Por Francisco José dos Santos Braga
O pensamento do "incomparável" Pe. Luiz Zver, notável pedagogo e cultor das humanidades, neste Blog do Braga, o dignifica. Mas não basta que se diga sobre os méritos de alguém: é preciso desvendá-los, para que, à luz do dia, se possa admirá-los.
O leitor lusófono desse blog passa agora a beber de fonte limpa o conhecimento profundo que emanava dos lábios desse santo sacerdote que dedicou, de corpo e alma, 51 anos de sua vida à vida cultural de São João del-Rei.
Agradeço aos deuses o fato de ter convivido com esse portento e calo-me, pois "que outro valor mais alto se alevanta".
Tomando de empréstimo ainda outras estrofes de nosso maior poeta épico, julgo ainda caber à memória do epigrafado as seguintes:
O leitor lusófono desse blog passa agora a beber de fonte limpa o conhecimento profundo que emanava dos lábios desse santo sacerdote que dedicou, de corpo e alma, 51 anos de sua vida à vida cultural de São João del-Rei.
Agradeço aos deuses o fato de ter convivido com esse portento e calo-me, pois "que outro valor mais alto se alevanta".
Tomando de empréstimo ainda outras estrofes de nosso maior poeta épico, julgo ainda caber à memória do epigrafado as seguintes:
"E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte."
Ouçamos, portanto, o que tem Pe. Luiz Zver a nos dizer:
Grandezas e Benemerências do Magistério *
Pe. Luís Zver.
São João del-Rei, M. G.
1. "Ordem geral: Apagar os faróis!"
Um poeta moderno, num belo poema recente, descreve a situação angustiosa que se apresentou para certas regiões da Europa, quando, durante a última guerra, por motivos estratégicos, o comando geral aliado expediu certo dia uma ordem que devia ser cumprida em todas as costas, portos, fortalezas do Atlântico, do Mediterrâneo e do Mar do Norte: "Apagar os faróis!"
Deixai, senhores professores e senhoras professoras, que vos recite alguns versos do poema:
"Apagar os faróis!"
Noite escura.
Hórrida ruge a tempestade.
Uiva lúgubre o vendaval,
Geme o vento e o temporal
Se mistura,
Em feérica claridade
Dos relâmpagos, com o troar
De mil vagalhões do mar.
Singra as ondas, minha nau!
Rompe, vence o vento mau!
Já está aceso ali o farol:
Ele é o norte, ele é o sol.
— Como assim?
"Todos os faróis se apaguem!»
Esta é a ordem do general.
Ele quer o "black-out" total.
Ai de mim!
E os abismos que nos traguem?
Que nos amortalhe o mar,
Sem uma luz a nos guiar?
Era assim como se Deus
Apagasse os astros seus,
Sol, estrelas, o arrebol,
Quando se apagou o farol.
2. O Centro de Estudos Pedagógicos.
Foi com o maior interesse, ilustrados ouvintes, que acompanhei o nascer e o robustecer-se deste Centro de Estudos Pedagógicos que congrega a elite intelectual de São João del-Rei e os maiores expoentes da sua cultura. Foi uma ideia feliz do Revmo. Sr. Pe. Ralfy Mendes, que o concebeu como uma irradiação da Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras e lhe traçou as diretrizes básicas; idéia que se concretizou graças ao "habitat" favorável em que a semente foi lançada. E' um "verbo que se fez carne" e que fazemos votos se perpetue entre nós, para o bem de cada um dos batalhadores da instrução, do elemento discente e, por ele, de toda a população da "urbs" e do município, de acordo com as altas finalidades para as quais o Centro foi fundado.
Terei grande satisfação, senhoras professoras e senhores professores, se as minhas palavras tiverem o poder de enamorar-vos um pouco mais da vossa vocação, de estimular-vos ao seu apreço e ao seu desempenho sempre mais perfeito, apesar dos inegáveis e ingentes sacrifícios que o magistério impõe aos que lhe consagram a vida.
Não temo ser desmentido ao afirmar que o Centro de Estudos Pedagógicos dá a São João del-Rei uma posição pioneira entre as cidades de Minas, e quiçá do Brasil, visto que não nos consta da existência, até o momento da sua fundação, de instituição similar alhures, embora quem quer que a considere com um pouco de penetração, deva reconhecê-la de indiscutível utilidade.
Não somos um sindicato, nem uma simples associação de classe; somos isto e muito mais: somos sobretudo uma instituição especificamente cultural e formativa, para aperfeiçoamento e pesquisa no campo educacional.
Num estudo recente publicado pela UNESCO, sobre a "Preparação do Pessoal Docente" se diz que "os educadores têm tendência para trabalhar isoladamente; raramente têm ocasião de se verem no trabalho uns aos outros, de colaborarem e de compararem suas experiências". Por isso se sugerem alguns meios que se julgam aptos para desenvolver o senso de compreensão social entre os mestres no exercício das suas funções. Entre tais meios se aponta a "Criação de Centros de estudos em que se organizarão conferências, cursos especializados, mesas redondas para trocas de idéias e participação de experiências".
Creio que não seria fora de propósito que a UNESCO tomasse conhecimento da existência do Centro de Estudos Pedagógicos de São João del-Rei.
3. Vocação e profissão.
Cientemente e de propósito empreguei há pouco, referindo-me ao magistério, a palavra vocação e não profissão. Creio que há profundas diferenças entre o profissional de qualquer ofício ou arte liberal e o mestre ou professor, nem há termo ou medida comum para a avaliação das respectivas grandezas e conceitos. Para servirmo-nos da linguagem matemática, podemos afirmar que magistério e profissão, quer técnica quer liberal, são grandezas incomensuráveis.
Quando há três anos se tratou da majoração do salário mínimo na indústria e no funcionalismo, houve quem inconsideradamente propusesse que fosse estabelecido também o salário do professor e se fixasse o "preço" de uma aula. E foi com justa indignação e mordaz ironia que um jornalista perguntou se havia bom-senso em tabelar o ensino como se tabela o feijão, o toucinho, uma corrida de táxi ou a lavagem de um automóvel. Há algo de comum entre a prestidigitação de uma datilógrafa, a força muscular de um carregador portuário, a perícia de um motorista de caminhão ou mesmo a eficiência de um técnico-agrônomo, de um lado, — e, de outro, o desvelo materno de uma professora primária ou o labor científico de pesquisa de um professor de universidade? Se quiséssemos igualá-los no mesmo plano, cometeríamos o mesmo disparate daquele, que entrou numa livraria perguntando pelo preço de cinco quilos de livros científicos ...
4. Paternidade e sacerdócio.
Não, o professor não é propriamente um profissional, apesar da raiz comum dos vocábulos. Em certo grau e modo ele participa tanto da condição de pai como de sacerdote, visto que o magistério não prescinde do que constitui o elemento essencial de um e de outro. Com efeito, o elemento essencial da paternidade, e especialmente da maternidade, é o amor, e o do sacerdócio é o sacrifício. Ora, o ensino, especialmente da base, exige amor e sacrifício em grau não menor que ciência e técnica.
E é por isso que o Papa Pio XII aconselha que o ensino primário seja preferivelmente confiado a mulheres, porque são elas mais capazes de amar e de sacrificar-se do que os homens, sem que com isto queiramos diminuir o mérito destes.
Eis as palavras do Papa: "Tratando-se da primeira infância, é conveniente que a educação seja confiada à mulher, a qual deve portanto esforçar-se por enriquecer seus dons inatos de intuição e de sentimento por uma importante bagagem de conhecimentos e de experiências oriundas das ciências pedagógicas. Formar uma professora para a infância é como formar espiritualmente uma mãe, com a diferença apenas de que esta última se torna educadora em virtude da própria natureza previdente, enquanto que a educadora por profissão deve desenvolver em si, por seu esforço e boa vontade, a alma maternal".
5. A questão do salário.
Se o magistério participa da natureza da paternidade, se o professor é verdadeiro pai, como a professora verdadeira mãe, então podemos afirmar que, se o artífice, o profissional dá ao seu cliente algo do seu e em troco recebe a conveniente paga, o professor e a professora, à guisa de pais, dão aos seus alunos algo de si, uma parte do seu próprio ser, um pedaço da sua própria alma, se ela pudesse ser repartida em pedaços. E é por isso que o ensino não pode ter salário nem preço justo. Por quanto, com efeito, venderia alguém um braço, um olho, um litro de sangue ou alguns anos da própria vida? Movidos por um grande amor, poderíamos dar todas estas coisas, não porém vender.
Mas não é verdade que o porteiro ou o varredor analfabeto de um banco são, às vezes, mais bem pagos que uma professora primária? Mas isto acontece justamente por estar o trabalho magisterial e educativo muito além de qualquer preço. Ainda que o varredor quantitativamente recebesse muito menos, haveria sempre mais adequação do seu salário com o seu trabalho, do que entre estes mesmos dois fatores em se tratando da professora. Aliás, um dos maiores educadores do Brasil, Everardo Backheuser, diz a respeito: "Quem aspira a retribuições generosas não deve procurar o magistério. Aí o máximo que se obtém são as recompensas da glória, das honras que a sociedade tributa (quando tributa ...) às suas nobres funções. As pessoas com real vocação para educadores suportam com galhardia essa situação, sorriem da miserável retribuição que lhes chega a troco de tão grandes dispêndios de forças. E quantas vezes ainda tiram do magro bolso quantias para melhoria do ensino nas respectivas classes e escolas. O desinteresse pela riqueza, acaso pelas comodidades da vida, ou seja o espírito de sacrifício, precisa ser pois um dos adornos do educador".
6. Rafael e Tobias.
Notai bem que é uma situação extremamente humilhante e embaraçosa, não já para o professor, mas para a comunidade cívica e para os poderes públicos (quando estes e aquela são capazes de avaliar o fato) ver os professores, seus guias, seus mentores espirituais, fazerem fila diante dos guichês da pagadoria para reclamar seus vencimentos, à guisa dos servidores da limpeza das ruas, dos operários do serviço de calçamento de estradas ou dos guardas do policiamento noturno ... A comunidade civil e os seus regidores deveriam sentir-se sumamente honrados em poder oferecer-lhes uma parte do que lhes devem, pois tudo o que lhes devem jamais poderiam dar.
Dever-se-ia repetir a cena descrita na Sagrada Escritura do Antigo Testamento:
Quando Tobias, filho, voltou da sua aventurosa viagem e contou aos pais quantos benefícios lhe dispensara durante a mesma o seu estranho companheiro, o velho Tobias pai puxou o moço pela capa a um canto da casa e entre os dois se travou uma discussão em cochichos, para que não fossem ouvidos pelo arcanjo:
Tobias pai: "Que poderemos dar a ele em recompensa?"
Tobias filho: "Pois é isto o que também eu pergunto: Que lhe poderemos dar? Veja quantos favores me fez: levou-me e trouxe-me são e salvo, juntamente com o dinheiro que fui buscar; salvou-me das fauces do tubarão, que queria devorar-me; ao senhor restituiu-lhe a vista e a mim ainda me fez achar uma linda noiva, da qual prudente e caridosamente antes expulsara o demônio ...
Tobias pai (suspirando como de alívio, ao pensar no que poderia ser a sua velhice, tendo em casa uma nora endiabrada...): "Já por isso só o nosso amigo merece uma grande recompensa".
Tobias filho: "Tenho uma idéia, meu pai: poderíamos oferecer a ele metade de tudo o que eu trouxe ..."
E então ambos foram ter com o anjo Rafael e começaram a rogar-lhe insistentemente, e quase a forçá-lo, que se dignasse aceitar a metade do tesouro trazido de Rages ...
Sim, meus senhores, o magistério traz à sociedade benefícios tão grandes que para ele não há salário, nem mínimo, nem máximo, que se possa dizer proporcionado ou justo, por ser ele, não uma profissão, mas uma vocação, uma paternidade.
7. Ensino, função sacerdotal.
Disse há pouco que o magistério participa também da natureza do sacerdócio. Informa-nos a história da educação que por muito tempo o magistério foi função exclusivamente sacerdotal. E hoje continua sendo um dos três grandes ofícios de que é revestido o sacerdote católico: sacrificar, oferecendo a Missa; santificar, administrando os sacramentos; e ensinar, pelo ministério da palavra.
O professor e a professora, leigos, não podendo dizer Missa nem administrar sacramentos, participam do sacerdócio ensinando. E aí está mais uma razão que corrobora e confirma o que disse há pouco: assim como não se paga uma Missa, que é de valor infinito, nem há preço que corresponda ao benefício de uma confissão ou do batismo, não há também paga adequada para o ensino.
O magistério é na verdade um sacerdócio sublime; e isto nos leva a uma outra ordem de idéias que realçam ainda mais as grandezas da vocação magisterial.
8. Magistério e sociedade.
Pergunta S. João Crisóstomo: "Que há de mais sublime do que governar os espíritos e formar os costumes da juventude?"
Na ordem natural somente a maternidade se pode dizer mais excelente do que o magistério.
Na sociedade organizada e civil nenhuma classe de pessoas é mais benemérita do que a dos professores, pela simples razão de que sem ela nem pode haver sociedade organizada e civil, por dependerem dela todas as demais classes. Não há médico, nem engenheiro, nem técnico, nem padre, que pela própria personalidade intelectual e profissional não seja devedor ao magistério, o qual unicamente é auto-suficiente, dependente somente de si.
Um médico não faz outro médico, a não ser que seja médico-professor e ainda assim, servindo-se de "material" já trabalhado pelo professor simplesmente tal. Do mesmo modo um engenheiro não faz outro engenheiro; mas um professor faz outro professor, como faz ou fornece elementos para todas as demais profissões.
9. Fins remotos do ensino.
E' fácil de perceber por aí que é tremendo o poder que os professores têm em suas mãos, embora dele usem sem ter muita vez inteira consciência disso.
Em primeiro lugar, completam, de certo modo, a obra de Deus Criador, desenvolvendo pela arte educativa as faculdades que Ele infundiu no ser humano. O homem se torna mais homem, quando se instrui; ora este — tornar-se mais homem — depende dos mestres. Com São Paulo podem eles dizer com santa ufania: Somos os ajudantes de Deus. "Dei enim sumus adiutores" (1 Cor 3, 9).
Em segundo lugar, aumentam o número dos conhecedores do próprio Deus, dos Seus adoradores e possuidores da bem-aventurança eterna, quer se trate da ministração da ciência da religião, quer dos demais ramos do conhecimento, os quais, se ministrados honesta e conscienciosamente, não podem deixar de estreitar as relações do homem com o seu Criador, se é verdadeira a célebre sentença de Bacon, que pouca ou falsa ciência pode às vezes afastar de Deus, mas que uma ciência profunda dele só nos pode aproximar.
Em terceiro lugar, o professor e a professora asseguram um futuro melhor para o indivíduo, visto que os conhecimentos adquiridos nos verdes anos não são como a roupa que usou em pequeno e abandonou, por estreita e curta, quando o corpo se alongou e engrossou; mas formam parte inalienável da sua bagagem definitiva, ou melhor, da sua personalidade. Não se diz lá no livro dos Provérbios que o homem, mesmo quando envelhecer, não se apartará do caminho que trilhou na juventude?
Nos joelhos maternos, antes de tudo; à sombra da Igreja, depois; e finalmente nos bancos escolares é que se formam os heróis, os santos, os benfeitores da humanidade.
Simón Bolívar declarou que a Grande Colômbia era devida, não ao seu talento militar, nem ao seu tino político, mas ao seu velho professor, que tinha instilado nele ideais de liberdade e de amor pátrio.
E sobre este assunto quanta coisa se poderia dizer! Poderíamos colher material abundante para uma outra conferência na qual se poderia dissertar do influxo da escola na formação dos grandes homens e dos indivíduos comuns, em geral.
Ao pé de todos os monumentos erguidos em honra dos sábios e dos heróis, deveríamos colocar sempre uma estátua que representasse a professora primária, como a dizer: Tu não serias o que és, se eu não tivesse sido o que fui: tua primeira mestra!
10. Arquitetos de um mundo melhor.
Em quarto lugar, finalmente, na escola os professores forjam o futuro das nações e da humanidade em geral. E' este um fato de tão transcendental importância, que nem podemos avaliá-lo em toda a sua extensão.
No dia 24 de outubro do ano passado, o Papa Pio XII, num discurso dirigido a normalistas, afirmava: "Para assegurar à Igreja e à sociedade um futuro mais sereno, nada pode ser mais decisivo e eficaz do que inclinar-se sobre os tenros rebentos das novas gerações, desde a sua primeira infância, para orientar o seu desenvolvimento na direção da verdade e do bem".
Eis o que fazeis especialmente vós, professoras primárias: inclinais-vos sobre os tenros rebentos das novas gerações para orientá-las na direção da verdade e do bem. Quando estas gerações deixarem de ser novas, poderá — graças a vós — haver mais serenidade para a Igreja, mais paz para a sociedade humana.
E' estribilho rebatido e requentado que o futuro pertence à juventude. Ora, a juventude está nas nossas mãos; é massa que nós estamos amoldando. Logo o futuro está nas nossas mãos. Este fato tem significação profundíssima e deve ter uma repercussão tremenda na nossa própria vida.
11. Consertar o Brasil.
As jeremiadas sobre a situação precária e os males que afligem o mundo em geral, e o Brasil em particular, se avolumam de tal maneira, que já abarrotam as redações dos jornais, sufocam os microfones das estações de rádio e envenenam com o seu amargor todas as conversas. Tudo vai mal e nada há que preste, especialmente o governo . . .
E quando deveríamos todos — para usar uma expressão vulgar — cuspir nas mãos, arregaçar as mangas e pegar rijo na ferramenta, pondo-nos a trabalhar para por um dique à inundação dos males que lamentamos, perdemos o tempo e as energias em críticas estéreis, aguardando um mágico que venha salvar a humanidade periclitante.
E, afinal, quem há de consertar o Brasil, se é que ele precisa e é suscetível de conserto? Serão os políticos? Mas são quase sempre eles os que o enterram. Serão os técnicos? Quem, senão eles, lhe entrava burocraticamente a marcha, em vez de impulsioná-lo para o progresso? Se há quem pode e deve por um remédio eficaz aos males lamentados, estes são os educadores da juventude. Hoje não, amanhã também não, mas depois de amanhã, sim, o Brasil poderá ser tal qual nós hoje quisermos que seja, formando agora os governantes, os legisladores, os magistrados, o povo de amanhã.
Somos nós, os professores, que — talvez inconscientemente — damos feição própria a cada povo, a cada século, a cada civilização.
Se nas primeiras décadas deste século tivesse havido um professorado numeroso, competente e sacrificado, hoje os horizontes da pátria seriam menos carregados.
Se o findar do século presente for para o Brasil próspero e tranquilo, a nós, professores de hoje, caberá, em grande parte, o mérito. Mas não nos serão poupadas acerbas críticas e a execração, quiçá, dos filhos dos nossos alunos, se por nossa ineficiência, males semelhantes aos que hoje afligem a humanidade, infelicitarem também os cidadãos do porvir.
12. Lições da História.
Consultai a história e me dareis razão. O período de maior esplendor da Grécia antiga é assinalado pela atuação de admiráveis mestres, como Sócrates, Aristóteles, Platão. Foram eles que fizeram o século de Péricles, e não vice-versa. Quando, porém, nas escolas gregas as cátedras foram ocupadas pelos cínicos, os céticos, os sofistas, a Grécia deixou de brilhar, e uma nação, que se tinha coberto de glória dispersando os incontáveis exércitos de Ciro e de Dario, caiu sem combate aos pés de Roma, cujas legiões fizeram empalidecer todo o esplendor de Salamina, das Termópilas e de Maratona.
A própria Roma assinou o decreto da sua ruína, quando a educação dos seus filhos foi confiada aos escravos e não mais aos eruditos e austeros retores dos tempos da república. Como poderia o professor escravo e estrangeiro, de uma nação vencida, incutir sentimentos de honra e de justiça nos ânimos juvenis, daqueles cujos pais lhe tinham destroçado a pátria e feito a maior das injustiças, tirando-lhe a liberdade?
Que é que deu tanta glória ao Sagrado Império Romano-Germânico, senão as admiráveis escolas conventuais e as excelentes universidades da Idade Média, onde pontificavam mestres extraordinários, como Alberto Magno, Alexandre de Hales, Duns Scot e Tomás de Aquino? Bem compreendera a importância do ensino um imperador como Carlos Magno, que era analfabeto, mas fazia questão de visitar as escolas, assistir às aulas, castigar pessoalmente os alunos preguiçosos, prestigiando assim o mestre.
Foram os mestres de escola, especialmente, e os professores os que prepararam a Revolução Francesa, e vós sabeis que foi nas universidades de Coimbra e de Paris que os Inconfidentes se imbuíram dos ideais de liberdade e de independência.
Quem preparou o advento do nazismo alemão e do fascismo italiano foram os professores que no final do século passado e no começo do presente enfararam a juventude do seu tempo com as megalomanias de Nietzsche e com as loucuras do seu Zaratustra e com o chauvinismo nacionalista de Gioberti e de Mazzini.
Por outra parte, visitemos os países mais adiantados, cujo progresso admiramos e talvez invejemos, os Estados Unidos, Canadá, os Países Escandinavos, Finlândia, Suíça, França, Inglaterra, e verificaremos que a causa do seu adiantamento está precisamente na sua perfeita organização escolar, no preparo técnico e no prestígio de que gozam os seus mestres, os verdadeiros artífices das transformações sociais que nestas nações se operaram no decorrer dos últimos séculos.
Por aí compreendereis como ninguém jamais fez um mal tão grande ao Brasil, quanto o Marquês de Pombal, quando expulsou de nosso país os jesuítas, que tinham sido seus mestres quase exclusivos nos séculos XVI, XVII e XVIII. Com aquele mal-aventurado gesto Pombal empurrou a nossa história e a nossa civilização de um século para trás.
Sim, prezados ouvintes, nós que ensinamos a história e às vezes, lhe escrevemos os compêndios, talvez não tenhamos reparado que quem faz a história são os nossos alunos, imbuídos de nossas idéias, e somos nós que lhes fornecemos o material e até lhes traçamos os planos.
13. Os do outro lado.
Os comunistas, que são astutos e perspicazes, compreendem, talvez melhor do que nós, o fato da total dependência do porvir de uma nação dos mestres de hoje. Tive oportunidade de verificar as coisas de perto: os governos dos países dominados pelo comunismo, cientes de que não lhes é possível amoldar de acordo com a sua mentalidade a população toda, cujos 90% lhes são contrários, contentam-se e exigem que sejam verdadeiramente comunistas estas três classes de pessoas: os funcionários do Estado, pois, em fim de contas, são eles os que governam; os oficiais do exército e da polícia, pois são eles os que sustentam o governo; os mestres de escola e os professores secundários, pois são eles os que formam os futuros governantes e as futuros oficiais, garantindo, assim a continuação do regime. E um sagaz e eficiente chefe de Estado comunista disse certa vez: "Admito que um sapateiro faça bons sapatos, apesar de não ser comunista, e que um engenheiro monte com perfeição uma usina hidrelétrica, ainda que não pertença ao partido. Mas não me entra na cabeça como um mestre-escola possa formar bons cidadãos do Estado socialista, se ele próprio não for completamente penetrado do pensamento e convicções socialistas".
14. Responsabilidades maiores.
Caros colegas de magistério, tudo o que vos disse até aqui nos faz pensar na nossa enorme responsabilidade, quer perante a nação e a humanidade, quer perante as próprias crianças e os jovens, sobre os quais exercemos uma tremenda, incoercível influência. Se a juventude é moralmente sadia e intelectualmente bem orientada, — não inteiramente — mas em grande parte o mérito é nosso. Em boa parte é nossa a culpa, se se dá o contrário. Flávio Silveira Lobo escreveu há pouco num jornal carioca: "Cada vez que um menino se perde, há um adulto que falhou". Nem sempre, mas muitas vezes esse adulto é o professor ou a professora.
Mas este fato nos comunica também estímulo, para termos na devida conta o magistério e nos compenetrarmos bem da excelsitude da nossa missão.
São os professores os anônimos construtores das grandezas de uma nação, os artífices silenciosos da sua glória, os operários ignorados que na oficina da escola forjam o seu porvir.
Na base de toda a estrutura de um povo está uma escola e no topo da pirâmide dos valores nacionais se encontra uma professora, um educador. Por isso nenhuma instituição cultural de um país é tão importante como a Escola Normal e as Faculdades de Filosofia, quartéis que fornecem à pátria estes soldados sem armas, estes artistas da instrução e da educação, que, segundo São Gregório de Nazianzo, são a arte das artes, a ciência das ciências.
15. O dever dos outros.
Um derradeiro pensamento: de tudo isto se deduz o dever que cabe aos poderes públicos e à comunidade de prestigiar o mestre. Mas para que isto se dê, é preciso que o próprio professorado tome a iniciativa de uma campanha de âmbito universal para a própria valorização. E' que nós somos uma classe social "sui generis": é nossa missão e nosso dever ensinar tudo a todos; diretamente às crianças, indiretamente aos pais e aos próprios governantes. Entre as coisas que lhes devemos ensinar, são os deveres que têm para conosco ...
A publicação da UNESCO, a que me referi no começo desta palestra, diz a este respeito: "A função docente será honrada, se ela for exercida por mestres dotados de uma personalidade irrepreensível, bem preparados para a sua tarefa e altamente qualificados. A comunidade julgará a função docente pela conduta e valor técnico dos que a exercem. E poderá igualmente ser tentada a adotar a idéia que se faz o mestre da sua própria função. Julgamos que as Escolas Normais muito podem fazer para realçar o prestígio da carreira magisterial, fazendo compreender aos seus alunos o grande valor social dos serviços que são chamados a prestar à humanidade".
16. Voz dos alunos agradecidos.
Felizmente, seria injustiça dizer que a função, ou antes, a missão de mestre e professor não seja devidamente apreciada e que não haja ricas poliantéias de hinos de louvor, que a humanidade agradecida ergueu, especialmente nos tempos recentes, a quem lhe serve de guia, carregando à sua frente o brandão do saber. Basta folhear as numerosas páginas da literatura de qualquer país.
Se há na antiguidade um poeta como Horácio Flaco, que se lembra com pouca saudade do seu professor Orbílio Pupilo, a quem chama de Terrível, "plagosum... Orbilium", a causa está principalmente na "ferŭla"¹ e na "scutĭca"², que, segundo o testemunho de um condiscípulo, Domício Marso, o velho mestre romano manejava com excessiva facilidade... Mas em compensação quantos homens há que se recordam com comovida gratidão dos seus preceptores e lhes dedicam páginas de admirável beleza literária!
Paul Renaudin nos fala de Mademoiselle Duret, como um filho falaria da própria mãe, e Rétif de la Bretonne traça um belíssimo retrato do seu velho professor, "le respectable Berthier". E quem é que não leu o poema "L'instituteur"³, de Vítor Hugo, em que o poeta apostrofa os meninos, "gentis algozes", que crucificam o velho mestre mártir cujo cavalete de tortura é a cátedra, à maneira de São Cassiano, o mestre-escola de Roma, a quem mataram na sala de aula os seus próprios alunos a golpes de estilete de escrever?
«Saint et grave martyr changeant de chevalet,
Crucifié par vous, bourreaux charmants, il est
Votre souffre-douleurs et votre souffre-joies».
17. «Cornélias, mães de cem Gracos».
E com que respeitosa ternura descreve Humberto de Campos a figura "frágil, doce, triste e silenciosa" da sua professora, a "mestra Marocas"!
"Ao evocar neste momento a sua figura discreta e melancólica, em cuja face dolorida se refletia um drama interior, acodem-me algumas reflexões oportunas, que podem ser ajustadas à história e à vida de quase todas as ... educadoras sem títulos ou recompensas oficiais, Cornélias, mães de cem Gracos, que foram para o serviço da Pátria, dando-se em holocausto cotidiano, centenas de cidadãos. E' de imaginar o que padecem esses corações afeiçoados, tendo de perder, pelo afastamento, cada ano uma dezena desses filhos adotivos ... Os moços em geral são como os pássaros: emplumada a ave, abandona o ninho, que a aqueceu e o bico que a alimentou. E nunca mais, no espaço imenso, reconhece a ave que, quando implume, a agasalhou e protegeu. A professora primária, que nos fez digerir a primeira semente do alfabeto, é essa ave generosa e magnânima, reveladora da imensidade e do mundo"⁴.
Cordélia Gross, professora primária de Nova York, descreve este estado de alma, da mestra que se separa dos alunos aos quais instruiu, educou e amou como filhos. Seu artigo, publicado recentemente por uma popularíssima revista, já é só por si uma epopéia e um programa: "Ensinar é amar".
18. O «Mestre».
Mas o maior estímulo para o bom desempenho da missão de ensinar, minhas senhoras e meus senhores, recebemo-lo daquele que disse: "Todo aquele que receber em meu nome um desses pequeninos é a mim que recebe" (Mc 9, 36).
Daquele que é o caminho, a verdade e a vida.
Daquele que é o Mestre por antonomásia: "Magister", como O chamavam simplesmente os que dele se aproximavam.
Ele nos disse um dia: Ide e ensinai!
Quando transpomos a soleira da porta de uma sala de aula, a Sua sombra nos acompanha.
Quando pacientemente nos debruçamos sobre a carteira de uma criança, o Seu olhar complacente nos observa.
Quando desvendamos a luz do saber às mentes tenras dos pequeninos, o Seu amor nos inspira e a Sua mão nos abençoa.
No programa-convite de formatura do ano passado, da Escola Normal Nossa Senhora das Dores, desta cidade, as professorandas colocaram este delicado pensamento: "Senhor, Tu que ensinaste, perdoa que eu ensine, que leve o nome de mestre, que tiveste sobre a terra".
Um educador do século XVII, comentando a palavra de Jesus, "Um só é o vosso mestre, Cristo", diz que todos nós que ensinamos somos uns sub-mestres, "hypodidáscaloi"; diríamos hoje, professores auxiliares ou professores assistentes, de Cristo, que é unicamente mestre catedrático.
19. Toda escola é um farol.
Termino, reportando-me aos faróis do início desta conferência: Nas trevas da ignorância, nas procelas desta vida, no mar borrascoso deste mundo, de que somos navegantes, cada escola é um farol, que espadana luz e aponta um roteiro. Nós somos os seus custódios, os seus zeladores. Não deixemos que o farol se apague. Mantê-lo aceso ou acendê-lo onde não houver é cumprir a mais bela tarefa que nos possa ser confiada na vida: é executar aquela missão, é cumprir aquela ordem que das plagas palestinenses fez chegar aos nossos ouvidos Cristo, o Mestre, o qual, para conservar-nos humildes e para fazer-nos compreender a excelsitude da mestrança, não quis que usássemos títulos pomposos: "Vós, porém, não vos chameis mestres, porque um só é o vosso mestre, Cristo"; mas que, apesar de tudo, se dignou associar-nos ao Seu magistério, dizendo-nos: Ide e ensinai!
NOTAS DO AUTOR DO BLOG
¹ Vara (para castigar as crianças e os escravos)
² Chicote feito de correia
³ Poema intitulado "Le Maître d' études" do livro "Les Contemplations" de Vítor Hugo.
⁴ CAMPOS, Humberto de. Memórias, p. 160-63. São Paulo: Opus, 1983.
*) Conferência pronunciada no Centro de Estudos Pedagógicos de São João del-Rei pelo Pe. Luiz Zver, Professor de Filologia Românica na Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, publicada pela Revista de Cultura Vozes, Ano LII, fevereiro de 1958, p. 109-123, Petrópolis, RJ.
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte."
Ouçamos, portanto, o que tem Pe. Luiz Zver a nos dizer:
Grandezas e Benemerências do Magistério *
Pe. Luís Zver.
São João del-Rei, M. G.
1. "Ordem geral: Apagar os faróis!"
Um poeta moderno, num belo poema recente, descreve a situação angustiosa que se apresentou para certas regiões da Europa, quando, durante a última guerra, por motivos estratégicos, o comando geral aliado expediu certo dia uma ordem que devia ser cumprida em todas as costas, portos, fortalezas do Atlântico, do Mediterrâneo e do Mar do Norte: "Apagar os faróis!"
Deixai, senhores professores e senhoras professoras, que vos recite alguns versos do poema:
"Apagar os faróis!"
Noite escura.
Hórrida ruge a tempestade.
Uiva lúgubre o vendaval,
Geme o vento e o temporal
Se mistura,
Em feérica claridade
Dos relâmpagos, com o troar
De mil vagalhões do mar.
Singra as ondas, minha nau!
Rompe, vence o vento mau!
Já está aceso ali o farol:
Ele é o norte, ele é o sol.
— Como assim?
"Todos os faróis se apaguem!»
Esta é a ordem do general.
Ele quer o "black-out" total.
Ai de mim!
E os abismos que nos traguem?
Que nos amortalhe o mar,
Sem uma luz a nos guiar?
Era assim como se Deus
Apagasse os astros seus,
Sol, estrelas, o arrebol,
Quando se apagou o farol.
2. O Centro de Estudos Pedagógicos.
Foi com o maior interesse, ilustrados ouvintes, que acompanhei o nascer e o robustecer-se deste Centro de Estudos Pedagógicos que congrega a elite intelectual de São João del-Rei e os maiores expoentes da sua cultura. Foi uma ideia feliz do Revmo. Sr. Pe. Ralfy Mendes, que o concebeu como uma irradiação da Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras e lhe traçou as diretrizes básicas; idéia que se concretizou graças ao "habitat" favorável em que a semente foi lançada. E' um "verbo que se fez carne" e que fazemos votos se perpetue entre nós, para o bem de cada um dos batalhadores da instrução, do elemento discente e, por ele, de toda a população da "urbs" e do município, de acordo com as altas finalidades para as quais o Centro foi fundado.
Terei grande satisfação, senhoras professoras e senhores professores, se as minhas palavras tiverem o poder de enamorar-vos um pouco mais da vossa vocação, de estimular-vos ao seu apreço e ao seu desempenho sempre mais perfeito, apesar dos inegáveis e ingentes sacrifícios que o magistério impõe aos que lhe consagram a vida.
Não temo ser desmentido ao afirmar que o Centro de Estudos Pedagógicos dá a São João del-Rei uma posição pioneira entre as cidades de Minas, e quiçá do Brasil, visto que não nos consta da existência, até o momento da sua fundação, de instituição similar alhures, embora quem quer que a considere com um pouco de penetração, deva reconhecê-la de indiscutível utilidade.
Não somos um sindicato, nem uma simples associação de classe; somos isto e muito mais: somos sobretudo uma instituição especificamente cultural e formativa, para aperfeiçoamento e pesquisa no campo educacional.
Num estudo recente publicado pela UNESCO, sobre a "Preparação do Pessoal Docente" se diz que "os educadores têm tendência para trabalhar isoladamente; raramente têm ocasião de se verem no trabalho uns aos outros, de colaborarem e de compararem suas experiências". Por isso se sugerem alguns meios que se julgam aptos para desenvolver o senso de compreensão social entre os mestres no exercício das suas funções. Entre tais meios se aponta a "Criação de Centros de estudos em que se organizarão conferências, cursos especializados, mesas redondas para trocas de idéias e participação de experiências".
Creio que não seria fora de propósito que a UNESCO tomasse conhecimento da existência do Centro de Estudos Pedagógicos de São João del-Rei.
3. Vocação e profissão.
Cientemente e de propósito empreguei há pouco, referindo-me ao magistério, a palavra vocação e não profissão. Creio que há profundas diferenças entre o profissional de qualquer ofício ou arte liberal e o mestre ou professor, nem há termo ou medida comum para a avaliação das respectivas grandezas e conceitos. Para servirmo-nos da linguagem matemática, podemos afirmar que magistério e profissão, quer técnica quer liberal, são grandezas incomensuráveis.
Quando há três anos se tratou da majoração do salário mínimo na indústria e no funcionalismo, houve quem inconsideradamente propusesse que fosse estabelecido também o salário do professor e se fixasse o "preço" de uma aula. E foi com justa indignação e mordaz ironia que um jornalista perguntou se havia bom-senso em tabelar o ensino como se tabela o feijão, o toucinho, uma corrida de táxi ou a lavagem de um automóvel. Há algo de comum entre a prestidigitação de uma datilógrafa, a força muscular de um carregador portuário, a perícia de um motorista de caminhão ou mesmo a eficiência de um técnico-agrônomo, de um lado, — e, de outro, o desvelo materno de uma professora primária ou o labor científico de pesquisa de um professor de universidade? Se quiséssemos igualá-los no mesmo plano, cometeríamos o mesmo disparate daquele, que entrou numa livraria perguntando pelo preço de cinco quilos de livros científicos ...
4. Paternidade e sacerdócio.
Não, o professor não é propriamente um profissional, apesar da raiz comum dos vocábulos. Em certo grau e modo ele participa tanto da condição de pai como de sacerdote, visto que o magistério não prescinde do que constitui o elemento essencial de um e de outro. Com efeito, o elemento essencial da paternidade, e especialmente da maternidade, é o amor, e o do sacerdócio é o sacrifício. Ora, o ensino, especialmente da base, exige amor e sacrifício em grau não menor que ciência e técnica.
E é por isso que o Papa Pio XII aconselha que o ensino primário seja preferivelmente confiado a mulheres, porque são elas mais capazes de amar e de sacrificar-se do que os homens, sem que com isto queiramos diminuir o mérito destes.
Eis as palavras do Papa: "Tratando-se da primeira infância, é conveniente que a educação seja confiada à mulher, a qual deve portanto esforçar-se por enriquecer seus dons inatos de intuição e de sentimento por uma importante bagagem de conhecimentos e de experiências oriundas das ciências pedagógicas. Formar uma professora para a infância é como formar espiritualmente uma mãe, com a diferença apenas de que esta última se torna educadora em virtude da própria natureza previdente, enquanto que a educadora por profissão deve desenvolver em si, por seu esforço e boa vontade, a alma maternal".
5. A questão do salário.
Se o magistério participa da natureza da paternidade, se o professor é verdadeiro pai, como a professora verdadeira mãe, então podemos afirmar que, se o artífice, o profissional dá ao seu cliente algo do seu e em troco recebe a conveniente paga, o professor e a professora, à guisa de pais, dão aos seus alunos algo de si, uma parte do seu próprio ser, um pedaço da sua própria alma, se ela pudesse ser repartida em pedaços. E é por isso que o ensino não pode ter salário nem preço justo. Por quanto, com efeito, venderia alguém um braço, um olho, um litro de sangue ou alguns anos da própria vida? Movidos por um grande amor, poderíamos dar todas estas coisas, não porém vender.
Mas não é verdade que o porteiro ou o varredor analfabeto de um banco são, às vezes, mais bem pagos que uma professora primária? Mas isto acontece justamente por estar o trabalho magisterial e educativo muito além de qualquer preço. Ainda que o varredor quantitativamente recebesse muito menos, haveria sempre mais adequação do seu salário com o seu trabalho, do que entre estes mesmos dois fatores em se tratando da professora. Aliás, um dos maiores educadores do Brasil, Everardo Backheuser, diz a respeito: "Quem aspira a retribuições generosas não deve procurar o magistério. Aí o máximo que se obtém são as recompensas da glória, das honras que a sociedade tributa (quando tributa ...) às suas nobres funções. As pessoas com real vocação para educadores suportam com galhardia essa situação, sorriem da miserável retribuição que lhes chega a troco de tão grandes dispêndios de forças. E quantas vezes ainda tiram do magro bolso quantias para melhoria do ensino nas respectivas classes e escolas. O desinteresse pela riqueza, acaso pelas comodidades da vida, ou seja o espírito de sacrifício, precisa ser pois um dos adornos do educador".
6. Rafael e Tobias.
Notai bem que é uma situação extremamente humilhante e embaraçosa, não já para o professor, mas para a comunidade cívica e para os poderes públicos (quando estes e aquela são capazes de avaliar o fato) ver os professores, seus guias, seus mentores espirituais, fazerem fila diante dos guichês da pagadoria para reclamar seus vencimentos, à guisa dos servidores da limpeza das ruas, dos operários do serviço de calçamento de estradas ou dos guardas do policiamento noturno ... A comunidade civil e os seus regidores deveriam sentir-se sumamente honrados em poder oferecer-lhes uma parte do que lhes devem, pois tudo o que lhes devem jamais poderiam dar.
Dever-se-ia repetir a cena descrita na Sagrada Escritura do Antigo Testamento:
Quando Tobias, filho, voltou da sua aventurosa viagem e contou aos pais quantos benefícios lhe dispensara durante a mesma o seu estranho companheiro, o velho Tobias pai puxou o moço pela capa a um canto da casa e entre os dois se travou uma discussão em cochichos, para que não fossem ouvidos pelo arcanjo:
Tobias pai: "Que poderemos dar a ele em recompensa?"
Tobias filho: "Pois é isto o que também eu pergunto: Que lhe poderemos dar? Veja quantos favores me fez: levou-me e trouxe-me são e salvo, juntamente com o dinheiro que fui buscar; salvou-me das fauces do tubarão, que queria devorar-me; ao senhor restituiu-lhe a vista e a mim ainda me fez achar uma linda noiva, da qual prudente e caridosamente antes expulsara o demônio ...
Tobias pai (suspirando como de alívio, ao pensar no que poderia ser a sua velhice, tendo em casa uma nora endiabrada...): "Já por isso só o nosso amigo merece uma grande recompensa".
Tobias filho: "Tenho uma idéia, meu pai: poderíamos oferecer a ele metade de tudo o que eu trouxe ..."
E então ambos foram ter com o anjo Rafael e começaram a rogar-lhe insistentemente, e quase a forçá-lo, que se dignasse aceitar a metade do tesouro trazido de Rages ...
Sim, meus senhores, o magistério traz à sociedade benefícios tão grandes que para ele não há salário, nem mínimo, nem máximo, que se possa dizer proporcionado ou justo, por ser ele, não uma profissão, mas uma vocação, uma paternidade.
7. Ensino, função sacerdotal.
Disse há pouco que o magistério participa também da natureza do sacerdócio. Informa-nos a história da educação que por muito tempo o magistério foi função exclusivamente sacerdotal. E hoje continua sendo um dos três grandes ofícios de que é revestido o sacerdote católico: sacrificar, oferecendo a Missa; santificar, administrando os sacramentos; e ensinar, pelo ministério da palavra.
O professor e a professora, leigos, não podendo dizer Missa nem administrar sacramentos, participam do sacerdócio ensinando. E aí está mais uma razão que corrobora e confirma o que disse há pouco: assim como não se paga uma Missa, que é de valor infinito, nem há preço que corresponda ao benefício de uma confissão ou do batismo, não há também paga adequada para o ensino.
O magistério é na verdade um sacerdócio sublime; e isto nos leva a uma outra ordem de idéias que realçam ainda mais as grandezas da vocação magisterial.
8. Magistério e sociedade.
Pergunta S. João Crisóstomo: "Que há de mais sublime do que governar os espíritos e formar os costumes da juventude?"
Na ordem natural somente a maternidade se pode dizer mais excelente do que o magistério.
Na sociedade organizada e civil nenhuma classe de pessoas é mais benemérita do que a dos professores, pela simples razão de que sem ela nem pode haver sociedade organizada e civil, por dependerem dela todas as demais classes. Não há médico, nem engenheiro, nem técnico, nem padre, que pela própria personalidade intelectual e profissional não seja devedor ao magistério, o qual unicamente é auto-suficiente, dependente somente de si.
Um médico não faz outro médico, a não ser que seja médico-professor e ainda assim, servindo-se de "material" já trabalhado pelo professor simplesmente tal. Do mesmo modo um engenheiro não faz outro engenheiro; mas um professor faz outro professor, como faz ou fornece elementos para todas as demais profissões.
9. Fins remotos do ensino.
E' fácil de perceber por aí que é tremendo o poder que os professores têm em suas mãos, embora dele usem sem ter muita vez inteira consciência disso.
Em primeiro lugar, completam, de certo modo, a obra de Deus Criador, desenvolvendo pela arte educativa as faculdades que Ele infundiu no ser humano. O homem se torna mais homem, quando se instrui; ora este — tornar-se mais homem — depende dos mestres. Com São Paulo podem eles dizer com santa ufania: Somos os ajudantes de Deus. "Dei enim sumus adiutores" (1 Cor 3, 9).
Em segundo lugar, aumentam o número dos conhecedores do próprio Deus, dos Seus adoradores e possuidores da bem-aventurança eterna, quer se trate da ministração da ciência da religião, quer dos demais ramos do conhecimento, os quais, se ministrados honesta e conscienciosamente, não podem deixar de estreitar as relações do homem com o seu Criador, se é verdadeira a célebre sentença de Bacon, que pouca ou falsa ciência pode às vezes afastar de Deus, mas que uma ciência profunda dele só nos pode aproximar.
Em terceiro lugar, o professor e a professora asseguram um futuro melhor para o indivíduo, visto que os conhecimentos adquiridos nos verdes anos não são como a roupa que usou em pequeno e abandonou, por estreita e curta, quando o corpo se alongou e engrossou; mas formam parte inalienável da sua bagagem definitiva, ou melhor, da sua personalidade. Não se diz lá no livro dos Provérbios que o homem, mesmo quando envelhecer, não se apartará do caminho que trilhou na juventude?
Nos joelhos maternos, antes de tudo; à sombra da Igreja, depois; e finalmente nos bancos escolares é que se formam os heróis, os santos, os benfeitores da humanidade.
Simón Bolívar declarou que a Grande Colômbia era devida, não ao seu talento militar, nem ao seu tino político, mas ao seu velho professor, que tinha instilado nele ideais de liberdade e de amor pátrio.
E sobre este assunto quanta coisa se poderia dizer! Poderíamos colher material abundante para uma outra conferência na qual se poderia dissertar do influxo da escola na formação dos grandes homens e dos indivíduos comuns, em geral.
Ao pé de todos os monumentos erguidos em honra dos sábios e dos heróis, deveríamos colocar sempre uma estátua que representasse a professora primária, como a dizer: Tu não serias o que és, se eu não tivesse sido o que fui: tua primeira mestra!
10. Arquitetos de um mundo melhor.
Em quarto lugar, finalmente, na escola os professores forjam o futuro das nações e da humanidade em geral. E' este um fato de tão transcendental importância, que nem podemos avaliá-lo em toda a sua extensão.
No dia 24 de outubro do ano passado, o Papa Pio XII, num discurso dirigido a normalistas, afirmava: "Para assegurar à Igreja e à sociedade um futuro mais sereno, nada pode ser mais decisivo e eficaz do que inclinar-se sobre os tenros rebentos das novas gerações, desde a sua primeira infância, para orientar o seu desenvolvimento na direção da verdade e do bem".
Eis o que fazeis especialmente vós, professoras primárias: inclinais-vos sobre os tenros rebentos das novas gerações para orientá-las na direção da verdade e do bem. Quando estas gerações deixarem de ser novas, poderá — graças a vós — haver mais serenidade para a Igreja, mais paz para a sociedade humana.
E' estribilho rebatido e requentado que o futuro pertence à juventude. Ora, a juventude está nas nossas mãos; é massa que nós estamos amoldando. Logo o futuro está nas nossas mãos. Este fato tem significação profundíssima e deve ter uma repercussão tremenda na nossa própria vida.
11. Consertar o Brasil.
As jeremiadas sobre a situação precária e os males que afligem o mundo em geral, e o Brasil em particular, se avolumam de tal maneira, que já abarrotam as redações dos jornais, sufocam os microfones das estações de rádio e envenenam com o seu amargor todas as conversas. Tudo vai mal e nada há que preste, especialmente o governo . . .
E quando deveríamos todos — para usar uma expressão vulgar — cuspir nas mãos, arregaçar as mangas e pegar rijo na ferramenta, pondo-nos a trabalhar para por um dique à inundação dos males que lamentamos, perdemos o tempo e as energias em críticas estéreis, aguardando um mágico que venha salvar a humanidade periclitante.
E, afinal, quem há de consertar o Brasil, se é que ele precisa e é suscetível de conserto? Serão os políticos? Mas são quase sempre eles os que o enterram. Serão os técnicos? Quem, senão eles, lhe entrava burocraticamente a marcha, em vez de impulsioná-lo para o progresso? Se há quem pode e deve por um remédio eficaz aos males lamentados, estes são os educadores da juventude. Hoje não, amanhã também não, mas depois de amanhã, sim, o Brasil poderá ser tal qual nós hoje quisermos que seja, formando agora os governantes, os legisladores, os magistrados, o povo de amanhã.
Somos nós, os professores, que — talvez inconscientemente — damos feição própria a cada povo, a cada século, a cada civilização.
Se nas primeiras décadas deste século tivesse havido um professorado numeroso, competente e sacrificado, hoje os horizontes da pátria seriam menos carregados.
Se o findar do século presente for para o Brasil próspero e tranquilo, a nós, professores de hoje, caberá, em grande parte, o mérito. Mas não nos serão poupadas acerbas críticas e a execração, quiçá, dos filhos dos nossos alunos, se por nossa ineficiência, males semelhantes aos que hoje afligem a humanidade, infelicitarem também os cidadãos do porvir.
12. Lições da História.
Consultai a história e me dareis razão. O período de maior esplendor da Grécia antiga é assinalado pela atuação de admiráveis mestres, como Sócrates, Aristóteles, Platão. Foram eles que fizeram o século de Péricles, e não vice-versa. Quando, porém, nas escolas gregas as cátedras foram ocupadas pelos cínicos, os céticos, os sofistas, a Grécia deixou de brilhar, e uma nação, que se tinha coberto de glória dispersando os incontáveis exércitos de Ciro e de Dario, caiu sem combate aos pés de Roma, cujas legiões fizeram empalidecer todo o esplendor de Salamina, das Termópilas e de Maratona.
A própria Roma assinou o decreto da sua ruína, quando a educação dos seus filhos foi confiada aos escravos e não mais aos eruditos e austeros retores dos tempos da república. Como poderia o professor escravo e estrangeiro, de uma nação vencida, incutir sentimentos de honra e de justiça nos ânimos juvenis, daqueles cujos pais lhe tinham destroçado a pátria e feito a maior das injustiças, tirando-lhe a liberdade?
Que é que deu tanta glória ao Sagrado Império Romano-Germânico, senão as admiráveis escolas conventuais e as excelentes universidades da Idade Média, onde pontificavam mestres extraordinários, como Alberto Magno, Alexandre de Hales, Duns Scot e Tomás de Aquino? Bem compreendera a importância do ensino um imperador como Carlos Magno, que era analfabeto, mas fazia questão de visitar as escolas, assistir às aulas, castigar pessoalmente os alunos preguiçosos, prestigiando assim o mestre.
Foram os mestres de escola, especialmente, e os professores os que prepararam a Revolução Francesa, e vós sabeis que foi nas universidades de Coimbra e de Paris que os Inconfidentes se imbuíram dos ideais de liberdade e de independência.
Quem preparou o advento do nazismo alemão e do fascismo italiano foram os professores que no final do século passado e no começo do presente enfararam a juventude do seu tempo com as megalomanias de Nietzsche e com as loucuras do seu Zaratustra e com o chauvinismo nacionalista de Gioberti e de Mazzini.
Por outra parte, visitemos os países mais adiantados, cujo progresso admiramos e talvez invejemos, os Estados Unidos, Canadá, os Países Escandinavos, Finlândia, Suíça, França, Inglaterra, e verificaremos que a causa do seu adiantamento está precisamente na sua perfeita organização escolar, no preparo técnico e no prestígio de que gozam os seus mestres, os verdadeiros artífices das transformações sociais que nestas nações se operaram no decorrer dos últimos séculos.
Por aí compreendereis como ninguém jamais fez um mal tão grande ao Brasil, quanto o Marquês de Pombal, quando expulsou de nosso país os jesuítas, que tinham sido seus mestres quase exclusivos nos séculos XVI, XVII e XVIII. Com aquele mal-aventurado gesto Pombal empurrou a nossa história e a nossa civilização de um século para trás.
Sim, prezados ouvintes, nós que ensinamos a história e às vezes, lhe escrevemos os compêndios, talvez não tenhamos reparado que quem faz a história são os nossos alunos, imbuídos de nossas idéias, e somos nós que lhes fornecemos o material e até lhes traçamos os planos.
13. Os do outro lado.
Os comunistas, que são astutos e perspicazes, compreendem, talvez melhor do que nós, o fato da total dependência do porvir de uma nação dos mestres de hoje. Tive oportunidade de verificar as coisas de perto: os governos dos países dominados pelo comunismo, cientes de que não lhes é possível amoldar de acordo com a sua mentalidade a população toda, cujos 90% lhes são contrários, contentam-se e exigem que sejam verdadeiramente comunistas estas três classes de pessoas: os funcionários do Estado, pois, em fim de contas, são eles os que governam; os oficiais do exército e da polícia, pois são eles os que sustentam o governo; os mestres de escola e os professores secundários, pois são eles os que formam os futuros governantes e as futuros oficiais, garantindo, assim a continuação do regime. E um sagaz e eficiente chefe de Estado comunista disse certa vez: "Admito que um sapateiro faça bons sapatos, apesar de não ser comunista, e que um engenheiro monte com perfeição uma usina hidrelétrica, ainda que não pertença ao partido. Mas não me entra na cabeça como um mestre-escola possa formar bons cidadãos do Estado socialista, se ele próprio não for completamente penetrado do pensamento e convicções socialistas".
14. Responsabilidades maiores.
Caros colegas de magistério, tudo o que vos disse até aqui nos faz pensar na nossa enorme responsabilidade, quer perante a nação e a humanidade, quer perante as próprias crianças e os jovens, sobre os quais exercemos uma tremenda, incoercível influência. Se a juventude é moralmente sadia e intelectualmente bem orientada, — não inteiramente — mas em grande parte o mérito é nosso. Em boa parte é nossa a culpa, se se dá o contrário. Flávio Silveira Lobo escreveu há pouco num jornal carioca: "Cada vez que um menino se perde, há um adulto que falhou". Nem sempre, mas muitas vezes esse adulto é o professor ou a professora.
Mas este fato nos comunica também estímulo, para termos na devida conta o magistério e nos compenetrarmos bem da excelsitude da nossa missão.
São os professores os anônimos construtores das grandezas de uma nação, os artífices silenciosos da sua glória, os operários ignorados que na oficina da escola forjam o seu porvir.
Na base de toda a estrutura de um povo está uma escola e no topo da pirâmide dos valores nacionais se encontra uma professora, um educador. Por isso nenhuma instituição cultural de um país é tão importante como a Escola Normal e as Faculdades de Filosofia, quartéis que fornecem à pátria estes soldados sem armas, estes artistas da instrução e da educação, que, segundo São Gregório de Nazianzo, são a arte das artes, a ciência das ciências.
15. O dever dos outros.
Um derradeiro pensamento: de tudo isto se deduz o dever que cabe aos poderes públicos e à comunidade de prestigiar o mestre. Mas para que isto se dê, é preciso que o próprio professorado tome a iniciativa de uma campanha de âmbito universal para a própria valorização. E' que nós somos uma classe social "sui generis": é nossa missão e nosso dever ensinar tudo a todos; diretamente às crianças, indiretamente aos pais e aos próprios governantes. Entre as coisas que lhes devemos ensinar, são os deveres que têm para conosco ...
A publicação da UNESCO, a que me referi no começo desta palestra, diz a este respeito: "A função docente será honrada, se ela for exercida por mestres dotados de uma personalidade irrepreensível, bem preparados para a sua tarefa e altamente qualificados. A comunidade julgará a função docente pela conduta e valor técnico dos que a exercem. E poderá igualmente ser tentada a adotar a idéia que se faz o mestre da sua própria função. Julgamos que as Escolas Normais muito podem fazer para realçar o prestígio da carreira magisterial, fazendo compreender aos seus alunos o grande valor social dos serviços que são chamados a prestar à humanidade".
16. Voz dos alunos agradecidos.
Felizmente, seria injustiça dizer que a função, ou antes, a missão de mestre e professor não seja devidamente apreciada e que não haja ricas poliantéias de hinos de louvor, que a humanidade agradecida ergueu, especialmente nos tempos recentes, a quem lhe serve de guia, carregando à sua frente o brandão do saber. Basta folhear as numerosas páginas da literatura de qualquer país.
Se há na antiguidade um poeta como Horácio Flaco, que se lembra com pouca saudade do seu professor Orbílio Pupilo, a quem chama de Terrível, "plagosum... Orbilium", a causa está principalmente na "ferŭla"¹ e na "scutĭca"², que, segundo o testemunho de um condiscípulo, Domício Marso, o velho mestre romano manejava com excessiva facilidade... Mas em compensação quantos homens há que se recordam com comovida gratidão dos seus preceptores e lhes dedicam páginas de admirável beleza literária!
Paul Renaudin nos fala de Mademoiselle Duret, como um filho falaria da própria mãe, e Rétif de la Bretonne traça um belíssimo retrato do seu velho professor, "le respectable Berthier". E quem é que não leu o poema "L'instituteur"³, de Vítor Hugo, em que o poeta apostrofa os meninos, "gentis algozes", que crucificam o velho mestre mártir cujo cavalete de tortura é a cátedra, à maneira de São Cassiano, o mestre-escola de Roma, a quem mataram na sala de aula os seus próprios alunos a golpes de estilete de escrever?
«Saint et grave martyr changeant de chevalet,
Crucifié par vous, bourreaux charmants, il est
Votre souffre-douleurs et votre souffre-joies».
17. «Cornélias, mães de cem Gracos».
E com que respeitosa ternura descreve Humberto de Campos a figura "frágil, doce, triste e silenciosa" da sua professora, a "mestra Marocas"!
"Ao evocar neste momento a sua figura discreta e melancólica, em cuja face dolorida se refletia um drama interior, acodem-me algumas reflexões oportunas, que podem ser ajustadas à história e à vida de quase todas as ... educadoras sem títulos ou recompensas oficiais, Cornélias, mães de cem Gracos, que foram para o serviço da Pátria, dando-se em holocausto cotidiano, centenas de cidadãos. E' de imaginar o que padecem esses corações afeiçoados, tendo de perder, pelo afastamento, cada ano uma dezena desses filhos adotivos ... Os moços em geral são como os pássaros: emplumada a ave, abandona o ninho, que a aqueceu e o bico que a alimentou. E nunca mais, no espaço imenso, reconhece a ave que, quando implume, a agasalhou e protegeu. A professora primária, que nos fez digerir a primeira semente do alfabeto, é essa ave generosa e magnânima, reveladora da imensidade e do mundo"⁴.
Cordélia Gross, professora primária de Nova York, descreve este estado de alma, da mestra que se separa dos alunos aos quais instruiu, educou e amou como filhos. Seu artigo, publicado recentemente por uma popularíssima revista, já é só por si uma epopéia e um programa: "Ensinar é amar".
18. O «Mestre».
Mas o maior estímulo para o bom desempenho da missão de ensinar, minhas senhoras e meus senhores, recebemo-lo daquele que disse: "Todo aquele que receber em meu nome um desses pequeninos é a mim que recebe" (Mc 9, 36).
Daquele que é o caminho, a verdade e a vida.
Daquele que é o Mestre por antonomásia: "Magister", como O chamavam simplesmente os que dele se aproximavam.
Ele nos disse um dia: Ide e ensinai!
Quando transpomos a soleira da porta de uma sala de aula, a Sua sombra nos acompanha.
Quando pacientemente nos debruçamos sobre a carteira de uma criança, o Seu olhar complacente nos observa.
Quando desvendamos a luz do saber às mentes tenras dos pequeninos, o Seu amor nos inspira e a Sua mão nos abençoa.
No programa-convite de formatura do ano passado, da Escola Normal Nossa Senhora das Dores, desta cidade, as professorandas colocaram este delicado pensamento: "Senhor, Tu que ensinaste, perdoa que eu ensine, que leve o nome de mestre, que tiveste sobre a terra".
Um educador do século XVII, comentando a palavra de Jesus, "Um só é o vosso mestre, Cristo", diz que todos nós que ensinamos somos uns sub-mestres, "hypodidáscaloi"; diríamos hoje, professores auxiliares ou professores assistentes, de Cristo, que é unicamente mestre catedrático.
19. Toda escola é um farol.
Termino, reportando-me aos faróis do início desta conferência: Nas trevas da ignorância, nas procelas desta vida, no mar borrascoso deste mundo, de que somos navegantes, cada escola é um farol, que espadana luz e aponta um roteiro. Nós somos os seus custódios, os seus zeladores. Não deixemos que o farol se apague. Mantê-lo aceso ou acendê-lo onde não houver é cumprir a mais bela tarefa que nos possa ser confiada na vida: é executar aquela missão, é cumprir aquela ordem que das plagas palestinenses fez chegar aos nossos ouvidos Cristo, o Mestre, o qual, para conservar-nos humildes e para fazer-nos compreender a excelsitude da mestrança, não quis que usássemos títulos pomposos: "Vós, porém, não vos chameis mestres, porque um só é o vosso mestre, Cristo"; mas que, apesar de tudo, se dignou associar-nos ao Seu magistério, dizendo-nos: Ide e ensinai!
NOTAS DO AUTOR DO BLOG
¹ Vara (para castigar as crianças e os escravos)
² Chicote feito de correia
³ Poema intitulado "Le Maître d' études" do livro "Les Contemplations" de Vítor Hugo.
⁴ CAMPOS, Humberto de. Memórias, p. 160-63. São Paulo: Opus, 1983.
*) Conferência pronunciada no Centro de Estudos Pedagógicos de São João del-Rei pelo Pe. Luiz Zver, Professor de Filologia Românica na Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, publicada pela Revista de Cultura Vozes, Ano LII, fevereiro de 1958, p. 109-123, Petrópolis, RJ.
* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...
4 comentários:
Caro amigo e irmão em DOM BOSCO, Francisco Braga!
Sou Pe. Salesiano e estou trabalhando em Belo Horizonte, como Diretor da Casa Inspetorial. Aqui é o Centro Administrativo de todas obras da ISJB. MINAS GERAIS-ESPÍRITO SANTO- RIO DE JANEIRO, BRASILIA –TOCATINS!!! Recebemos seu rico “BLOG” com muitas notícias e mesmo suas realizações pessoais! Vejo que o amigo está bem por dentro da realidade salesiana e, em seu coração, DOM BOSCO tem um lugar especial! Você vibra com a formação salesiana e em especial “PE. LUIZ ZVER” realmente grande coração e lutador pela EDUCAÇÃO! Li todo o discurso realizado pelo Pe. Zver! Parece falando hoje, nos grandes valores da educação e que manifestação cultural ele apresenta! Grande fonte do saber!!!! Como Salesiano, bebemos na mesma fonte!!!!
Temos o movimento dos EX-SALESIANOS e eles publicam artigos dos grandes mestres; então, reenviei para o “ REDEX” o seu “ BLOG” e que possam explorar esta riqueza do grande mestre!
Agora em 2013, estarei partindo para outra casa em RESENDE-RJ. O email será o mesmo!
Felicidades para o amigo e continue na sua missão de divulgar o que é bom para todos!
Abraços do Pe. Vicente Rigolon
Prezado amigo Braga
As atribulações do cotidiano e os compromissos que demandam tempo para atender, quase sempre nos impedem do prazer de degustar uma boa e instrutiva leitura como essa, do Padre Luiz Zver: uma belíssima exaltação ao magistério, como poucas vezes pudemos ler!
Durante muitos anos fui professor, passando pelo ensino médio (embora brevemente) e logo após pelo ensino superior, em três Faculdades, lecionando disciplinas diferentes. Por isso pude perceber a profundidade do pensamento e a sensibilidade do Pe. Luiz, quanto à missão de um professor.
Parabéns por sua iniciativa em divulgar textos tão importantes e de enorme grandeza cultural.
Juntamente com nossos melhores agradecimentos, receba nossas
Cordiais saudações.
O amigo Mário.
Prezado colega Dr. Braga,
Grato pela comunicação destes seus trabalhos, que li e estou mantendo em meus arquivos, como referência em temas referentes a educação e formação moral, a qual também é muito importante para a constituição de um sistema político capaz de viabilizar o Brasil como nação, algo que se vem tornando cada vez mais carente, há numerosos decênios.
Adriano Benayon
Prezado Sr. Francisco José dos Santos Braga!
Obrigado por seus posts, eles me ajudaram a escrever um artigo sobre meu tio Luiz Zver. Muito gentil da sua parte cuidar do registro das memórias.
Aqui está meu artigo sobre Luiz Zver: https://poti-pisav-g-zver.blogspot.com/2021/02/alojzluiz-zver-doklezovcan-duhovno-in.html
Defina sua página para português, clique no tradutor.
Saudações da Eslovênia, Gabriela Zver
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