, não acrescentes a ela nada que seja estranho à sua imortalidade nem inadequado à sua bem-aventurança. Ao contrário, pensa a respeito dele tudo o que for capaz de conservar-lhe a bem-aventurança e a imortalidade. De fato, os deuses existem, visto que é claro o conhecimento que temos deles.
Mas eles não existem como os imagina a maioria, pois esta não conserva íntegra a noção primordial que tem deles. Ímpio não é aquele que não admite os deuses da maioria, mas sim quem atribui aos deuses as crendices da maioria.

(124) Com efeito, o que muitos declaram sobre os deuses não são ideias inatas, mas suposições falsas; donde, para os maus, os maiores malefícios são causados pelos deuses, e, para os bons, os benefícios; portanto, familiarizados continuamente com as suas próprias virtudes aceitam seus semelhantes e consideram estranho tudo que não seja tal.
Acostuma-te à idéia de que a morte para nós não é nada, porque todo mal e todo bem residem na sensação , enquanto a morte é a privação da sensação. Por isso, a consciência clara de que a morte não significa nada para nós faz-nos desfrutar nossa vida efêmera, sem querermos acrescentar-lhe tempo infinito, mas suprimindo-lhe o desejo de imortalidade.

(125) Com efeito, não há nada terrível para quem tem consciência legítima de que não há nenhuma desgraça em deixar de viver . Desse modo, é tolo quem diz que teme a morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige o que está por vir. Aquilo que, estando presente, não nos preocupa inutilmente nos aflige, enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível dos males - a morte - não é nada para nós, porque, exatamente, quando somos, a morte não está presente; quando, porém, a morte estiver presente, então nós não somos (mais). Portanto, a morte não é nada nem para os vivos, nem para os mortos, já que para os primeiros a morte não existe, ao passo que os segundos não estão mais aqui (quando ela vier). Mas a maioria das pessoas ora foge da morte como o maior dos males, ora aspira a ela como descanso dos males no viver.

(126) O sábio, contudo, nem se despede da vida, nem teme deixar de viver. O viver não o entedia, nem presume-se que o não viver seja um mal. Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, assim também não produz frutos no tempo extenso, mas no (tempo) melhor desfrutado. Quem aconselha o jovem a bem viver, e o velho a morrer bem é um tolo, não somente pelo que a vida tem de agradável, mas também porque se deve ter o mesmo cuidado tanto em viver bem quanto em morrer bem. Pior ainda é aquele que diz: 
"Bom seria não ter nascido, mas uma vez tendo nascido, passe o mais depressa possível pelas portas do Hades ¹⁰.

(127) Com efeito, se alguém diz isso com convicção, por que não se vai da vida? Pois é muito cômodo para ele, se - claro - for esse o seu desejo. Se fala por brincadeira, é leviano nas coisas que não admitem zombaria. Cabe lembrarmo-nos ¹¹ de que o futuro nem é totalmente nosso, nem totalmente não nosso, de tal modo que não devemos esperar que seguramente será nosso, nem de forma nenhuma nos desesperarmos como se não estivesse por vir. Devemos também considerar que, dentre os desejos ¹², há uns que são naturais e outros que são infundados; dentre os (desejos) naturais, uns são necessários e outros são apenas naturais; dentre os (desejos) necessários, uns são necessários (sic) à felicidade, outros, à tranquilidade do corpo, e ainda outros, à própria vida.

(128) O cuidado correto para com eles nos leva a dirigir toda preferência e toda recusa à saúde do corpo e à impassibilidade da alma, uma vez que esse é o objetivo da vida bem-aventurada. Graças a esse (objetivo) praticamos todas as coisas, para não sentirmos dores nem temermos. Uma vez que tenhamos atingido esse estado, aplaca-se toda a tempestade da alma, porquanto a criatura viva não tem necessidade buscar algo que lhe falta, nem procurar outra coisa para se realizar a não ser o bem da alma e do corpo. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; por outro lado, quando não sofremos, não sentimos mais necessidade do prazer.
Por isso afirmamos que o prazer é o princípio e o fim da vida bem-aventurada.

(129)  Como nós o identificamos como bem primeiro ¹³ e congênito, e, partindo dele, acabamos por fazer toda escolha e toda recusa e a ele chegamos, tendo o sofrer como critério para julgarmos todo bem. Embora ele seja o bem primeiro e congênito, nem por isso escolhemos qualquer prazer, mas muitas vezes evitamos muitos prazeres, quando deles nos advém o maior aborrecimento. Consideramos muitos sofrimentos melhores do que os prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos as dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem, por ter uma natureza condizente conosco; nem por isso todo prazer deve ser escolhido. Do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem por isso devemos fugir de toda dor por sua própria natureza.

(130) Convém, portanto, avaliar tudo isso com o cálculo das coisas que forem úteis e das que forem prejudiciais. Pois, em certas circunstâncias usamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.
E consideramos a auto-suficiência ¹⁴ como um grande bem, de forma nenhuma para utilizarmos as poucas coisas, se não possuímos as muitas, mas para nos contentarmos com esse pouco, sinceramente convencidos de que desfrutam as coisas mais agradáveis da abundância os que menos precisam dela, e tudo o que é natural é fácil de conseguir, difícil é tudo o que é inútil. E os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias luxuosas, desde que se remova a dor (provocada) pela falta;

(131) e o pão e a água produzem o prazer supremo, quando ingeridos por quem deles necessita. Habituar-se ¹⁵ às iguarias simples e não às luxuosas garante a boa saúde como ainda torna o homem ativo nas adversidades necessárias da vida e nos predispõem a apreciar as suntuosidades, nos períodos em que nos prepara para enfrentarmos sem temor as vicissitudes da sorte. Quando, então, dizemos que o prazer é o fim último da vida, não queremos dizer os prazeres dos dissolutos e os que consistem no gozo (dos sentidos), como acreditam algumas pessoas ¹⁶ que ignoram o nosso pensar ou não concordam com ele ou o interpretam erroneamente, mas (queremos dizer) o não sofrer no corpo e o não perturbar-se na alma ¹⁷.


III.  NOTAS EXPLICATIVAS (basicamente tradução de notas explicativas da edição grega a cargo do editor Odysséas Chatsópoulos, com exceção da Nota nº 3, por Francisco José dos Santos Braga)


¹  Na abertura da carta Epicuro deixa claro que a filosofia é para todos; ninguém é muito jovem ou muito velho para a filosofia e recusá-la a outrem equivale a tirar-lhe o direito à felicidade. Trata-se de uma prova inabalável dos democráticos pontos de vista de Epicuro, o qual não tinha nenhum desejo de criar escola fechada; aspirava, ao contrário, colocar a sua filosofia a serviço de quem quer que entrasse em contato com ela.

²  Aqui se elabora a teologia epicurista a partir da sua perspectiva ética, na medida em que influencia as pessoas. É certo que os deuses existem, porque o conhecimento sobre eles provém de noções diretas (mentais), que são comuns a todas as pessoas. Os deuses são também, conforme o senso comum, felizes e imortais; a religião, contudo, se engana quando lhes atribui a gestão do mundo e sentimentos de ódio e amor para com os homens, coisa diametralmente oposta à sua felicidade. Os deuses vivem além do mundo e não lhes diz respeito a sorte deste. Acolhendo as imagens emanadas dos deuses ("εικόνες"), é possível à pessoa conseguir participar da impassibilidade (αταραξία) deles e por essa única razão há na pessoa lugar para a religião. Desse modo, abolir o medo e tomar parte na imperturbabilidade dos deuses contribuem para a vida feliz. Entenda-se por ataraxia a tranquilidade ou imperturbabilidade absoluta da alma, que é, segundo o Epicurismo, o apanágio dos deuses e o ideal do sábio.
Não somente pelo fim que tem em vista, mas também pela sua natureza, o saber humano fica rebaixado. Todo conhecimento é, para os epicuristas, apenas percepção sensível, e nada mais. Por isso, o Epicurismo é sensualista e materialista, dando seguimento a seu modelo, o Atomismo de Demócrito. Estas percepções vêm à existência porque dos objetos emanam eflúvios (ou reflexos) que penetram nos órgãos dos sentidos. Isto se aplica, principalmente, às percepções visuais, mas o mesmo se dá com os demais sentidos; também estes são postos em movimento por meio de certos eflúvios. Esses eflúvios ininterruptos produzem a impressão do compacto e do volumoso e, portanto, a realidade corpórea. Os objetos estão continuamente emitindo tais eflúvios, dando origem às percepções sensíveis da primeira espécie, formando o conhecimento propriamente dito, esgotando-lhe toda a possibilidade. Nisto consiste a percepção sensível normal, ficando assim garantida a percepção da realidade.
Há também eflúvios da segunda espécie, tênues como teias de aranha, que estão fora dessa incessante emissão, não encobrindo nenhuma realidade. Tais eflúvios não penetram em nós pelos órgãos sensoriais, mas pelos poros da pele e tomam a direção do coração. Geram imaginações vãs e representações fantasiosas.

³  Observe que Epicuro utilizou o genitivo του καλώς ζην (do bem viver, conforme minha tradução), um conceito muito caro aos frequentadores da escola que Epicuro dirigiu no seu Jardim (Κήπος του Επίκουρου), em Atenas, a partir de 306 a.C. E foi devido a esse Jardim de Epicuro que os epicuristas receberam a denominação - "os do Jardim" (οι από τον Κήπον).

  Deus é ser vivo; contudo, sua própria constituição o diferencia de todos os seres restantes.

O segundo grande princípio, ou seja, que a morte não nos diz respeito, é novamente analisado do ponto de vista ético. Ter uma compreensão real da natureza dos deuses nos liberta do medo na vida, assim também saber que a consciência cessa com a morte nos liberta do medo referente a uma próxima vida. Além disso, uma vez que a morte não será terrível quando chegar, não há razão para nos perturbar a sua espera.

   Tanto no mundo físico quanto no moral, a sensação ou percepção dos sentidos (αἴσθησις>estesia=sentimento do belo, sensibilidade, emoção) constitui o critério supremo, apenas que aqui toma a forma da paixão (consciência interna do prazer e da dor, que é a medida do bem e do mal).

À primeira vista, essa conclusão soa como algo inesperado; contudo, para Epicuro, o medo da morte não é apenas o maior de todos os medos, mas também causa de todas as coisas terríveis.

Ettore Bignone considera que aqui Epicuro faz referência a Epicarmo (poeta cômico grego natural da ilha de Cos, que passou sua vida em Siracusa, onde morreu em 450 a.C.); já segundo Bailey, o filósofo avançou mais provavelmente uma tentativa de confrontação com as concepções populares sobre a morte, a saber, que a morte não será algo doloroso quando vier, mas que o nosso pensamento sobre tal coisa é doloroso. Epicuro pensa que ambas se identificam. Não tememos a chegada de nenhuma coisa que não seja penosa quando chegar. É possível respondermos que o pensamento da morte é penoso porque a morte significa a pausa de todo prazer presente, ao que Epicuro responderia que "não estaremos lá para o compreendermos".

  Tendo desenvolvido seu ponto de vista, agora Epicuro se volta para as crendices comuns. Então, inicialmente afirma que as pessoas são inconsequentes, pois umas vezes temem a morte como a maior de todas as coisas terríveis e outras vezes a abraçam como a libertadora de suas perturbações. O homem sábio, por sua vez, não teme a morte nem deseja evadir-se da vida; não pretende que a vida seja mais duradoura, mas mais feliz.

¹⁰  Já na mitologia aparece esse pessimismo radical. Sileno o diz ao rei Midas: "o melhor para o homem, quando muito, é não nascer, e o que o segue imediatamente é morrer quanto antes". Essa mesma frase encontra-se em Sófocles e em Aristóteles (no diálogo Eudemo ou Sobre Alma, embora tenha chegado até nós através de Plutarco). Igualmente, aparece essa mesma ideia em Eurípides (nas tragédias Cresfontes e Belerofonte) e em Baquílides, como informou Antonio Ruiz de Elvira, em "La herencia del mundo clásico: ecos y pervivencias", pp. 208-209. Algo simelhante diz também Têognis. Vide Théognis. Poèmes Elègiaques, versos 425-427. Por outro lado, faz-nos lembrar também a teoria sobre a degeneração da cultura que Hesíodo desenvolve em Os Trabalhos e os Dias. Todas essas citações levam muitos autores a concluir que os Gregos tiveram uma visão pessimista da vida. Por isso mesmo, pode-se imaginar quão revolucionárias foram as ideias epicuristas para esta cultura impregnada por essa visão da vida e da morte.

¹¹  Esta passagem se encerra com um breve aforismo quanto à visão correta sobre o futuro: não devemos pensar que ele nos pertence, nem também que não nos pertence. Está nas mãos do verdadeiro epicurista desfrutar os prazeres da vida e, ao mesmo tempo, ser independente de quase tudo que lhe guarde o futuro.

¹²  Depois que se referiu aos dois pressupostos para a vida bem-aventurada - a correta consciência da natureza dos deuses e a real consciência da morte, - Epicuro dedica o restante da carta à exposição da sua teoria ética. Referindo-se ao objetivo da vida e ao modelo de comportamento correto, Epicuro não segue o raciocínio que já apresentou (124. 8: porque todo bem e todo mal reside na sensação), para mostrar o prazer como fim último baseando-se na natureza fundamental do prazer, que é o único sentimento no campo ético. A carta dirige-se ao público mais amplo e consequentemente prefere chegar ao seu objetivo através dos processos mais tradicionais e menos epicureus. O motivo de toda ação é o desejo; a hierarquização dos desejos consente como sedimento "indispensável" a saúde do corpo e a serenidade da alma, coisa que implica ausência de dor, tanto no corpo quanto na alma, e a ausência da dor certamente é o prazer. O prazer, então, é a causa e o objetivo da vida. Observamos que para Epicuro o prazer não constitui (proposição) gozo, como era, por exemplo, para a escola cirinaica, mas (negação) libertação da dor, coisa que alguns filósofos não consideravam como prazer mas como situação neutra ou indiferente. Essa distinção tem importância fundamental para toda a especulação ética epicurista: para Epicuro a vida correta depende essencialmente da consciência exata dos limites.

¹³  Tendo colocado o prazer como objetivo das ações, é necessário a seguir analisar o que significa isso na prática. Segundo Epicuro, significa que, apesar de todos os prazeres serem por si mesmos um bem, porque são naturais para nós, há alguns que precisamos evitar por causa da dor que têm como resultado. Correspondentemente, há algumas dores que deveremos escolher, devido ao prazer que é causado por suavização delas. Finalmente, todas as coisas são assunto de reflexão: é preciso contrabalançarmos prazeres e dores e escolhermos aquele caminho que finalmente conduz ao maior prazer e menor dor. Deveremos aqui parar em dois pontos: primeiro, que chegamos a algo que parece muito com o pensamento utilitarista do prazer e, segundo, que, apesar de Epicuro desmentir as difamações contra a visão popular do Epicurismo e rejeitar todo prazer exagerado, não abandona o seu principal ponto de vista de que o próprio prazer constitui um bem, e que, por essa exata razão, devemos evitar os prazeres que implicam dor.

¹⁴  Epicuro continua com a aplicação prática do seu princípio que é a escolha dos prazeres, apenas os que não se relacionam com a dor. A auto-suficiência é uma virtude que é elogiada por todos (constituía também o objetivo ético dos Estóicos) e se for aplicado aos prazeres significa "tornar-se independente dos desejos". Isso nos orienta para sermos felizes com as simples alegrias (prazeres), que não provocam reações contrárias. E ademais, embora o prazer seja apenas suavização da dor, a comida e a bebida simples podem nos dar uma prazer tão pleno quanto a mesa mais abundante. Finalmente, acrescenta quase cinicamente: se nos acostumarmos à simplicidade, teremos sido preparados melhor para o desfrute da suntuosidade, quando quer que nos apareça.

¹⁵  Tendo explicado analiticamente o que significa na prática ser o prazer objetivo da vida, Epicuro pode agora confrontar os falsos conceitos. Não incitou a bulimia nem o sensualismo, que têm como resultado maiores males, mas propõe a suprema felicidade da vida simples, a qual satisfaz as necessidades do corpo e mantém a mente longe das perturbações e, em consequência, livre para ocupar-se do estudo da filosofia.

¹⁶ Existem três categorias de pessoas que se equivocam: aqueles que não conhecem o ponto de vista correto, aqueles que o conhecem mas que não concordam com ele, - os filosoficamente adversários, - e aqueles que não podem compreendê-lo.

¹⁷ Tendo colocado o caráter geral do seu ideal, Epicuro avança no método da própria aquisição. É claro que o curso correto da ação não é ditada pelo instinto, como poderíamos supor, uma vez que os prazeres não são simplesmente coisas boas, mas coisas escolhidas. Para alguém viver uma vida realmente prazerosa, é indispensável ter "julgamento correto para todas as coisas", para se basear na reflexão do menos e do mais, no que se refere ao prazer e à dor. Esse julgamento correto Epicuro caracteriza como prudência, porque sempre os filósofos diferenciam entre a sabedoria prática e a mental; é simultaneamente o "princípio" de cada passo para a direção correta e o "melhor bem" que a pessoa pode atingir. A prudência é mais preciosa do que a filosofia pura, a qual não pode ser posta em prática, mas pode apenas constituir a base da prática ao ponto de ser conhecimento prático das circunstâncias.

CONTINUA NA PARTE 2

12 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Apresento ao leitor do Blog do Braga minha tradução de um texto considerado crucial para entender a filosofia de Epicuro. Trata-se da CARTA DE EPICURO A MENECEU.
Esta é uma tradução mais literal do que literária, buscando ser fiel à ideia do filósofo grego. Outras traduções em língua portuguesa, bem como a tradução de Octave Hamelin citada na bibliografia, incorreram no risco de desvirtuar a ideia do autor, que é bastante científico, seguidor do Atomismo, mas que rejeita o determinismo de Demócrito.
Finalmente, para fazer a tradução, esclareço que me servi basicamente da edição bilíngue (grego antigo e moderno), da Cactus Editions de Atenas, tomo 284 referente a Epicuro, Livro X do livro intitulado VIDAS DOS FILÓSOFOS, da autoria do polígrafo Diógenes Laértios, que teve o mérito de preservar a referida carta de Epicuro.

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Bom dia

Estimado Amigo.

Muito obrigado.

Bom domingo.

Abraço.

Diamantino

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Prezado Braga,
Bom dia!
Sempre provas teu vasto conhecimento histórico e nós somos beneficiados.
Parabéns, mais uma vez!

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador do TJMG, escritor e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Que falta faz a lição grega!

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Acabo de abrir o seu e-mail. Muito interessante! Agradeço pelo envio e lhe parabenizo por mais essa pesquisa hitórico-literária.

Abraços, Mario.

José R. B. Bechelaine (escritor, orador, Acadêmico da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Caro confrade,
Felicito-o por este magnífico trabalho. É de grande valor e revela uma grande erudição linguística, literária, filosófica e histórica (coisa rara atualmente). Tenho grande interesse pela filosofia de Epicuro, que estudei um pouco.
J. R. Batista Bechelaine

Rafael dos Santos Braga (pesquisador e bacharel em Filosofia pela UFSJ) disse...

Vou fazer questão de lê-las! Meus parabéns!

Dra. Merania de Oliveira (jornalista e viúva do ex-presidente da Academia Marianense de Letras, Dr. Roque Camêllo) disse...

Dr. Francisco,
Paz, saúde e alegria!

Agradeço-lhe muito suas ricas mensagens.
Pena que neste momento não tenho tempo para estudá-las como eu gostaria.
Irei repassá-las para um amigo, filósofo, prof. Allan.
Abraços extensivos à querida Rute.
Merania

Allan Autran disse...


Prezada Merania,

Paz, saúde e alegria!

Agradeço a gentileza em enviar-me os textos da Carta de Epicuro a Meneceu, pois, além de interessantes, são uma verdadeira fonte de cultura para o entendimento deste ramo filosófico.
Terei imenso prazer em ler, analisar e assim, agregar mais conhecimentos culturais acerca da Filosofia.

Atenciosamente,
Prof. Allan

Prof. Cupertino Santos (professor de história aposentado de uma escola municipal em Campinas) disse...

Caro professor Braga!
É fascinante ler sua tradução, tendo em vista a forma rigorosa e cuidadosa com que a faz. O fundo ético que norteia as absolutamente sensatas observações de Epicuro acerca daquilo que nos é mais central na existência, o entendimento da natureza da divindade e das regras de bem viver - questão desenvolvida depois pela Escola do Estoicismo - é fundamental na visão de mundo do Ocidente naquilo que diz respeito ao equilíbrio, inclusive na própria ciência.
Parabéns pelo trabalho e divulgação.
Obrigado.

Profª Fátima Aparecida Ferreira disse...

Olá!
Prezado Mestre.
Sr. Francisco José dos Santos Braga.

Agradeço o envio do documento com seu precioso trabalho.
Parabéns!
É uma satisfação poder conhecê-lo.
Um forte abraço.
Obrigada!
Excelente Domingo.
Att,.Professora Fátima Aparecida Ferreira.
Membro da AMEF (Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos)

José Maurício de Carvalho (professor titular aposentado da UFSJ, professor do Centro Universitário Presidente Tancredo Neves - UNIPTAN, membro do Instituto de Filosofia Brasileira, do Instituto de Filosofia Luso-brasileira com sede em Lisboa, da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos-AMEF) disse...

Parabéns, Braga. Li o seu cuidadoso trabalho. Mauricio.