Por Francisco José dos Santos Braga
“Todo mundo pensa em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo.”
Liev Tolstói  |
Monumento ao escritor russo Liev Tolstói, erigido na rua Povarskaia em Moscou |
FUGA DO PARAÍSO
Vinte e três dias antes de sua morte, o conde Liev Nikoláievitch Tolstói, aos 82 anos de idade, fugiu de casa e se escondeu da mulher. O horário de três horas da madrugada do dia 28 de outubro de 1910 marcou a fuga dele do conforto, há 114 anos atrás.
Tolstói é conhecido no mundo todo, graças a seus romances como Guerra e Paz (1865-69), Anna Kariênina (1873-79) e Ressurreição (1899). Mas sua vida não foi menos significativa do que suas obras literárias. Ele se tornou um símbolo da busca pela verdade, do renascimento espiritual e da rejeição das normas sociais convencionais para discípulos e adeptos do Tolstoísmo.
Perto do fim de sua vida, Liev Tolstói se distanciou cada vez mais da vida cotidiana da nobreza. Ele passou a desprezar a riqueza, concentrando-se em seus ideais morais, que incluíam a renúncia à propriedade e aos direitos de autor, cedendo-os aos pobres ou ao mundo, e a busca pela simplicidade espiritual. Suas opiniões causaram tensão na família, especialmente em sua esposa Sófia Andrêievna, que acreditava, com razão, que ele deveria pensar não apenas em altos ideais, mas também na família, que ficaria sem sustento, lembrando-lhe, além disso, que, até aquela altura, ela sozinha se encarregara da administração da sua propriedade (Iásnaia Poliana).
Tendo experimentado essa crise existencial que o levou à transformação de vida, a consequência imediata para ele foi seguir os princípios morais que considerava justos. Sendo um aristocrata russo (conde) do século XIX, isso implicava enormes contradições. Sobretudo, no seu caso, significava, quanto a seus escritos, renunciar à escrita de romances fictícios, a exemplo de Guerra e Paz e Anna Kariênina, — Ressurreição seria uma exceção —, e também ao sexo e ao matrimônio por considerá-los distrações burguesas distantes da perfeição espiritual.
Quando Tolstói já era um homem com 51 anos, e o ano era 1879, ele pensou seriamente em por fim à sua vida, sem uma razão aparente. Como o próprio Tolstói diz,
“era casado com uma esposa dedicada, tinha filhos saudáveis e desfrutava o padrão de conforto próprio à elite russa da época.”
Não obstante, na mesma época, foi assaltado por uma profunda reflexão sobre o sentido da vida (e da morte). Boa parte dessas reflexões está descrita em Uma Confissão (1882), livro só publicado oficialmente em 1906, quatro anos antes de sua morte, o qual causou desconforto na cúpula da Igreja Ortodoxa russa, “que, na época, detinha enorme poder e era parte integrante do Estado e do regime autocrático”. Conforme bem nota Rubens Figueiredo, seu tradutor para a língua portuguesa, esse questionamento do escritor frente à fé praticada e o sentido da vida (e da morte) “tem o mesmo teor de crises vividas por vários personagens de Tolstói, em livros como Anna Kariênina, Guerra e Paz, e mesmo em contos dos seus primeiros anos de carreira, e até em obras posteriores, como A Ressurreição.” A diferença é que agora “não há a mediação de personagens de ficção: trata-se, muito mais, de um depoimento pessoal”, como indica, aliás, o próprio título desta última obra.
Na maturidade, Tolstói se converteu ao cristianismo e abdicou da atividade de romancista, dedicando sua vida a ações centradas em Deus, inclusive a uma espécie de ativismo social. Ele se tornou, na prática, um profeta, abraçando valores cristãos, o pacifismo, o vegetarianismo, a abstinência de álcool e tabaco, e até mesmo de sexo. Também se tornou um defensor dos pobres, e suas ideias sobre reforma da terra e distribuição da riqueza eram consideradas radicais na época.
De fato, a partir de 1880, observa-se que ele se tornou um moralista extremista e, numa série de panfletos, expressou sua repulsa em relação ao Estado, à Igreja e às fraquezas da carne, denunciando a propriedade privada. Sobretudo, Uma Confissão marcou essa crise espiritual em sua vida.
Tolstói não poupou a interpretação que a Igreja fazia dos ensinamentos morais de Jesus e criticou-a abertamente:
“Não em orações, missas, velas e ícones está o ensinamento de Cristo, mas no fato de que as pessoas se amam, não pagam o mal com o mal, não julgam, não matam umas às outras.”
Ele entendeu a ideia de oferecer a outra face como a resistência ao mal pela não-violência. Essa visão fez com que Tolstói criticasse o Estado e desenvolvesse uma experiência de vida comunitária em sua propriedade rural, Iásnaia Poliana.
As implicações políticas do cristianismo de Tolstói evoluíram ao longo das últimas três décadas de sua vida. Em geral, ele se opunha à revolução violenta como forma de acabar com a violência dos governos. Como ele dizia, a História tinha mostrado que não se derrotava um governo sem que houvesse consequências violentas. Ele aprendeu muito sobre isso em sua leitura dos livros sagrados budistas e hindus. Entendia o princípio do carma, e considerava que a violência só levava a mais violência. O indivíduo precisava, de alguma maneira, romper esse ciclo destrutivo.
Liev Tolstói era um anarquista (embora ele não se considerasse um). Mas seus textos não deixam dúvida. Ele pregava o fim de toda espécie de governo bem como o fim de todo sentimento de patriotismo, que para ele, além de ser altamente danoso, figurava o princípio de todas as guerras. Tomando como exemplo o próprio Jesus Cristo — que foi morto injustamente e sem oferecer nenhuma resistência —, Tolstói foi um dos principais “profetas” a pregar a Revolução Não-Violenta. Sua filosofia a esse respeito influenciou diretamente Gandhi, que chegou a trocar algumas cartas com o profeta russo.
Em fevereiro de 1901, o Sínodo da Igreja Ortodoxa Russa, assustado com a crescente fama de profeta que Tolstói tinha em toda a Rússia e vendo-o como uma grande ameaça contra toda a tradição cristã, acusa-o de insolência contra o Senhor, contra Cristo e contra toda a herança sagrada e, considerando-o um herege, decide excomungá-lo publicamente da comunhão da Igreja. Observe-se, entretanto, que um anátema não foi imposto ao escritor pela Igreja. Houve, sim, apenas a decisão do Sínodo, condenando Tolstói por suas críticas aos ensinamentos da Igreja e indicando que tais opiniões não deveriam ser toleradas de forma alguma. A essa definição do Sínodo, a resposta do Conde foi ainda mais severa. Ele não suavizou seus pensamentos nem os revestiu de belas frases. A resposta foi implacável: rejeitou, como absurdos, alguns dogmas da Igreja.
Tolstói queria se livrar de uma vida cheia de concessões. Ele acreditava que seu ambiente confortável em Iásnaia Poliana contradizia os princípios que ele pregava. Esse desejo de ascetismo o levou a dar um passo radical: ele decidiu fugir de casa.
No outono de 1910, ou mais precisamente, em 28 de outubro de 1910, Tolstói deixou Iásnaia Poliana secretamente. Ele não levou nada consigo, exceto um conjunto mínimo de coisas. Acompanhado de seu médico D.P. Makovitski, ele partiu em uma jornada, na esperança de começar uma nova vida. Não foi apenas uma fuga. Foi um gesto simbólico que pretendia mostrar que a vida humana deveria ser livre de amarras materiais e sociais. No entanto, o caminho de Tolstói acabou sendo muito mais difícil do que ele esperava.
Sua esposa, ao saber da partida do marido, ficou histérica. Ela até tentou cometer suicídio duas vezes por afogamento, mas sobreviveu.
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Conde Liev Tolstói na sua fuga do paraíso
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Itinerário da última viagem de Tolstói
A
jornada de Tolstói começou na estação de Shokino. Tolstói não pensou na
rota e nos locais de parada com antecedência. Depois de chegar à
estação de Gorbatchov de trem, fez baldeação e dirigiu-se para Kozelsk.
De lá, Tolstói seguiu a cavalo em direção a Shamordino. Teve que passar a
noite na pousada do mosteiro em Optina Pustyn. Lá ele conversou com o Padre
Mikhaíl sobre os anciãos até a segunda metade do dia seguinte.
Aproximadamente às 16 horas do dia 29 de outubro, Tolstói deixou Optina.
À noite, Tolstói já havia chegado ao Mosteiro Shamordino, onde estava
sua irmã monja. Infelizmente, não se sabe o que o escritor conversou com
sua parenta.
É
claro que Tolstói, excomungado da igreja, não pôde permanecer nas
proximidades do mosteiro por muito tempo. Ele começou a procurar uma
casa para morar em Shamordino, mas longe do convento. No entanto, os
planos de Tolstói foram frustrados no dia seguinte ao de sua chegada
para ver sua irmã, porque sua filha Alexandra (apelidada “Sasha”) apareceu em
Shamordino. Ela contou ao pai sobre a condição de sua mãe, informando ainda que
ela sabia de sua localização. De acordo com as lembranças de Sasha,
Tolstói fugiu imediatamente de Shamordino.
Ele
partiu na manhã de 31 de outubro com várias acompanhantes para Kozelsk.
Lá, o escritor embarcou no trem número 12, que seguia para o sul.
Tolstói ainda não tinha um plano de viagem específico. Após consultar
seus companheiros, Tolstói decidiu ir para Novotcherkassk, onde morava
Elena Denisenko, sua sobrinha. Em Novotcherkassk, Tolstói queria obter
passaportes estrangeiros para partir para a Bulgária. Mas, a caminho da
cidade, Tolstói pegou um resfriado e desenvolveu pneumonia. O escritor
foi forçado a desembarcar do trem em Astápovo, o assentamento mais
próximo. ²Sua temperatura subiu e sua respiração ficou difícil. Seus companheiros entenderam que algo sério estava acontecendo com ele. Na estrada, ele recusou a maioria dos confortos, preferindo dormir em condições modestas, o que só piorou seu estado. Mas mesmo em sua doença ele continuou a refletir sobre a vida, expressando seus pensamentos aos seus companheiros. Tolstói pretendia alcançar um de seus seguidores espirituais, mas suas forças o abandonaram no caminho. Teve que parar na estação mais próxima – na pequena vila de Astápovo. Este lugar se tornou o último ponto em sua rota. Quando ali chegou, o chefe da estação local, Ivan Ozolin, forneceu-lhe uma pequena casa onde ele poderia ficar. Foi um gesto muito modesto, mas o mais adequado a Tolstói.
Sua morte em 20 de novembro de 1910 foi tão incomum quanto sua própria vida. Enfraquecido pela doença, ele morreu longe de casa, no modesto ambiente da pequena estação ferroviária de Astápovo, tendo inclusive prescindido da presença de padre em seu leito de morte. Este evento não se tornou apenas notícia, mas um evento do mundo real. Centenas de pessoas assistiram aos seus últimos dias e dezenas de milhares discutiram o simbolismo de sua morte.
Por que o grande escritor russo decidiu sair de casa? O que o trouxe a esta pequena estação e como ele passou seus últimos dias? Dentre inúmeras biografias excelentes de Tolstói, A Fuga do Paraíso, de um autor russo, Pável Bassínski, se destaca por ter feito uma habilidosa reconstrução dos últimos dias do genial escritor, ao transformar o que poderia ser uma biografia acadêmica em uma investigação dinâmica e magistral, emocionante e envolvente como um romance de ficção, na qual o leitor acompanha passo a passo a fuga de Tolstói, sua trágica situação familiar e os segredos que cercam a assinatura de seu testamento. Hoje vamos relembrar essa história, que ainda surpreende pela sua simplicidade e profundidade. Ela nos lembra que até mesmo os maiores gênios continuam sendo pessoas em busca de respostas para as grandes questões da vida.
REVIRAVOLTA ESPIRITUAL E MUDANÇA DE CRENÇAS E VALORES
A reviravolta que aconteceu com Tolstói foi o primeiro pré-requisito para sua fuga.
Ele tinha sido o primeiro, tanto a renunciar aos direitos autorais, quanto a se opor ao sistema estatal e, por ter pregado o regresso ao cristianismo de origem e por negar autoridades religiosas, foi excomungado pela Igreja Ortodoxa. Também teve o seu nome indicado três vezes para o Prêmio Nobel da Paz contra a sua vontade, odiava o dinheiro e ficou do lado dos camponeses (mujiques).
Mujiques, no início do século XX, por Serguêi Prokúdin-Górski, pioneiro da fotografia em cor - Crédito pela foto: Universal History Archive/Getty Images
Para os filhos desses, criou uma escola gratuita em 1859 na sua propriedade de Iásnaia Poliana, ocasião em que tinha apenas trinta anos de idade. Posteriormente, não apenas os filhos, mas também seus pais e outros adultos passaram a frequentar a mesma escola. Para os que frequentavam sua escola escreveu inúmeros contos populares (1880), nos quais apresentava uma nova moral como orientação educativa. Foi nessa fase de sua vida — que se convencionou chamar de “mística” —, que Tolstói se apercebeu de seu estado espiritual e de sua redenção moral.
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Tolstói com filhos de mujiques na Festa da Santíssima Trindade (17/05/1909) - Crédito Thomas Tapsel
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Um homem de família exemplar, Liev Tolstói passou muitos anos defendendo e transmitindo a importância dos valores familiares em seus romances. Amor, casamento, filhos — ele considerava tudo isso o sentido da vida, juntamente com o constante aperfeiçoamento espiritual. Entretanto, na década de 1880, já com mais de 50 anos, Tolstói passou por uma forte convulsão interna. Ele muda sua atitude em relação à religião, fica desiludido com a Igreja e com o casamento como uma união sagrada entre um homem e uma mulher.
Sua atitude em relação à propriedade privada também muda: Tolstói tenta se libertar da riqueza, começa a usar a camisa lendária e a trabalhar a terra junto com os camponeses. Na década de 1880, o escritor desenvolveu uma ideia obsessiva de renunciar a tudo o que era “corrupto”: o estilo de vida senhorial, sua fama e dinheiro. Ele vê que a única maneira de acabar com isso seria sair de casa e levar quase uma vida de vagabundo, “fundindo-se com o povo”.
Também fez de tudo para impedir uma grande celebração de seu próprio 80º aniversário em 1908. “O desejo de se esconder do peso da fama era para ele uma tarefa tanto pessoal quanto social e artística, buscando maneiras de reduzir sua própria presença não apenas no processo literário, mas também no próprio texto”, escreve o historiador cultural e crítico literário, Andrei Zorin, em sua biografia “A Vida de Liev Tolstói. A Experiência da Leitura”.
Outra vertente de pesquisa de uma nova faceta do autor russo — a do Tolstói documentalista nos seus últimos anos de vida — é constituída por autores que a investigam e pesquisam. A literatura documental ou literatura de não ficção (non-fiction) é aquela que se baseia em fatos reais, documentos, depoimentos e memórias, limitando ao mínimo a invenção criativa, isto é, artística. Data de 10 de julho de 1893 uma carta de Tolstói a Nikolai Leskov (1831-1895), romancista russo e colaborador da revista Época, em que revela sua descrença no gênero ficcional que tinha adotado até então:
“É vergonhoso escrever sobre pessoas que não existiram e não fizeram nada daquilo. Algo está errado. Será que este gênero artístico está se esgotando, as narrativas se tornam obsoletas ou eu me torno obsoleto.”
Para Vladímir Solomonovitch Pozner, autor do livro Tolstoï est mort (ou Tolstói está morto, em português), “ele inventou um gênero literário à parte, que justapõe testemunhos, relatórios, recortes de jornais, trechos de declarações, documentos ou despachos. Evocando a técnica de edição de filmes, esses livros fornecem múltiplos insights sobre determinados tópicos”.
Dentre os autores contemporâneos que mais se destacam por se voltarem para o gênero documental explorado por Tolstói em seus últimos anos, podemos citar: Jay Parini (A última estação, Rio de Janeiro: Rocco, 1991), o já citado Pável Bassínski (Tolstói: A fuga do paraíso, São Paulo: Leya, 2013), Ígor Vólguin (Retirar-se de todos: Lev Tolstói como peregrino russo, Moscou: VK, 2010) e Marina Balina, autora do artigo intitulado Literatura non-fiction: invenções e realidade, Moscou: revista Znánia, jan. 2003. ¹
Tchértkov: uma carga nos ombros de Tolstói?
Nesses impulsos, Tolstói conta com o grande apoio de seu admirador e assistente pessoal, Vladímir Tchértkov. Ele exerce grande influência sobre o escritor, realizando visitas frequentes e não solicitadas a Iásnaia Poliana, chegando a sugerir que Tolstói abandone a família, onde sua nova filosofia supostamente não é compreendida.
Tchértkov torna-se um verdadeiro incômodo para Sófia Andrêievna. O clima na família se aquece, e há conflitos constantes entre os cônjuges por sua causa.
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Tchértkov e Tolstói
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“Sasha”, filha caçula de Tolstói, foi a que mais resoluta e ardentemente apoiou o pai na revolução que assolou a família. Aliada a Vladímir Tchértkov, acabou servindo como secretária, amiga dedicada e confidente de seu pai. Ela compartilhava sua visão humanística, seu profundo desejo de mudança e regeneração social e pessoal, e considerava sua mãe um obstáculo aos nobres anseios paternos. A ela, ele legou todos os direitos sobre suas obras.
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Sasha e seu pai Tolstói - Crédito: Getty Images
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Tolstói com sua filha Sasha, na praia (1901)
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Antecedentes de tentativa de fuga
“Hoje ele gritou em voz alta que seu pensamento mais apaixonado era deixar a família”, escreve Sófia Andrêievna em seu diário no verão de 1882.
Depois (1884), outro conflito surgiu: ela acusou Tolstói de ser irresponsável com o dinheiro da família e ele saiu de casa com apenas um saco de roupas. “A meio caminho de Tula, ele retornou por causa do parto iminente de sua esposa. No dia seguinte, nasceu sua filha mais nova, Alexandra”, escreve Andrei Zorin.
Depois de 12 anos, Tolstói quer partir novamente e chegou a escrever uma carta de despedida para Sófia: “(...) Eu também não poderia deixá-la até agora, pensando que privaria as crianças, enquanto eram pequenas, de pelo menos aquela pequena influência que eu poderia ter sobre elas...”. No entanto, ele nunca envia a carta e fica em casa.
Finalmente, em 28 de outubro de 1910, antes de deixar Iásnaia Poliana, Tolstói escreveu uma carta para sua esposa. Dizia ele:
“Minha partida vai aborrecê-la. Lamento, mas compreenda e acredite que não poderia ter agido de outra forma. Minha situação em casa está se tornando insuportável. Além de tudo, não posso mais viver nas condições de luxo em que vivi e estou fazendo o que os idosos da minha idade costumam fazer: deixando a vida mundana para viver em solidão e silêncio os últimos dias de suas vidas.
Por favor, entenda isso e não me siga, mesmo que descubra onde estou. Sua chegada só piorará a sua situação e a minha, mas não mudará minha decisão. Agradeço pelos seus honestos 48 anos de vida comigo e peço que me perdoe por tudo o que lhe fiz de errado, assim como eu a perdoo de todo o coração por tudo o que você poderia ter feito de errado comigo. Aconselho você a se conformar com a nova posição em que minha partida a coloca e a não ter nenhum ressentimento contra mim. Se você quiser me dizer alguma coisa, diga à “Sasha”, ela saberá onde estou e me enviará o de que preciso.
“Mas ela não pode lhe dizer onde estou, porque eu a fiz prometer que não contaria a ninguém.”” Assim começou a última peregrinação do Conde Tolstói.
Tolstói expõe, então, as contradições entre pensamentos pecaminosos e o desejo de levar uma vida justa, como no seu conto “Padre Sérgio”, em que a narrativa começa com um belo oficial rompendo seu noivado, abandonando seu serviço promissor e indo para um mosteiro.
Sobre a ida para o mosteiro, cabe lembrar que, como muitos outros de seus colegas intelectuais, Tolstói foi atraído pelos eremitas do Mosteiro Optina Pustyn, — monges que haviam se afastado da hierarquia eclesiástica ressuscitando as tradições ascéticas dos primeiros Pais da Igreja, e que eram reverenciados por sua sabedoria espiritual. Contudo, descobriu que a maior sabedoria não estava ali, mas nos mujiques. Aparentemente, sob o peso da depressão, crise espiritual, temor da morte e ideias suicidas, porventura não teria Tolstói sonhado com tal destino: tornar-se um “strannik”, mais um da seita dos milhões de peregrinos que cruzavam a Rússia a caminho dos monastérios santos, com vestimentas de mujiques, que passavam a vida indo a pé em romaria de um mosteiro a outro, vivendo de esmolas?
A figura central de Sófia Andrêievna
Como todas as mulheres daquela época, Sófia dava à luz uma criança por ano. Ela teve 13 filhos no total, mas apenas oito sobreviveram. Devido à amamentação contínua, ela desenvolveu inflamação nas glândulas mamárias, mas continuou amamentando as crianças sozinha. Finalmente ela ficou arrasada com a morte de seu filho Vánia, de 8 anos. Ela foi forçada a cuidar do marido, passou por uma grande tragédia e acabou não conseguindo superar seu trauma.
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O casal Tolstói e seus 8 filhos sobreviventes
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No início, ela desenvolveu mania de perseguição e ideias obsessivas. Constantemente remexia nas coisas do marido e ouvia suas conversas. Um ano depois, ela começou a ter convulsões e raiva incontrolável. Parentes ligaram para psiquiatras que nela diagnosticaram “uma dupla constituição degenerativa: paranóica e histérica, com a primeira predominando”.
Sófia Andrêievna sobreviveu à morte do marido por nove anos, durante os quais mãe e filha (“Sasha”) acabaram reconciliando-se. E vale acrescentar: graças a Sófia, agora temos museus com manuscritos e pertences pessoais de Liev Tolstói.
Diferente interpretação sobre a decisão de Liev Tolstói
Há também uma versão não oficial da morte de Liev Tolstói, apresentada no exílio por I.K. Sursky, segundo as palavras de um policial russo. De acordo com esta versão, antes de morrer o escritor queria fazer as pazes com a Igreja e foi até Optina Pustyn com esse propósito. Ali ele aguardou ordens do Sínodo, mas, sentindo-se mal, foi levado por sua filha “Sasha”, que havia chegado, mas infelizmente não passou da estação de Astápovo, onde encontrou a própria morte.
Estação de Astápovo: o último refúgio
Esta pequena estação ferroviária na região de Lipetsk é agora chamada de "Liev Tolstói". Em 1910, a atenção nacional voltou-se para Astápovo. Em 13 de novembro, poucos dias depois de sair de casa, Tolstói, gravemente doente, foi levado para a casa do chefe da estação – não havia lugar mais confortável disponível. O escritor estava praticamente inconsciente e com falta de ar. Vários médicos tentaram salvar Tolstói, mas ele pediu para não o incomodar – e confiou na vontade de Deus, razão por que dispensou a bênção e o consolo que representaria a presença de padres em seu leito de morte.
A saúde de Tolstói era motivo de preocupação nos mais altos círculos – até mesmo as autoridades da capital convocavam reuniões, enquanto os governadores locais, o Ministério do Interior e as autoridades ferroviárias incumbiam a polícia local e os funcionários da estação de telegrafarem com a maior frequência possível.
Os jornalistas foram os primeiros a alcançar Astápovo, mas gradualmente pessoas de todas as classes sociais e níveis hierárquicos começaram a chegar, assim como um grande número de admiradores do escritor. “Tinha-se a impressão de que, durante esses sete dias na estação, o destino do império estava sendo decidido, e que o globo inteiro estava assistindo”, escreve Bassínski.
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Multidão de autoridades, jornalistas, admiradores e seguidores do Tolstoísmo na Estação de Astapovo
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Antes de qualquer outra pessoa, o primeiro a visitar Tolstói foi seu assistente Tchértkov. Tolstói afirmou categoricamente que não queria ver a esposa, e até temia que ela viesse, gritando em delírio à noite: “Fugir... Fugir... Dar o fora...”.
Mesmo assim, Sófia Andrêievna foi a Astápovo – ela sabia da impotência do marido na vida cotidiana e estava muito preocupada: “Quem lhe dará manteiga lá?!”. Ela queria ver o marido, mas, como escreve Bassínski, “a decisão coletiva dos médicos e de todos os filhos foi não deixá-la entrar e não contar nada a Tolstói sobre sua chegada”.
Sófia Andrêievna então decidiu se comunicar ativamente com jornalistas. Ela foi filmada para cinejornais e deu entrevistas, narrando sobre quarenta e oito anos de uma vida familiar feliz.
Ela teve permissão para ver Tolstói algumas horas antes de sua morte, quando ele já estava inconsciente. Ela “caminhou silenciosamente até ele, beijou-o na testa, ajoelhou-se e começou a dizer-lhe: 'Perdoe-me' e algo mais que eu não consegui ouvir”, lembrou seu filho Serguêi.
Uma enorme multidão de pessoas foi a Iásnaia Poliana para se despedir de seu guru. De acordo com aquilo que o próprio Tolstói deixou expresso ao declarar seu último desejo, a cerimônia fúnebre não foi ortodoxa, mas secular. E o enterraram na sua propriedade patriarcal de Iásnaia Poliana, sem cruz ou monumento – apenas fizeram um monte de terra, coberto de grama.
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Museu-propriedade de Iásnaia Poliana
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II. NOTA EXPLICATIVA
¹ Cf. VÁSSINA, Elena: Lev Tolstói pelo prisma da literatura contemporânea: análise da poética dos gêneros documentais, São Paulo: Fronteira Z, nº 18, julho de 2017, pp. 148-166.
III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALINA, Marina. Literatura nonfiction: invenções e realidade. [БАЛИНА, Марина. Литература non fiction: вымыслы и реальность.] Známia, Moscou, jan. 2003. Disponível em: http://magazines.russ.ru/znamia/2003/1/r1.html. Acesso em: 15.05. 2025.
BARTLETT, Rosamund: Tolstói. A biografia. Link: https://repensar.noblogs.org/files/2016/01/Tolst%C3%B3i-A-Biografia-Rosamund-Bartlett.pdf
BASSÍNSKI, Pavel. Tostói: A fuga do paraíso. Trad. Klara Gourianova. São Paulo: Leya, 2013
PARINI, Jay. A última estação. Trad. Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Rocco, 1991
TOLSTÓI, Lev. Coletânea das obras em 22 volumes [ТОЛСТОЙ, Лев. Собрание сочинений в 22-х томах]. Moscou: Khudójestvennaia Literatura, 1984.
VÁSSINA, Elena: Lev Tolstói pelo prisma da literatura contemporânea: análise da poética dos gêneros documentais, São Paulo: Fronteira Z, nº 18, julho de 2017, pp. 148-166. Link: http://dx.doi.org/10.23925/1983-4373.2017i18p148-166
VÓLGUIN, Igor. Retirar-se de todos: Lev Tolstói como peregrino russo [ВОЛГИН, Игорь. Уйти от всех: Лев Толстой как русский скиталец]. Мoscou: VK, 2010
ZORIN, Andrei: Leo Tolstoy (Critical Lives). London: Reaktion Books, 2020, 224 p.