quinta-feira, 12 de junho de 2025

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 22: OVÍDIO: DEUCALIÃO E PIRRA

Tradução literal do latim, introdução, comentários e bibliografia sugerida por Francisco José dos Santos Braga 
 
Heritage Images/Colaborador/Getty Images


I. INTRODUÇÃO
 
O dilúvio, segundo a mitologia grega 
 
A tradição do dilúvio, castigando a perversidade dos humanos, foi popularizada pela narração bíblica (capítulos 6 a 9 do Gênesis). Aí fala da decisão de Deus em retornar a Terra para seu estado aquoso de caos pré-criação para, em seguida, refazê-lo em uma reversão da criação. 
As lendas orientais têm o mesmo conteúdo quase nos mesmos termos, acompanhado das mesmas circunstâncias, como nos ensina o poema caldeu conhecido sob o nome de epopeia de Gilgamesh: o herói aí recolhe sua narração da boca de seu ancestral, que tinha escapado sozinho da morte no barco construído por ele, a conselho do deus Ea. 
Segundo a cosmogonia grega, o titã da segunda geração chamado Prometeu criou os homens  apenas machos  a partir do barro, presenteou-os com as artes, as ciências e a astronomia, chegando ao ponto de roubar para eles o fogo dos deuses e entregá-lo à raça humana. 
Segundo Ovídio no poema Metamorfoses, "enquanto os outros animais caminhavam em quatro patas, com o rosto voltado para o chão, o ser humano foi criado para manter a cabeça erguida, observando o céu majestoso e as estrelas brilhantes lá em cima. E a terra sofria nova mudança, dada a desconhecida forma da humanidade." Até então, a raça humana era constituída só por homens. 
Segundo Hesíodo, a vingança divina a Prometeu por ter dado o fogo dos deuses aos homens veio em forma de mulher. Por inveja dos seus feitos a favor da humanidade, Zeus, sentindo antipatia pela humanidade e para vingar-se de Prometeu, criou a primeira mulher, Pandora, e a enviou aos homens, advertindo-os de que, em troca do fogo, estava dando aos homens um mal que iria seduzi-los e que acolheriam com alegria, sem saber que estavam abraçando sua própria destruição. 
Zeus (ou Júpiter) quis destruir a humanidade por causa de sua degeneração e da negligência religiosa dos mortais, que não se dedicavam mais à reverência divina. Enviou pois um dilúvio universal, enquanto pedia a colaboração a seu irmão, Poseidon (ou Netuno), deus dos mares. As águas dos rios e dos mares inundaram toda a terra engolindo rebanhos, casas, homens e animais. 
O titã Prometeu profetizou a ocorrência do dilúvio, tendo advertido seu filho Deucalião, o mais justo dos homens e a sua sobrinha Pirra, a mais virtuosa das mulheres. Instruiu o casal a construir um barquinho, que, durante nove dias e nove noites, flutuou sobre as águas do dilúvio e acabou por encalhar no Monte Parnaso. Dessa forma, o casal se tornou os solitários sobreviventes da mitológica inundação e o casal ancestral da humanidade. 
Deucalião e Pirra tiveram vários filhos: o primeiro Heleno, que foi o ancestral epônimo dos gregos, chamados de helenos, e foi o pai de Doro e Éolo e o avô de Aqueu e Íon, respectivamente os ancestrais epônimos dos dóricos, eólios, aqueus e jônios  as quatro tribos em que os helenos dividiam a si próprios.
 
 
II. DEUCALIÃO E PIRRA (Metamorfoses de Ovídio, livro I, cap. VII e VIII,  versos 313-415) 

VII. Deucalião e Pirra: o mundo após o dilúvio
 
A Fócida, terra fértil enquanto houve terra, separa os Aônios ¹ dos campos do Eta ²; porém, naquele tempo, tornou-se parte do oceano e leito vasto de águas precipitadas. Aí, um elevado monte demanda os astros com seus cumes duplos. Com o nome de Parnaso ³, e os picos ultrapassam as nuvens. Foi aí que Deucalião (pois a água cobrira tudo) aportou com sua companheira de leito (sua esposa), transportado num barquinho. Eles adoram as Ninfas Corícias , os numes do monte e a fatídica Thêmis que então proferia oráculos. Nenhum homem foi melhor nem mais amante da justiça do que ele; nem houve alguma mais temente dos Deuses do que ela. 
Quando Júpiter vê estagnar o orbe em pântanos líquidos e apenas sobreviver um de tantos milhares, e apenas uma de tantas milhares, ambos inocentes, ambos adoradores da divindade, dispersou as nuvens e, removidos os nimbos pelo Aquilão , mostrou tanto as terras ao céu, quanto o éter às terras. E não continua a ira do mar; e, tendo deposto o dardo tricúspide, o governante do pélago apazigua as águas. E, chama Tritão que aparece acima do profundo azul-marinho, tendo coberto os ombros com o múrice coevo, e manda soprar na concha sonante e, dado o sinal, revogar imediatamente ondas e rios. Por ele é retomada a trombeta oca e retorcida, que cresce a partir do fundo para o lado; trombeta que, no momento em que absorveu sopros no meio do mar, enche com seus sons as praias subjacentes a um e outro ponto extremo do curso de Febo. Nesta ocasião, também, logo que ela tocou os lábios gotejantes do Deus de barba molhada, soprada, ressoou as retiradas ordenadas e foi ouvida por todas as águas da terra e do oceano, e refreou-as todas. Os rios baixam, vêem-se colinas surgir. Já o mar tem praia; o leito contêm os rios cheios. Surge o solo; os lugares crescem com as ondas decrescentes; as florestas ostentam, após longo tempo, os cumes desnudos e têm na fronde o limo deixado. O orbe estava reconstituído. Quando Deucalião o viu deserto, e profundo silêncio dominar as terras despovoadas, assim disse a Pirra com os olhos marejados de lágrimas: "Ó irmã, ó cônjuge, ó mulher, única sobrevivente que a raça comum juntou a mim, e a origem de prima por parte de pai, depois o casamento e agora os mesmos perigos unem. Nós dois somos a multidão das terras que o ocaso e o nascente vêem; as outras, o oceano as possui. Também ainda agora a segurança da nossa vida não é bastante certa: as nuvens ainda aterrorizam meu espírito. Se, sem mim, fosses livrada do perigo pelos fados, como estaria agora o teu espírito, ó pobre mulher? Sozinha, como poderias suportar o temor? Afligir-te-ias com quem te consola? Pois eu, crê-me, se o mar também agora te tivesse tragado, seguir-te-ia, ó esposa, e também o mar me teria. Oh! oxalá eu pudesse repovoar o mundo com as artes paternas e infundir vida à terra refeita! Agora a espécie mortal resta em nós dois. Assim pareceu bem aos deuses superiores: e permaneceremos os exemplares da humanidade." 
 
VIII. Repovoamento do mundo
 
Tinha dito. Choravam. Resolveram implorar o nume celeste e consultar os oráculos sagrados. Sem demora, eles se aproximam, juntos, das ondas cefísias ¹ que, embora ainda lodacentas, já corriam nos seus leitos conhecidos. Daí, tendo aspergido água lustral nas vestes e na cabeça, dirigem os passos para o templo da deusa, cujas sagradas cumeeiras estavam pardas de feio musgo; e os altares estavam sem fogo. Logo que tocaram os degraus do templo, um e outro deitaram-se de bruços no chão e deram beijos, receosos, na gélida pedra. 
E assim disseram: "Se pelas preces justas os Numes se deixam abrandar, se a ira dos deuses se dobra, diz-nos, ó Thêmis, com qual virtude se pode reparar o dano da nossa espécie? e dirija teu poder, ó brandíssima, às coisas submersas". A deusa ficou comovida e deu este oráculo: "Afastai-vos do templo, cobri a cabeça e desatai as vestes cingidas; e, depois, atirai para trás os ossos de vossa grande mãe". ¹¹ Por muito tempo eles ficaram aterrorizados; e Pirra quebra o silêncio primeiro com a voz; e recusa-se a obedecer às ordens da deusa: pede que lhe perdoe, com fala medrosa; e teme, ao atirar os ossos, ofender as almas maternas. 
Enquanto isso, repassam entre si as palavras obscuras do oráculo dado nos sombrios esconderijos e entre si (as) solucionam. Depois, Prométide ¹² acalma Epimétida com palavras plácidas e diz: "Ou a nossa sagacidade é falaz, ou os oráculos são pios e não exigem nada abominável. A terra é a grande mãe; julgo que as pedras, no seio da terra, foram chamadas de ossos; somos ordenados a jogá-las para trás de nós". Embora a Titânide ficasse abalada com essa adivinhação do esposo, a esperança, entretanto, estava hesitante, tanto que, ambos desconfiam dos oráculos celestes. Porém, fará mal tentar tal coisa? Descem, velam a cabeça e desatam as túnicas e arremessam as pedras ordenadas para trás, enquanto andam. As pedras (quem acreditaria nisso, se a antiguidade não estivesse por testemunha?) começaram a perder sua dureza e abrandar seu rigor pouco a pouco. E as coisas amolecidas começam a tomar forma. Depois, quando amadureceram, coube-lhes uma natureza mais branda, de tal modo que se pôde ver certa forma humana não bastante clara mas como um esboço do mármore, algo não bastante acabado e muito parecido a estátuas toscas. Entretanto, uma parte delas, que foi úmida e terrestre, transformou-se, para uso do corpo, em algum líquido. Aquilo que era sólido e não pode ser flexionado, transformou-se em ossos; aquilo que fora veia, ainda há pouco, permaneceu com este mesmo nome. E em curto espaço, pela vontade dos deuses superiores, as pedras lançadas pelas mãos do homem criaram a figura de homens e do arremesso feminil foi refeita a mulher. Por isso, somos uma raça resistente e experiente de todos os trabalhos ¹³. E damos testemunha de que origem proviemos.
 
III. TEXTO LATINO: DEUCALION ET PYRRHA

Separat Aonios Oetaeis Phocis ab arvis,
terra ferax, dum terra fuit, sed tempore in illo
pars maris et latus subitarum campus aquarum.
Mons ibi verticibus petit arduus astra duobus,
nomine Parnasos, superantque cacumina nubes.
Hic ubi Deucalion (nam cetera texerat aequor)
cum consorte tori parva rate vectus adhaesit,
Corycidas nymphas et numina montis adorant
fatidicamque Themin, quae tunc oracla tenebat:
non illo melior quisquam nec amantior aequi
vir fuit aut illa metuentior ulla deorum.
Iuppiter ut liquidis stagnare paludibus orbem
et superesse virum de tot modo milibus unum,
et superesse vidit de tot modo milibus unam,
innocuos ambo, cultores numinis ambo,
nubila disiecit nimbisque aquilone remotis
et caelo terras ostendit et aethera terris.
Nec maris ira manet, positoque tricuspide telo
mulcet aquas rector pelagi supraque profundum
exstantem atque umeros innato murice tectum
caeruleum Tritona vocat conchaeque sonanti
inspirare iubet fluctusque et flumina signo
iam revocare dato. Cava bucina sumitur illi,
tortilis in latum quae turbine crescit ab imo,
bucina, quae medio concepit ubi aera ponto,
litora voce replet sub utroque iacentia Phoebo;
Tum quoque, ut ora dei madida rorantia barba
contigit et cecinit iussos inflata receptus,
omnibus audita est telluris et aequoris undis,
et quibus est undis audita, coercuit omnes.
Iam mare litus habet, plenos capit alveus amnes,
flumina subsidunt collesque exire videntur;
surgit humus, crescunt sola decrescentibus undis,
postque diem longam nudata cacumina silvae
ostendunt limumque tenent in fronde relictum.
Redditus orbis erat; quem postquam vidit inanem
et desolatas agere alta silentia terras,
Deucalion lacrimis ita Pyrrham adfatur obortis:
‘o soror, o coniunx, o femina sola superstes,
quam commune mihi genus et patruelis origo,
deinde torus iunxit, nunc ipsa pericula iungunt,
terrarum, quascumque vident occasus et ortus,
nos duo turba sumus; possedit cetera pontus.
Haec quoque adhuc vitae non est fiducia nostrae
certa satis; terrent etiamnum nubila mentem.
Quis tibi, si sine me fatis erepta fuisses,
nunc animus, miseranda, foret? quo sola timorem
ferre modo posses? quo consolante doleres?
Namque ego (crede mihi), si te quoque pontus
[haberet,
te sequerer, coniunx, et me quoque pontus haberet.
o utinam possim populos reparare paternis
artibus atque animas formatae infundere terrae!
Nunc genus in nobis restat mortale duobus.
Sic visum superis: hominumque exempla manemus.’

Dixerat, et flebant: placuit caeleste precari
numen et auxilium per sacras quaerere sortes.
Nulla mora est: adeunt pariter Cephesidas undas,
ut nondum liquidas, sic iam vada nota secantes.
Inde ubi libatos inroravere liquores
vestibus et capiti, flectunt vestigia sanctae
ad delubra deae, quorum fastigia turpi
pallebant musco stabantque sine ignibus arae.
Ut templi tetigere gradus, procumbit uterque
pronus humi gelidoque pavens dedit oscula saxo
atque ita: ‘si precibus’ dixerunt ‘numina iustis
victa remollescunt, si flectitur ira deorum,
dic, Themi, qua generis damnum reparabile nostri
arte sit, et mersis fer opem, mitissima, rebus!’
Mota dea est sortemque dedit: ‘Discedite templo
et velate caput cinctasque resolvite vestes
ossaque post tergum magnae iactate parentis!’
Obstupuere diu: rumpitque silentia voce
Pyrrha prior iussisque deae parere recusat,
detque sibi veniam pavido rogat ore pavetque
laedere iactatis maternas ossibus umbras.
Interea repetunt caecis obscura latebris
verba datae sortis secum inter seque volutant.
Inde Promethides placidis Epimethida dictis
mulcet et ‘aut fallax’ ait ‘est sollertia nobis,
aut pia sunt nullumque nefas oracula suadent!
Magna parens terra est: lapides in corpore terrae
ossa reor dici; iacere hos post terga iubemur.’
Coniugis augurio quamquam Titania mota est,
spes tamen in dubio est: adeo caelestibus ambo
diffidunt monitis; sed quid temptare nocebit?
Descendunt: velantque caput tunicasque recingunt
et iussos lapides sua post vestigia mittunt.
Saxa (quis hoc credat, nisi sit pro teste vetustas?)
ponere duritiem coepere suumque rigorem
mollirique mora mollitaque ducere formam
Mox ubi creverunt naturaque mitior illis
contigit, ut quaedam, sic non manifesta videri
forma potest hominis, sed uti de marmore coepto
non exacta satis rudibusque simillima signis,
quae tamen ex illis aliquo pars umida suco
et terrena fuit, versa est in corporis usum;
quod solidum est flectique nequit, mutatur in ossa
quae modo vena fuit, sub eodem nomine mansit,
inque brevi spatio superorum numine saxa
missa viri manibus faciem traxere virorum
et de femineo reparata est femina iactu.
Inde genus durum sumus experiensque laborum
et documenta damus qua simus origine nati.

 
VI. NOTAS EXPLICATIVAS
 
 
¹ Habitantes da Beócia, unidade regional da Grécia Central, situada a oeste de Atenas. Na antiguidade, a Beócia tinha significativa importância política devido à sua posição na costa norte do Golfo de Corinto, à força estratégica de suas fronteiras e à facilidade de comunicação dentro de sua extensa área. Por outro lado, a falta de bons portos dificultava seu desenvolvimento marítimo. Na antiguidade, sua principal cidade era Tebas, que chegou a exercer uma breve hegemonia sobre as demais cidades. Atualmente, sua capital é Livadiá.
 
² Trata-se do monte Eta, localizado no sul da Grécia Central, na fronteira entre a Thessália e a Beócia. Na mitologia grega o Eta é celebrado principalmente como palco da morte do herói Héracles.

³ Monte situado na Fócida, perto de Delfos, e consagrado a Apolo e às musas.
 
Caverna sagrada no monte Parnaso.
 
Deusa da justiça, por excelência. Filha de Urano e Gaia, portanto tia de Zeus, ao lado de quem tem assento no Olimpo. De acordo com a tradição, teria sido ela quem ensinou a Apolo como fazer profecias.

Vento do Norte.
 
Na mitologia grega, Poseidon, com seu tridente, governava os mares e era responsável pelas tempestades, tormentas e maremotos que ocorriam no mar. Na mitologia romana, ele é chamado de Netuno.
 
Tritão, na mitologia grega, é um deus marinho, filho de Poseidon e Anfitrite, geralmente representado com cabeça e tronco humano e cauda de peixe.

Febo é apelido de Apolo, deus do sol e, no caso, a própria personificação do Sol. Aqui também Ovídio se refere a dois pontos no curso de Febo, ou seja, ao oriente e ao poente, ou a leste e a oeste.

¹ Cefiso, rio da Grécia setentrional, que atravessa a Dória, a Fócida e a Beócia, e que vai se lançar no Golfo Eubóico. Na mitologia grega, esse rio e a ninfa Liríope são os pais de Narciso. (cf. [BRANDÃO, 1988, 174 e ss.]) O autor informa que "Liríope foi vítima da insaciável energia sexual de Cefiso, em cujas margens tranquilas ninfa alguma poderia passear incólume. Um dia, foi a vez de Liríope." Dessa união, nasceu Narciso.

¹¹ Terminado o dilúvio, Zeus (ou Júpiter) favoreceu o casal, concedendo-lhe o oráculo da deusa Thêmis para a satisfação de um desejo. Deucalião pediu que renovasse a humanidade. Foi-lhes ordenado, então, que atirassem para trás os ossos de sua mãe. Pirra se horrorizou diante dessa impiedade: “Não podemos profanar os restos de nossos pais”. Mas Deucalião lembrou-lhe que os deuses falam por metáforas e interpretou os ossos como sendo pedras, "os ossos" da Terra, que é a mãe comum de todos. Os dois apanharam pedras e começaram a atirá-las para trás, sobre os ombros: das que Deucalião atirou nasceram homens, das que Pirra atirou nasceram mulheres. Eles fizeram como recomendado, e as pedras amoleceram e se transformaram em corpos humanos; os outros animais foram criados espontaneamente da terra.

¹² Na mitologia grega, Deucalião é filho de Prometeu e sua mulher Pirra é filha de Epimeteu. Prometeu e Epimeteu são irmãos titãs, filhos do titã Jápeto (Iapĕtus) e Clímene. Logo, Deucalião (Prométide) e Pirra (Epimétida) são primos e sua relação é consanguínea. (cf. [BRANDÃO, 1991, 328-9]) Dizia a lenda, que, a conselho de Prometeu, os dois primos foram encerrados num barquinho e foram deixados pelas águas no cume do Parnaso (versão adotada por Ovídio).
Após o dilúvio o casal sobrevivente se estabeleceu na Thessália, onde ele e seus descendentes reinaram.

¹³ Aqui Ovídio sugere que a nova humanidade é moldada para o trabalho, sugerindo que somos sólidos e duros por descendermos das pedras de Deucalião e Pirra.
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
 
BRAGA, F. J. S.: RECUPERE O SEU LATIM > > PARTE 16, matéria publicada em 28/07/2023 pelo Blog do Braga.

_______________: RECUPERE O SEU LATIM > > PARTE 20, matéria publicada em 06/11/2024 pelo Blog do Braga.
 
BRANDÃO, J. S.: MITOLOGIA GREGA, vol. II, 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1988,  321 p.

_______________: DICIONÁRIO MÍTICO-ETIMOLÓGICO DA MITOLOGIA GREGA, vol. 2 J-Z, 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1991, 559 p.

VIVAS, C.M.R.: “DIZEM QUE ÉS UM MODELO DE BOA ESPOSA”¹: modelos de feminilidade romana no Exílio e na Mediação (séculos I a.C.- I d.C.) 
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/11/dizem-que-es-um-modelo-de-boa-esposa.html
 
WIKIPEDIA: verbete DEUCALIÃO

segunda-feira, 2 de junho de 2025

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 21: SOBRE IDADE AVANÇADA, POR CÍCERO

Tradução literal do latim, comentários e bibliografia sugerida por Francisco José dos Santos Braga 
Marco Túlio Cícero (✰ 106 a.C., Arpino ✞ 43 a.C., Fórmias)

I. Tradução do TRATADO DA VELHICE (cap. IV)

10. Eu, quando jovem, me afeiçoei a um velho, Quinto (Fábio) Máximo, tal como me afeiçoaria a um da minha idade , aquele que reconquistou Taranto. Havia nele uma seriedade temperada com cortesia, e a velhice não lhe mudara o caráter: quando comecei a privar de sua amizade, ele ainda não era bastante avançado em idade, contudo era muito mais velho que eu. Seu primeiro consulado foi apenas um ano após o meu nascimento; e ele foi cônsul pela quarta vez quando eu, soldado ainda adolescente, estive com ele na campanha por Cápua; cinco anos depois, estive com ele na campanha por Taranto. Tornei-me edil em seguida; questor quatro anos depois e exerci a magistratura durante o consulado de Tuditano e Cethego, quando o certo é que ele, já bastante velho, defendeu a lei cíncia sobre dádivas e presentes. ¹
E este homem, já bem velho, combatia como um adolescente,  e sua paciência exauria o ardor juvenil do impetuoso Aníbal ², e sobre quem nosso familiar Ênio ³ tão excelentemente disse: 
 
Um único líder, ao protelar, nos restabeleceu o 
[Estado.  
Não valorizava mais o aplauso das massas do que a 
[segurança, 
Daí a glória do herói resplandece ainda mais agora.
 
11. Com que vigilância, com que prudência ele retomou Taranto! Foi ele, de fato, na minha presença, quem fez saber a Salinator que este, após a perda da cidade, se refugiara na cidadela, vangloriando-se: 
É graças a mim, que tu retomaste Taranto. 
 Certamente, respondeu (Quinto) Fábio (Máximo), rindo: se tu não a tivesses perdido, eu jamais a teria retomado.
Mas ele não era melhor nas armas do que na toga: durante seu segundo consulado, enquanto seu colega, Espúrio Carvílio, permanecia longe da vida pública, ele resistiu, o quanto pôde, ao tribuno da plebe Caio Flamínio , o qual, apesar da oposição do Senado, propôs a partilha do território dos Picenos e dos Gauleses; e como era um áugure, ousou dizer que os auspícios eram sempre favoráveis ​​quando se agia pelo bem da república; sempre sinistros, quando se agia contra ela. 
 
12. Tomei conhecimento de muitos traços memoráveis ​​na vida deste homem, mas não conheço nenhum mais admirável do que a forma como suportou a morte de seu filho, um homem eminente e figura consular. Seu elogio fúnebre tem ampla circulação e, ao lê-lo, qual filósofo não desprezo? 
Ele não era grande apenas em público e diante dos olhos de seus concidadãos, mas ainda mais nobre na privacidade de seu lar. Que conversação! Que preceitos! Quantos conhecimentos da antiguidade! Que ciência do direito augural! Ele também era muito culto para um romano. Preservava todas as memórias, não apenas os acontecimentos internos, mas também as guerras com países estrangeiros. Eu desfrutava avidamente sua conversa, como se já previsse o que aconteceria: uma vez morto, não haveria ninguém de quem eu pudesse aprender.
 
Estátua de Fábio, esculpida por Johann Baptist Hagenauer, nos jardins de Schönbrunn, em Viena.

 
 
II. TEXTO  LATINO: DE SENECTUTE (caput IV)
 
10. Ego Q. Maximum, eum qui Tarentum recepit, senem adulescens ita dilexi, ut aequalem; erat enim in illo viro comitate condita gravitas, nec senectus mores mutaverat. Quamquam eum colere coepi non admodum grandem natu, sed tamen iam aetate provectum. Anno enim post consul primum fuerat quam ego natus sum, cumque eo quartum consule adulescentulus miles ad Capuam profectus sum quintoque anno post ad Tarentum. Quaestor deinde quadriennio post factus sum, quem magistratum gessi consulibus Tuditano et Cethego, cum quidem ille admodum senex suasor legis Cinciae de donis et muneribus fuit. Hic et bella gerebat ut adulescens, cum plane grandis esset, et Hannibalem iuveniliter exsultantem patientia sua molliebat; de quo praeclare familiaris noster Ennius:
 
Unus homo nobis cunctando restituit rem, 
Noenum rumores ponebat ante salutem: 
Ergo plusque magisque viri nunc gloria claret. 
 
11. Tarentum vero qua vigilantia, quo consilio recepit! cum quidem me audiente Salinatori, qui amisso oppido fugerat in arcem, glorianti atque ita dicenti:
'Mea opera, Q. Fabi, Tarentum recepisti,' 
'Certe,' inquit ridens, 'nam nisi tu amisisses numquam recepissem.' 
Nec vero in armis praestantior quam in toga; qui consul iterum Sp. Carvilio collega quiescente, C. Flaminio tribuno plebis, quoad potuit, restitit agrum Picentem et Gallicum viritim contra senatus auctoritatem dividenti; augurque cum esset, dicere ausus est optimis auspiciis ea geri, quae pro rei publicae salute gererentur, quae contra rem publicam ferrentur, contra auspicia ferri. 
 
12. Multa in eo viro praeclara cognovi; sed nihil admirabilius, quam quo modo ille mortem fili tulit clari viri et consularis. Est in manibus laudatio, quam cum legimus, quem philosophum non contemnimus? Nec vero ille in luce modo atque in oculis civium magnus, sed intus domique praestantior. Qui sermo, quae praecepta, quanta notitia antiquitatis, scientia iuris auguri! Multae etiam, ut in homine Romano, litterae. Omnia memoria tenebat, non domestica solum, sed etiam externa bella. Cuius sermone ita tum cupide fruebar, quasi iam divinarem id quod evenit, illo exstincto, fore, unde discerem, neminem. 
 
III. NOTAS EXPLICATIVAS 
 
¹ A "lei cíncia" proibia os advogados de receberem recompensa pelos serviços prestados. 
 
² Aníbal (✰ Cartago, 247 a.C. ✞ Libissa, c. 183-181 a.C.) foi um general e estadista cartaginês, sendo considerado um dos maiores estrategistas militares da história. Executou um dos mais audazes feitos militares da Antiguidade: Aníbal e seu exército partiram da Hispânia e atravessaram os Pireneus e os Alpes com o objetivo de conquistar o norte da Itália durante a 2ª Guerra Púnica. Ali derrotou os romanos em grandes batalhas campais, porém não chegou a invadir Roma, sitiando-a para obrigá-la a render-se, permanecendo na Itália por 10 anos. Consta que Quinto Fábio Máximo, o Protelador, teria posto um paradeiro às vitórias de Aníbal, na Itália. Após a invasão da África por parte de Cipião, o senado cartaginês o chamou de volta a Cartago, onde foi finalmente derrotado pelo general romano na Batalha de Zama. Sua vida foi objeto de muitos livros, filmes e documentários. Quem não de lembra do filme Aníbal, o Conquistador (1960), estrelado por Victor Mature? 
 
³ Quintus Ennius (✰ Rudiae, sul da Itália, 239 a.C. ✞ Roma, 169 A.C.) foi um poeta épico , dramaturgo e satirista, o mais influente dos primeiros poetas latinos, corretamente chamado de fundador da literatura romana. Seu épico Annales, poema narrativo que conta a história de Roma desde as andanças de Eneias até a época do poeta, foi o épico nacional até ser eclipsado por Virgílio com sua Eneida. 
 
Esses três versos hexâmetros foram extraídos do épico histórico, os Annales (Livro XII, fr. 363-5) de Quinto Ênio (239 a.C.-169 a.C.) Cícero menciona o primeiro verso em 59 a.C. e os três versos num par de textos datados de 44 a.C., tendo sido um dos primeiros a fazer essa citação, logo seguido por outros autores como Tito Lívio, Virgílio, Lucrécio, Suetônio, etc. Consta que Quinto Fábio Máximo, cônsul em 213 a.C., ficou conhecido como "o Protelador" ou "o que se prepara para o dia da batalha", uma referência à sua tática para combater Aníbal durante a Segunda Guerra Púnica. 
 
⁵  Segundo a Wikipedia, "O Protelador" (cunctator em latim) tornou-se um honorífico e sua tática de protelação para se preparar para o dia da batalha foi seguida pelo resto da guerra. Seu sucesso militar, além da conquista de Taranto, foi pequeno, mas, por esta vitória, segundo Plutarco, Fábio recebeu seu segundo triunfo, ainda mais esplêndido que o primeiro. O fato de Fábio ter sido pontífice (mas não pontífice máximo) e áugure máximo simultaneamente não se repetiria novamente até a época de Júlio César (ou, possivelmente, Sula).
 
Segundo a Wikipedia, Caio Flamínio Nepos destacou-se como o primeiro líder a desafiar a aristocracia patrícia, concentrada no senado, um século antes das lutas sociais travadas pelos irmãos Graco (133 a.C.) O prestígio que gozava junto aos plebeus, garantiu-lhe uma carreira de sucesso e a conquista de posições importantes, mas atraiu sobre si a hostilidade dos senadores que, sobretudo após sua morte, procuraram denegrir sua memória, acusando-o de demagogo e irresponsável.
No final da Primeira Guerra Púnica (c. 241 a.C.), Caio Flamínio se apresentou como um homem novo à frente de um movimento que buscava reorganizar politicamente as conquistas territoriais, cada vez mais frequentes, da República. Na função de tribuno da plebe, em 232 a.C., organizou um plebiscito que fracionou o território da Gália Cisalpina sob o controle romano: as terras ao sul Arímino, conhecido como Campo Gálico (em latim: Ager Gallicus), que havia sido conquistado dos gauleses sênones dez anos antes, foi repartido e entregue a famílias de agricultores que haviam caído na miséria durante as guerras anteriores. Para conseguir superar a oposição do Senado, Flamínio simplesmente não os consultou, contrariando todas as normas constitucionais e tradições até então.
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
BRAGA, F. J. S.: RECUPERE O SEU LATIM > > PARTE 3, matéria publicada em 16/12/2017 pelo Blog do Braga
 
______________: RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 19, matéria publicada em 15/03/2024 pelo Blog do Braga

WIKIPEDIA: verbete Caio Flamínio

___________: verbete Fábio Máximo

terça-feira, 27 de maio de 2025

FORMATURAS SOLENES, PARANINFOS E ORADORES NA FDB-FACULDADE DOM BOSCO DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS


Por Francisco José dos Santos Braga



Vista aérea da entrada do Campus Dom Bosco - Crédito: UFSJ


I. INTRODUÇÃO
 
Em 1953, a Inspetoria Salesiana Dom Bosco, criou, anexa ao Colégio São João, a FDB-Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras em São João del-Rei com o objetivo de habilitar profissionalmente, de acordo com as exigências oficiais, os religiosos da Congregação mantenedora ¹
A Faculdade Dom Bosco teve seus estatutos aprovados pelo Governo Federal, através do Decreto 34.392, de 27 de outu­bro de 1953, assinado pelo Pre­sidente Getúlio Vargas, que tinha como Ministro da Justiça Tancredo de Almeida Neves. e foi devidamente instalada em 9 de março de 1954
De março de 1954 a novembro de 1986, a Faculdade Dom Bosco se notabilizou pela criação e implementação de inúmeras organizações especiais que funcionaram em diferentes períodos, enquanto primordialmente formava um professorado numeroso e tecnicamente bem preparado para o magistério de grau médio e superior em Universidades e outros estabelecimentos de ensino superior. Dentre essas organizações, pode-se citar as que mais se destacaram: o antigo Centro de Estudos Pedagógicos (CEP), o Teatro Universitário Sanjoanense (TUNIS), o Cine Club da Faculdade, o Instituto de Pedagogia e Psicologia (I.P.P.), a Escola de Excepcionais e outros, sem falar no Diretório Acadêmico São Tomás de Aquino (DASTA), que era o órgão representativo dos alunos, e na revalidação dos Estudos Filosóficos de Seminário e sua complementação, devido ao seu credenciamento pelo Decreto-Lei 1051, de 21/10/1969. 
Durante quase 32 anos, a Faculdade Dom Bosco atraiu estudantes, para além de São João del-Rei, vindos de várias cidades do Campo das Vertentes para seus vários cursos de graduação, preparando-os nas mais distintas áreas do conhecimento nas diversas turmas de formandos. 
Com a federalização da FUNREI-Fundação Municipal de São João del-Rei através da Lei nº 7.555 de 18/12/1986, a Faculdade Dom Bosco passou a integrar a FUNREI-Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei que, a partir de então, se tornou sua mantenedora, juntando-a às suas faculdades técnicas que já mantinha, a saber: Faculdade de Ciências Econômicas, Administrativas e Contábeis (FACEAC) e da Faculdade de Engenharia Industrial (FAEIN). 
A Faculdade Dom Bosco foi extinta em 1991, com a entrada em vigor do primeiro estatuto da FUNREI. 
Finalmente, em 19/04/2002 a FUNREI foi transformada em Universidade Federal de São João del-Rei através da Lei 10.425, com a sigla UFSJ, eleita pela comunidade acadêmica.
 
II. DADOS OBTIDOS DO ACERVO LEGADO POR Pe. LUIZ ZVER
 
Neste trabalho transcrevo as formaturas da FDB de 1958 (primeira turma) até 1972. As informações que aqui serão apresentadas, foram obtidas no CSDP-Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa, sediado em Barbacena, dentro do acervo legado por Pe. Luiz Zver . 
Certamente Zver preencheu até a 14ª turma de formandos e, posteriormente, acrescentou as novas turmas, da 15ª até a 19ª, o que fica evidente pela nítida utilização de outra caneta. É o que, inclusive, se depreende do título da anotação datada de 6-12-1970, a saber: Formatura - 6-12/1970: 14ª turma de licenciados
Para o desejável preenchimento das informações faltantes  de 1973 até pelo menos 1986, espero contar com a colaboração dos leitores deste Blog, caso as possuam. 
 
FORMATURAS SOLENES DA FDB: paraninfos (1) e oradores de turma (2)
 
1ª turma de 1957 (24/02/1958): (1) Dom João Resende Costa / (2) Pe. Alfredo Carrara 
2ª turma de 1958 (22/02/1959): (1) Dr. Samuel Libânio / (2) Pe. Mauro Dâmaso 
3ª turma de 1959 (24/02/1960): (1) Prof. Moniz Aragão, representando Acadêmico Pedro Calmon / (2) Hilda Lustosa 
4ª turma de 1960 (13/121960): (1) Pe. Virgínio Fistarol / (2) João Batista de Jesus e Antonina Gomes da Silva 
5ª turma de 1961 (12/12/1961): (1) Cardeal Carlos Carmelo Vasconcelos Motta / (2) Alvey Gomes Dias Resende 
6ª turma de 1962 (11/12/1962): (1) Profª Nair Fortes Abu-Merhy / (2) Paulo Terra 
7ª turma de 1963: Não houve formatura solene, apenas um jantar íntimo, durante o qual foram entregues os diplomas 
8ª turma de 1964 (10/12/1964): (1) Pe. Wolfgang Gruen e Pe. Geraldo Servo / (2) Abgar Campos Tirado e Maria Helena Lara 
9ª turma de 1965 (11/12/1965): (1) Pe. João Bosco Nunes de Oliveira / (2) Ana Maria Caixeta Ramos 
10ª turma de 1966 (10/12/1966): (1) Pe. Luiz Zver e Pe. Geraldo Servo / (2) Roberto Silva e Olímpia das Mercês Vidigal 
11ª turma de 1967: (1) Pe. Luiz Zver / (2) Clérigo Tarcísio Luís Brasil Martins 
12ª turma de 1968: (1) Irmã Marysa Mourão Saboya / (2) Clérigo Gentil Sabino 
13ª turma de 1969: (1) Pe. Wolfgang Gruen / (2) Clérigo Gervásio Bassini Sobrinho 
14ª turma de 1970: (1) Magda Soares Guimarães / (2) Clérigo Ademar Dantas 
15ª turma (julho de 1971): (1) Pe. Luiz Zver / (2) Monsenhor Domingos Prado da Fonseca 
16ª turma (dezembro de 1971): (1) Irmã Eunice Grossi / (2) Maria Salomé Costa 
17ª turma (fevereiro de 1972): (1) Dr. Caio Benjamin Dias / (2) Osvaldo Barroso de Oliveira 
18ª turma (julho de 1972): (1) Pe. Luiz Zver / (2) Antônio Henrique de Albuquerque 
19ª turma (dezembro de 1972): (1) Pe. João Bosco de Castro Teixeira / (2) não disponível 
 
III. NOTA EXPLICATIVA
 
¹  Conforme Pe. Luiz Zver, “a Faculdade começou a funcionar regularmente em fevereiro de 1954, com os cursos de Filosofia, de Pedagogia e de Letras Neo-Latinas, Clássicas e Anglo-Germânicas, mas no primeiro ano seus alunos foram apenas os seminaristas salesianos internos. Em 1955 abriram-se as matrículas também para os alunos externos, funcionando as suas aulas por algum tempo em dependências cedidas pelo Instituto Nossa Senhora Auxiliadora”. 
 
IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAGA, Francisco J.S.: FDB-FACULDADE DOM BOSCO DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS, publicado no Blog do Braga em 17/05/2022

ZVER, Pe. Luiz: Texto intitulado Formatura - 6-12/1970: 14ª turma de licenciados(texto inédito de 1970, identificado como "Arquivo do Zver")

domingo, 18 de maio de 2025

OS ÚLTIMOS DIAS DE LIEV TOLSTÓI


Por Francisco José dos Santos Braga
Todo mundo pensa em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo.
                                                                                                                                   Liev Tolstói                                                             
Monumento ao escritor russo Liev Tolstói, erigido na rua Povarskaia em Moscou
 
FUGA DO PARAÍSO
 
Vinte e três dias antes de sua morte, o conde Liev Nikoláievitch Tolstói, aos 82 anos de idade, fugiu de casa e se escondeu da mulher. O horário de três horas da madrugada do dia 28 de outubro de 1910 marcou a fuga dele do conforto, há 114 anos atrás. 
Tolstói é conhecido no mundo todo, graças a seus romances como Guerra e Paz (1865-69), Anna Kariênina (1873-79) e Ressurreição (1899). Mas sua vida não foi menos significativa do que suas obras literárias. Ele se tornou um símbolo da busca pela verdade, do renascimento espiritual e da rejeição das normas sociais convencionais para discípulos e adeptos do Tolstoísmo. 
Perto do fim de sua vida, Liev Tolstói se distanciou cada vez mais da vida cotidiana da nobreza. Ele passou a desprezar a riqueza, concentrando-se em seus ideais morais, que incluíam a renúncia à propriedade e aos direitos de autor, cedendo-os aos pobres ou ao mundo, e a busca pela simplicidade espiritual. Suas opiniões causaram tensão na família, especialmente em sua esposa Sófia Andrêievna, que acreditava, com razão, que ele deveria pensar não apenas em altos ideais, mas também na família, que ficaria sem sustento, lembrando-lhe, além disso, que, até aquela altura, ela sozinha se encarregara da administração da sua propriedade (Iásnaia Poliana).
Tendo experimentado essa crise existencial que o levou à transformação de vida, a consequência imediata para ele foi seguir os princípios morais que considerava justos. Sendo um aristocrata russo (conde) do século XIX, isso implicava enormes contradições. Sobretudo, no seu caso, significava, quanto a seus escritos, renunciar à escrita de romances fictícios,  a exemplo de Guerra e Paz e Anna KariêninaRessurreição seria uma exceção —, e também ao sexo e ao matrimônio por considerá-los distrações burguesas distantes da perfeição espiritual.
Quando Tolstói já era um homem com 51 anos, e o ano era 1879, ele pensou seriamente em por fim à sua vida, sem uma razão aparente. Como o próprio Tolstói diz,
era casado com uma esposa dedicada, tinha filhos saudáveis e desfrutava o padrão de conforto próprio à elite russa da época.
Não obstante, na mesma época, foi assaltado por uma profunda reflexão sobre o sentido da vida (e da morte). Boa parte dessas reflexões está descrita em  Uma Confissão (1882), livro só publicado oficialmente em 1906, quatro anos antes de sua morte, o qual causou desconforto na cúpula da Igreja Ortodoxa russa, que, na época, detinha enorme poder e era parte integrante do Estado e do regime autocrático.  Conforme bem nota Rubens Figueiredo, seu tradutor para a língua portuguesa, esse questionamento do escritor frente à fé praticada e o sentido da vida (e da morte) tem o mesmo teor de crises vividas por vários personagens de Tolstói, em livros como Anna Kariênina, Guerra e Paz, e mesmo em contos dos seus primeiros anos de carreira, e até em obras posteriores, como A Ressurreição. A diferença é que agora não há a mediação de personagens de ficção: trata-se, muito mais, de um depoimento pessoal, como indica, aliás, o próprio título desta última obra. 
Na maturidade, Tolstói se converteu ao cristianismo e abdicou da atividade de romancista, dedicando sua vida a ações centradas em Deus, inclusive a uma espécie de ativismo social. Ele se tornou, na prática, um profeta, abraçando valores cristãos, o pacifismo, o vegetarianismo, a abstinência de álcool e tabaco, e até mesmo de sexo. Também se tornou um defensor dos pobres, e suas ideias sobre reforma da terra e distribuição da riqueza eram consideradas radicais na época.
De fato, a partir de 1880, observa-se que ele se tornou um moralista extremista e, numa série de panfletos, expressou sua repulsa em relação ao Estado, à Igreja e às fraquezas da carne, denunciando a propriedade privada. Sobretudo, Uma Confissão marcou essa crise espiritual em sua vida.
Tolstói não poupou a interpretação que a Igreja fazia dos ensinamentos morais de Jesus e criticou-a abertamente:
Não em orações, missas, velas e ícones está o ensinamento de Cristo, mas no fato de que as pessoas se amam, não pagam o mal com o mal, não julgam, não matam umas às outras.
Ele entendeu a ideia de oferecer a outra face como a resistência ao mal pela não-violência. Essa visão fez com que Tolstói criticasse o Estado e desenvolvesse uma experiência de vida comunitária em sua propriedade rural, Iásnaia Poliana.
As implicações políticas do cristianismo de Tolstói evoluíram ao longo das últimas três décadas de sua vida. Em geral, ele se opunha à revolução violenta como forma de acabar com a violência dos governos. Como ele dizia, a História tinha mostrado que não se derrotava um governo sem que houvesse consequências violentas. Ele aprendeu muito sobre isso em sua leitura dos livros sagrados budistas e hindus. Entendia o princípio do carma, e considerava que a violência só levava a mais violência. O indivíduo precisava, de alguma maneira, romper esse ciclo destrutivo.
Liev Tolstói era um anarquista (embora ele não se considerasse um). Mas seus textos não deixam dúvida. Ele pregava o fim de toda espécie de governo bem como o fim de todo sentimento de patriotismo, que para ele, além de ser altamente danoso, figurava o princípio de todas as guerras. Tomando como exemplo o próprio Jesus Cristo 
que foi morto injustamente e sem oferecer nenhuma resistência —, Tolstói foi um dos principais “profetas” a pregar a Revolução Não-Violenta. Sua filosofia a esse respeito influenciou diretamente Gandhi, que chegou a trocar algumas cartas com o profeta russo.
Em fevereiro de 1901, o Sínodo da Igreja Ortodoxa Russa, assustado com a crescente fama de profeta que Tolstói tinha em toda a Rússia e vendo-o como uma grande ameaça contra toda a tradição cristã, acusa-o de insolência contra o Senhor, contra Cristo e contra toda a herança sagrada e, considerando-o um herege, decide excomungá-lo publicamente da comunhão da Igreja. Observe-se, entretanto, que um anátema não foi imposto ao escritor pela Igreja. Houve, sim, apenas a decisão do Sínodo, condenando Tolstói por suas críticas aos ensinamentos da Igreja e indicando que tais opiniões não deveriam ser toleradas de forma alguma. A essa definição do Sínodo, a resposta do Conde foi ainda mais severa. Ele não suavizou seus pensamentos nem os revestiu de belas frases. A resposta foi implacável: rejeitou, como absurdos, alguns dogmas da Igreja.
Tolstói queria se livrar de uma vida cheia de concessões. Ele acreditava que seu ambiente confortável em Iásnaia Poliana contradizia os princípios que ele pregava. Esse desejo de ascetismo o levou a dar um passo radical: ele decidiu fugir de casa. 
No outono de 1910, ou mais precisamente, em 28 de outubro de 1910, Tolstói deixou Iásnaia Poliana secretamente. Ele não levou nada consigo, exceto um conjunto mínimo de coisas. Acompanhado de seu médico D.P. Makovitski, ele partiu em uma jornada, na esperança de começar uma nova vida. Não foi apenas uma fuga. Foi um gesto simbólico que pretendia mostrar que a vida humana deveria ser livre de amarras materiais e sociais. No entanto, o caminho de Tolstói acabou sendo muito mais difícil do que ele esperava. 
Sua esposa, ao saber da partida do marido, ficou histérica. Ela até tentou cometer suicídio duas vezes por afogamento, mas sobreviveu.
 
Conde Liev Tolstói na sua fuga do paraíso
 
Itinerário da última viagem de Tolstói 

A jornada de Tolstói começou na estação de Shokino. Tolstói não pensou na rota e nos locais de parada com antecedência. Depois de chegar à estação de Gorbatchov de trem, fez baldeação e dirigiu-se para Kozelsk. De lá, Tolstói seguiu a cavalo em direção a Shamordino. Teve que passar a noite na pousada do mosteiro em Optina Pustyn. Lá ele conversou com o Padre Mikhaíl sobre os anciãos até a segunda metade do dia seguinte. Aproximadamente às 16 horas do dia 29 de outubro, Tolstói deixou Optina. À noite, Tolstói já havia chegado ao Mosteiro Shamordino, onde estava sua irmã monja. Infelizmente, não se sabe o que o escritor conversou com sua parenta.
É claro que Tolstói, excomungado da igreja, não pôde permanecer nas proximidades do mosteiro por muito tempo. Ele começou a procurar uma casa para morar em Shamordino, mas longe do convento. No entanto, os planos de Tolstói foram frustrados no dia seguinte ao de sua chegada para ver sua irmã, porque sua filha Alexandra (apelidada Sasha) apareceu em Shamordino. Ela contou ao pai sobre a condição de sua mãe, informando ainda que ela sabia de sua localização. De acordo com as lembranças de Sasha, Tolstói fugiu imediatamente de Shamordino.
Ele partiu na manhã de 31 de outubro com várias acompanhantes para Kozelsk. Lá, o escritor embarcou no trem número 12, que seguia para o sul. Tolstói ainda não tinha um plano de viagem específico. Após consultar seus companheiros, Tolstói decidiu ir para Novotcherkassk, onde morava Elena Denisenko, sua sobrinha. Em Novotcherkassk, Tolstói queria obter passaportes estrangeiros para partir para a Bulgária. Mas, a caminho da cidade, Tolstói pegou um resfriado e desenvolveu pneumonia. O escritor foi forçado a desembarcar do trem em Astápovo, o assentamento mais próximo. ²
Sua temperatura subiu e sua respiração ficou difícil. Seus companheiros entenderam que algo sério estava acontecendo com ele. Na estrada, ele recusou a maioria dos confortos, preferindo dormir em condições modestas, o que só piorou seu estado. Mas mesmo em sua doença ele continuou a refletir sobre a vida, expressando seus pensamentos aos seus companheiros. Tolstói pretendia alcançar um de seus seguidores espirituais, mas suas forças o abandonaram no caminho. Teve que parar na estação mais próxima – na pequena vila de Astápovo. Este lugar se tornou o último ponto em sua rota. Quando ali chegou, o chefe da estação local, Ivan Ozolin, forneceu-lhe uma pequena casa onde ele poderia ficar. Foi um gesto muito modesto, mas o mais adequado a Tolstói. 
Sua morte em 20 de novembro de 1910 foi tão incomum quanto sua própria vida. Enfraquecido pela doença, ele morreu longe de casa, no modesto ambiente da pequena estação ferroviária de Astápovo, tendo inclusive prescindido da presença de padre em seu leito de morte. Este evento não se tornou apenas notícia, mas um evento do mundo real. Centenas de pessoas assistiram aos seus últimos dias e dezenas de milhares discutiram o simbolismo de sua morte. 
Por que o grande escritor russo decidiu sair de casa? O que o trouxe a esta pequena estação e como ele passou seus últimos dias? Dentre inúmeras biografias excelentes de Tolstói, A Fuga do Paraíso, de um autor russo, Pável Bassínski, se destaca por ter feito uma habilidosa reconstrução dos últimos dias do genial escritor, ao transformar o que poderia ser uma biografia acadêmica em uma investigação dinâmica e magistral, emocionante e envolvente como um romance de ficção, na qual o leitor acompanha passo a passo a fuga de Tolstói, sua trágica situação familiar e os segredos que cercam a assinatura de seu testamento. Hoje vamos relembrar essa história, que ainda surpreende pela sua simplicidade e profundidade. Ela nos lembra que até mesmo os maiores gênios continuam sendo pessoas em busca de respostas para as grandes questões da vida. 
 
REVIRAVOLTA ESPIRITUAL E MUDANÇA DE CRENÇAS E VALORES
 
A reviravolta que aconteceu com Tolstói foi o primeiro pré-requisito para sua fuga. 
Ele tinha sido o primeiro, tanto a renunciar aos direitos autorais, quanto a se opor ao sistema estatal e, por ter pregado o regresso ao cristianismo de origem e por negar autoridades religiosas, foi excomungado pela Igreja Ortodoxa. Também teve o seu nome indicado três vezes para o Prêmio Nobel da Paz contra a sua vontade, odiava o dinheiro e ficou do lado dos camponeses (mujiques). 
 
Mujiques, no início do século XX, por Serguêi Prokúdin-Górski, pioneiro da fotografia em cor - Crédito pela foto: Universal History Archive/Getty Images
 
Para os filhos desses, criou uma escola gratuita em 1859 na sua propriedade de Iásnaia Poliana, ocasião em que tinha apenas trinta anos de idade. Posteriormente, não apenas os filhos, mas também seus pais e outros adultos passaram a frequentar a mesma escola. Para os que frequentavam sua escola escreveu inúmeros contos populares (1880), nos quais apresentava uma nova moral como orientação educativa. Foi nessa fase de sua vida  que se convencionou chamar de mística, que Tolstói se apercebeu de seu estado espiritual e de sua redenção moral. 
 
Tolstói com filhos de mujiques na Festa da Santíssima Trindade (17/05/1909) - Crédito Thomas Tapsel
 
Um homem de família exemplar, Liev Tolstói passou muitos anos defendendo e transmitindo a importância dos valores familiares em seus romances. Amor, casamento, filhos — ele considerava tudo isso o sentido da vida, juntamente com o constante aperfeiçoamento espiritual. Entretanto, na década de 1880, já com mais de 50 anos, Tolstói passou por uma forte convulsão interna. Ele muda sua atitude em relação à religião, fica desiludido com a Igreja e com o casamento como uma união sagrada entre um homem e uma mulher. 
Sua atitude em relação à propriedade privada também muda: Tolstói tenta se libertar da riqueza, começa a usar a camisa lendária e a trabalhar a terra junto com os camponeses. Na década de 1880, o escritor desenvolveu uma ideia obsessiva de renunciar a tudo o que era “corrupto”: ​​o estilo de vida senhorial, sua fama e dinheiro. Ele vê que a única maneira de acabar com isso seria sair de casa e levar quase uma vida de vagabundo, “fundindo-se com o povo”. 
Também fez de tudo para impedir uma grande celebração de seu próprio 80º aniversário em 1908. O desejo de se esconder do peso da fama era para ele uma tarefa tanto pessoal quanto social e artística, buscando maneiras de reduzir sua própria presença não apenas no processo literário, mas também no próprio texto, escreve o historiador cultural e crítico literário, Andrei Zorin, em sua biografia A Vida de Liev Tolstói. A Experiência da Leitura.
Outra vertente de pesquisa de uma nova faceta do autor russo — a do Tolstói documentalista nos seus últimos anos de vida — é constituída por autores que a investigam e pesquisam. A literatura documental ou literatura de não ficção (non-fiction) é aquela que se baseia em fatos reais, documentos, depoimentos e memórias, limitando ao mínimo a invenção criativa, isto é, artística. Data de 10 de julho de 1893 uma carta de Tolstói a Nikolai Leskov (1831-1895), romancista russo e colaborador da revista Época, em que revela sua descrença no gênero ficcional que tinha adotado até então:
É vergonhoso escrever sobre pessoas que não existiram e não fizeram nada daquilo. Algo está errado. Será que este gênero artístico está se esgotando, as narrativas se tornam obsoletas ou eu me torno obsoleto.
Para Vladímir Solomonovitch Pozner, autor do livro Tolstoï est mort (ou Tolstói está morto, em português), ele inventou um gênero literário à parte, que justapõe testemunhos, relatórios, recortes de jornais, trechos de declarações, documentos ou despachos. Evocando a técnica de edição de filmes, esses livros fornecem múltiplos insights sobre determinados tópicos.
Dentre os autores contemporâneos que mais se destacam por se voltarem para o gênero documental explorado por Tolstói em seus últimos anos, podemos citar: Jay Parini (A última estação, Rio de Janeiro: Rocco, 1991), o já citado Pável Bassínski (Tolstói: A fuga do paraíso, São Paulo: Leya, 2013), Ígor Vólguin (Retirar-se de todos: Lev Tolstói como peregrino russo, Moscou: VK, 2010) e Marina Balina, autora do artigo intitulado Literatura non-fiction: invenções e realidade, Moscou: revista Znánia, jan. 2003. ¹
 
Tchértkov: uma carga nos ombros de Tolstói? 
 
Nesses impulsos, Tolstói conta com o grande apoio de seu admirador e assistente pessoal, Vladímir Tchértkov. Ele exerce grande influência sobre o escritor, realizando visitas frequentes e não solicitadas a Iásnaia Poliana, chegando a sugerir que Tolstói abandone a família, onde sua nova filosofia supostamente não é compreendida. Tchértkov torna-se um verdadeiro incômodo para Sófia Andrêievna. O clima na família se aquece, e há conflitos constantes entre os cônjuges por sua causa. 
 
Tchértkov e Tolstói

 
Sasha, filha caçula de Tolstói, foi a que mais resoluta e ardentemente apoiou o pai na revolução que assolou a família. Aliada a Vladímir Tchértkov, acabou servindo como secretária, amiga dedicada e confidente de seu pai. Ela compartilhava sua visão humanística, seu profundo desejo de mudança e regeneração social e pessoal, e considerava sua mãe um obstáculo aos nobres anseios paternos. A ela, ele legou todos os direitos sobre suas obras.
 
Sasha e seu pai Tolstói - Crédito: Getty Images
 
Tolstói com sua filha Sasha, na praia (1901)
 
Antecedentes de tentativa de fuga 
 
“Hoje ele gritou em voz alta que seu pensamento mais apaixonado era deixar a família”, escreve Sófia Andrêievna em seu diário no verão de 1882. 
Depois (1884), outro conflito surgiu: ela acusou Tolstói de ser irresponsável com o dinheiro da família e ele saiu de casa com apenas um saco de roupas. A meio caminho de Tula, ele retornou por causa do parto iminente de sua esposa. No dia seguinte, nasceu sua filha mais nova, Alexandra, escreve Andrei Zorin.
Depois de 12 anos, Tolstói quer partir novamente e chegou a escrever uma carta de despedida para Sófia: (...) Eu também não poderia deixá-la até agora, pensando que privaria as crianças, enquanto eram pequenas, de pelo menos aquela pequena influência que eu poderia ter sobre elas.... No entanto, ele nunca envia a carta e fica em casa. 
Finalmente, em 28 de outubro de 1910, antes de deixar Iásnaia Poliana, Tolstói escreveu uma carta para sua esposa. Dizia ele: 
“Minha partida vai aborrecê-la. Lamento, mas compreenda e acredite que não poderia ter agido de outra forma. Minha situação em casa está se tornando insuportável. Além de tudo, não posso mais viver nas condições de luxo em que vivi e estou fazendo o que os idosos da minha idade costumam fazer: deixando a vida mundana para viver em solidão e silêncio os últimos dias de suas vidas. 
Por favor, entenda isso e não me siga, mesmo que descubra onde estou. Sua chegada só piorará a sua situação e a minha, mas não mudará minha decisão. Agradeço pelos seus honestos 48 anos de vida comigo e peço que me perdoe por tudo o que lhe fiz de errado, assim como eu a perdoo de todo o coração por tudo o que você poderia ter feito de errado comigo. Aconselho você a se conformar com a nova posição em que minha partida a coloca e a não ter nenhum ressentimento contra mim. Se você quiser me dizer alguma coisa, diga à Sasha, ela saberá onde estou e me enviará o de que preciso. 
“Mas ela não pode lhe dizer onde estou, porque eu a fiz prometer que não contaria a ninguém.”” Assim começou a última peregrinação do Conde Tolstói.
Tolstói expõe, então, as contradições entre pensamentos pecaminosos e o desejo de levar uma vida justa, como no seu conto Padre Sérgio, em que a narrativa começa com um belo oficial rompendo seu noivado, abandonando seu serviço promissor e indo para um mosteiro.
Sobre a ida para o mosteiro, cabe lembrar que, como muitos outros de seus colegas intelectuais, Tolstói foi atraído pelos eremitas do Mosteiro Optina Pustyn, — monges que haviam se afastado da hierarquia eclesiástica ressuscitando as tradições ascéticas dos primeiros Pais da Igreja, e que eram reverenciados por sua sabedoria espiritual. Contudo, descobriu que a maior sabedoria não estava ali, mas nos mujiques. Aparentemente, sob o peso da depressão, crise espiritual, temor da morte e ideias suicidas, porventura não teria Tolstói sonhado com tal destino: tornar-se um strannik, mais um da seita dos milhões de peregrinos que cruzavam a Rússia a caminho dos monastérios santos, com vestimentas de mujiques, que passavam a vida indo a pé em romaria de um mosteiro a outro, vivendo de esmolas?
 
A figura central de Sófia Andrêievna 
 
Como todas as mulheres daquela época, Sófia dava à luz uma criança por ano. Ela teve 13 filhos no total, mas apenas oito sobreviveram. Devido à amamentação contínua, ela desenvolveu inflamação nas glândulas mamárias, mas continuou amamentando as crianças sozinha. Finalmente ela ficou arrasada com a morte de seu filho Vánia, de 8 anos. Ela foi forçada a cuidar do marido, passou por uma grande tragédia e acabou não conseguindo superar seu trauma. 
 
O casal Tolstói e seus 8 filhos sobreviventes
 
No início, ela desenvolveu mania de perseguição e ideias obsessivas. Constantemente remexia nas coisas do marido e ouvia suas conversas. Um ano depois, ela começou a ter convulsões e raiva incontrolável. Parentes ligaram para psiquiatras que nela diagnosticaram uma dupla constituição degenerativa: paranóica e histérica, com a primeira predominando
Sófia Andrêievna sobreviveu à morte do marido por nove anos, durante os quais mãe e filha (Sasha) acabaram reconciliando-se. E vale acrescentar: graças a Sófia, agora temos museus com manuscritos e pertences pessoais de Liev Tolstói. 

Diferente interpretação sobre a decisão de Liev Tolstói 
 
Há também uma versão não oficial da morte de Liev Tolstói, apresentada no exílio por I.K. Sursky, segundo as palavras de um policial russo. De acordo com esta versão, antes de morrer o escritor queria fazer as pazes com a Igreja e foi até Optina Pustyn com esse propósito. Ali ele aguardou ordens do Sínodo, mas, sentindo-se mal, foi levado por sua filha Sasha, que havia chegado, mas infelizmente não passou da estação de Astápovo, onde encontrou a própria morte.
 
Estação de Astápovo: o último refúgio 
 
Esta pequena estação ferroviária na região de Lipetsk é agora chamada de "Liev Tolstói". Em 1910, a atenção nacional voltou-se para Astápovo. Em 13 de novembro, poucos dias depois de sair de casa, Tolstói, gravemente doente, foi levado para a casa do chefe da estação – não havia lugar mais confortável disponível. O escritor estava praticamente inconsciente e com falta de ar. Vários médicos tentaram salvar Tolstói, mas ele pediu para não o incomodar – e confiou na vontade de Deus, razão por que dispensou a bênção e o consolo que representaria a presença de padres em seu leito de morte.
A saúde de Tolstói era motivo de preocupação nos mais altos círculos – até mesmo as autoridades da capital convocavam reuniões, enquanto os governadores locais, o Ministério do Interior e as autoridades ferroviárias incumbiam a polícia local e os funcionários da estação de telegrafarem com a maior frequência possível. 
Os jornalistas foram os primeiros a alcançar Astápovo, mas gradualmente pessoas de todas as classes sociais e níveis hierárquicos começaram a chegar, assim como um grande número de admiradores do escritor. “Tinha-se a impressão de que, durante esses sete dias na estação, o destino do império estava sendo decidido, e que o globo inteiro estava assistindo”, escreve Bassínski.
 
Multidão de autoridades, jornalistas, admiradores e seguidores do Tolstoísmo na Estação de Astapovo

 
Antes de qualquer outra pessoa, o primeiro a visitar Tolstói foi seu assistente Tchértkov. Tolstói afirmou categoricamente que não queria ver a esposa, e até temia que ela viesse, gritando em delírio à noite: “Fugir... Fugir... Dar o fora...”. 
Mesmo assim, Sófia Andrêievna foi a Astápovo – ela sabia da impotência do marido na vida cotidiana e estava muito preocupada: “Quem lhe dará manteiga lá?!”. Ela queria ver o marido, mas, como escreve Bassínski, “a decisão coletiva dos médicos e de todos os filhos foi não deixá-la entrar e não contar nada a Tolstói sobre sua chegada”. 
Sófia Andrêievna então decidiu se comunicar ativamente com jornalistas. Ela foi filmada para cinejornais e deu entrevistas, narrando sobre quarenta e oito anos de uma vida familiar feliz. 
Ela teve permissão para ver Tolstói algumas horas antes de sua morte, quando ele já estava inconsciente. Ela caminhou silenciosamente até ele, beijou-o na testa, ajoelhou-se e começou a dizer-lhe: 'Perdoe-me' e algo mais que eu não consegui ouvir, lembrou seu filho Serguêi. 
Uma enorme multidão de pessoas foi a Iásnaia Poliana para se despedir de seu guru. De acordo com aquilo que o próprio Tolstói deixou expresso ao declarar seu último desejo, a cerimônia fúnebre não foi ortodoxa, mas secular. E o enterraram na sua propriedade patriarcal de Iásnaia Poliana, sem cruz ou monumento – apenas fizeram um monte de terra, coberto de grama. 
 
Museu-propriedade de Iásnaia Poliana

 
II. NOTA EXPLICATIVA
 
 
¹ Cf. VÁSSINA, Elena: Lev Tolstói pelo prisma da literatura contemporânea: análise da poética dos gêneros documentais, São Paulo: Fronteira Z, nº 18, julho de 2017, pp. 148-166. 
 
²  Cf. DILETANT (portal): Liev Tolstói: A última viagem (Лев Толстой: последнее путешествие). Link: https://diletant.media/articles/45308326/
 
 
III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  


BALINA, Marina. Literatura nonfiction: invenções e realidade. [БАЛИНА, Марина. Литература non fiction: вымыслы и реальность.] Známia, Moscou, jan. 2003. Disponível em: http://magazines.russ.ru/znamia/2003/1/r1.html. Acesso em: 15.05. 2025.

BARTLETT, Rosamund: Tolstói. A biografia. Link: https://repensar.noblogs.org/files/2016/01/Tolst%C3%B3i-A-Biografia-Rosamund-Bartlett.pdf

BASSÍNSKI, Pavel. Tostói: A fuga do paraíso. Trad. Klara Gourianova. São Paulo: Leya, 2013

DILETANT (portal): Liev Tolstói: A última viagem (Лев Толстой: последнее путешествие). Link: https://diletant.media/articles/45308326/

PARINI, Jay. A última estação. Trad. Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Rocco, 1991

TOLSTÓI, Lev. Coletânea das obras em 22 volumes [ТОЛСТОЙ, Лев. Собрание сочинений в 22-х томах]. Moscou: Khudójestvennaia Literatura, 1984.

VÁSSINA, Elena: Lev Tolstói pelo prisma da literatura contemporânea: análise da poética dos gêneros documentais, São Paulo: Fronteira Z, nº 18, julho de 2017, pp. 148-166.  Link: http://dx.doi.org/10.23925/1983-4373.2017i18p148-166

VÓLGUIN, Igor. Retirar-se de todos: Lev Tolstói como peregrino russo [ВОЛГИН, Игорь. Уйти от всех: Лев Толстой как русский скиталец]. Мoscou: VK, 2010 

ZORIN, Andrei: Leo Tolstoy (Critical Lives). London: Reaktion Books, 2020, 224 p.