Por Francisco José dos Santos Braga
O Blog do Braga tem o prazer de homenagear o bicentenário de nascimento do compositor polonês Fryderyk Franciszek Chopin (Żelazowa Wola, 1810 - Paris, 1849), disponibilizando aos seus leitores uma primorosa tradução de "O Piano de Chopin" (Fortepian Szopena, em polonês) da lavra do poeta polonês Cyprian Norwid, o qual, além de poeta, foi dramaturgo, pintor, escultor e filósofo. Essa tradução foi enriquecida por análise e comentários em dois livros constantes da Bibliografia por parte dos tradutores e ensaístas Prof. Dr. Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. O autor deste blog, devidamente autorizado pelos dois literatos, apenas pinçou do seu texto o que lhe pareceu mais relevante para a perfeita caracterização do poema e de seu criador, tendo sido necessário condensar o material constante dos dois livros, ficando sob sua responsabilidade a disposição e ordenamento das matérias deste ensaio.
1. Prefácio
Ao falar da Atualidade de Chopin, Mário de Andrade chama o seu piano de obra de aproximação, privilegiando, entre todas as funções da música, aquela que torna os homens mais próximos uns aos outros.
“O voluntário servidor de todos, o que compunha e procurava conscientemente compor pra toda a gente. Ele mesmo se manifestou contra a arte de elite e todas as místicas classistas de arte, afirmando que a música tinha de ser compreensível a todos (...). Aí Chopin consegue a nossa unanimidade popular (...). Todos se aproximam uns dos outros, porque o piano de Chopin é obra de aproximação.”¹
Essa afirmação do poeta e crítico brasileiro sintoniza com a percepção da música de Chopin que predomina na sua pátria, e que tem sua expressão, talvez a mais completa, num poema de Cyprian Norwid, O Piano de Chopin. É um poema cujas últimas palavras repercutem na Polônia como os acordes do estudo “Revolucionário”: O ideal — atingiu o chão.
A atualidade de Chopin, hoje, duzentos anos depois do seu nascimento, continua indissociável daquela “obra de aproximação” de que resulta e que, ao mesmo tempo, continua produzindo o seu piano. Uma obra de aproximação, em que “o ideal atinge o chão” e em que todos podemos nos encontrar, enfeitiçados por uma melodia que faz desmoronar as fronteiras.
2. Breve biografia de Cyprian Kamil Norwid
Cyprian Kamil Norwid (Laskovo-Głuchy, 1821 – Paris, 1883), órfão desde cedo, foi educado por parentes. Ainda menino mudou-se para Varsóvia, onde frequentou o liceu e, mais tarde, cursou belas-artes. Ali, em 1840, foram dados à estampa seus primeiros poemas. Em 1842, acompanhado por um amigo, cruzou a Polônia a pé, pesquisando a cultura popular e registrando, em desenhos, os tipos humanos, a arquitetura e as paisagens. Pouco depois, asfixiado pela atmosfera provinciana e politicamente opressiva de Varsóvia, deixou sua pátria, para onde não mais voltaria (recorde-se que, naquele período, a Polônia sofria o tríplice jugo da Rússia, da Prússia e da Áustria). Viajou para a Alemanha e em seguida para a Itália, decidido a aprimorar sua formação.
Em Florença, estudou escultura e história da arte, e em Roma, arqueologia. Viveu certo tempo na Itália, entre viagens e intensa atividade como pintor e poeta. Em 1849 instalou-se em Paris, onde foi apresentado, entre outros, a Chopin, de quem se tornou amigo. Mais tarde, Norwid viria a dar provas de sua admiração pelo compositor, não só no poema O Piano de Chopin, mas também escrevendo-lhe o Necrológio e dedicando-lhe uma parte de Flores Negras.
Alguns anos depois, em 1853, problemas financeiros e a torturante lembrança de um amor infeliz (Norwid alimentara uma paixão não correspondida por uma mulher casada, Maria Kalergis, dama a cujos encantos rendiam homenagem os mais requintados salões da época) forçaram-no a migrar para Nova Iorque. Devido à solidão e ao que chamou de falta de história nos Estados Unidos, retornou à Europa em 1854, e no ano seguinte já se encontrava novamente em Paris. Envelhecido, quase surdo e cada vez mais isolado, sem meios de subsistência, no fim de sua vida Norwid abrigou-se no Asilo de São Casimiro, refúgio para idosos mantido por freiras polonesas, onde veio a falecer.
Tendo crescido à sombra dos grandes românticos poloneses — Mickiewicz, Słowacki e Krasiński — Norwid deixou-se, no começo, influenciar nitidamente por eles. Seu percurso biográfico e sua prática textual levaram-no, contudo, muito além das fronteiras do Romantismo.
Se por um lado sua biografia contém dados exemplarmente românticos, por outro, vê-se logo que Norwid vivenciou algo mais, vivências que lhe descortinaram novos horizontes, bem mais amplos do que aqueles franqueados pela perspectiva da corrente a que, em parte, ele pertenceu. A pobreza, o exílio, o encontro com a “cidade grande”, avatar da civilização industrial do Ocidente, e também a experiência como artista plástico, aliada à erudição e ao interesse pela História, todos esses elementos enformaram a poesia de Norwid, que sempre guardou uma postura independente com relação às vogas literárias de seu tempo. Por força de suas inovações formais, ela tem sido comparada à de autores como Stéphane Mallarmé e Gerard Manley Hopkins. Mas cessam aí as semelhanças. Do jesuíta, Norwid difere basicamente porque não comunga a ortodoxia de sua fé; do francês, porque não compartilha o seu esteticismo. Ao longo de toda a sua obra, que inclui poemas longos e narrativos, assim como peças teatrais e textos em prosa, Norwid abriu as veredas de uma singular teoria da arte, cujos termos centrais, expostos no Promethidion, extenso diálogo poético publicado em Paris, em 1851, são o trabalho, a relação entre o belo e o útil, e a redenção.
Norwid não pôde aceitar o mundo tal como ele era. Por conta da amplitude e da severidade dessa recusa, seus contemporâneos, que o haviam benevolamente saudado como um talento promissor, não tardaram a fustigá-lo com a pecha de excêntrico, encarcerando-lhe a poesia no silêncio da indiferença e da incompreensão. Foi preciso que um outro século despontasse, foi preciso que todo um conjunto de hábitos de percepção se alterasse, para que sua obra fosse enfim resgatada do olvido e reavaliada.
3. Análise do poema O Piano de Chopin (Fortepian Szopena, em polonês)
Tanto quanto, porém, ou talvez até mais do que suas considerações filosóficas, interessa aos modernos a experiência norwidiana com a linguagem. N’O Piano de Chopin (poema XCIX da summa lírica de Norwid, o Vade-mecum, de 1866) temos um exemplo consumado da técnica norwidiana e uma de suas mais conhecidas criações. Temas e sobretudo procedimentos, amiúde encontradiços nas demais obras do autor, encontram-se ali condensados.
O pano de fundo histórico do texto remete-nos a um atentado contra a vida do general russo Teodor Berg, Governador Geral do tzar Alexandre II na Polônia, durante a Insurreição Polonesa de 1863. Como represália, os cossacos invadiram e incendiaram o palácio dos Zamoyski em Varsóvia. O piano de Chopin, guardado no palácio, foi encontrado por eles e atirado janela abaixo.
George Gömöri, renomado estudioso da obra de Norwid, pondera que:
“Em seus aspectos formais O Piano de Chopin é muito mais experimental que o restante do Vade-mecum. Ele está escrito num verso livre rimado, com freqüentes alterações de ritmo; as linhas variam de alento e são por vezes rompidas em frases emotivas muito curtas. À parte as associações históricas e culturais já discutidas, o poema ainda abriga um reflexo impressionista da música de Chopin; certos elementos do estilo do compositor tais como o 'tom sussurrante' e os acordes impromptu são além disso urdidos na sua textura. De fato, todo o poema parece ter sido composto com base em princípios musicais; quando lido em voz alta, ele soa como uma peça de música, escrita para o instrumento da vox humana. Contudo, os elementos eufônicos não sobrepesam o conteúdo; eles não adornam meramente mas explicitam e amplificam 'a mensagem'. Tanto em seu assunto quanto em sua execução, este é um poema original e impressionante. Ele permanece entre as melhores realizações líricas de Norwid e de todo o período pós-romântico.”²
Nosso século tem assistido a constantes iniciativas de revisão do passado literário. A modernidade, em seu movimento constitutivo, engendrou uma nova tradição, resgatando muitos poetas do oblívio a que os havia condenado a rotina do gosto. Foram reabilitados, assim, autores tão díspares como Góngora, John Donne, Jules Laforgue, Arnaut Daniel e, entre nós, Sousândrade (artista cuja vida e obra se assemelham, em mais de um ponto, às de Norwid). A recuperação da poesia norwidiana obedeceu, portanto, a uma tendência consideravelmente ampla, em cuja órbita ainda hoje nos movemos. A tradução d’ O Piano de Chopin³ que ora é apresentada, sensível às características formais do original, procurou encontrar-lhes equivalentes criativos em português.
4. O poema propriamente dito
A Antoni C...
La musique est une chose étrange!
Byron
L‘ art? ... c’ est l’ art — et puis, Voilà tout.
Béranger
I
Estive em tua casa nos penúltimos dias
Da trama sem desfecho – –
– Cálidos,
Como o Mito, pálidos,
Como a aurora... Quando o fim da vida sibila ao começo:
“N ã o t e r o m p e r i a e u – n ã o – E u, t e r e-a l ç a r i a!...”
II
Estive nesses dias, penúltimos, em tua
Casa, e parecias – de novo e de novo então –
A lira que Orfeu chegado o instante
Rejeita, mas que forçada-forceja pela canção,
E ainda vibra relutante
As suas
Cordas: duas – mais duas –
E pulsa:
“A s s o m o
D o s o m?...
S e r á t a l M e s t r e!... q u e t o c a... m a l g r a d o a r e p u l s a?...”
III
Estive em tua casa nesses dias, Frederico!
E tua mão... assim
Tão clara – e leve – rico
Alabastro e espasmos de pluma –
Mesclava-se com as teclas numa
Névoa de marfim...
E eras a forma que ressuma
Do ventre do mármore,
Antes de esculpida,
E revida
Ao cinzel do Gênio – Pigmalião que nunca morre!
IV
E no que tocaste – quê?disse o tom – quê? dirá, mas a cor de
Um eco escoa a esmo,
Não como abençoavas, tu mesmo,
A cada acorde –
E no que tocaste: tal foi a rude
Perfeição Pericleana,
Como se antiga Virtude,
No umbral duma choupana
De lariço, a si
Mesma dissesse: “R e n a s c i
N o C é u, e a p o r t a – s e i r m a n a
À h a r p a, a v e r e d a – à f a i x a...
V e j o u m a h ó s t i a – a t r a v é s d o t r i g o s e m c o r...
E m a n u e l j á s e a c h a
N o c i m o d e T a b o r!”
V
E nisso era a Polônia, retesa
Desde o zênite da História dos
Homens, num arco-íris de êxtase – –
A Polônia – d o s f e r r e i r o s t r a n s f i g u r a d o s!
Ela mesma, adorada,
Abelhi-dourada!...
(Mesmo ao cabo do ser – eu teria certeza!...)
VI
E – eis aí – cantaste – – e não mais te alcança
O meu olhar – – mas ainda ouço:
Algo?... como rusga de crianças – –
São porém as teclas em alvoroço
Pelo anseio da canção que não se fez:
E arfando convulsas,
Oito – cinco por dez –
Murmuram: “E l e s e p ô s a t o c a r? o u n o s r e p u l s a??...”
VII
Tu! – perfil-do-Amor,
Que tens por nome P l e n i t u d e;
Isto – que na Arte atende por
Estilo, porque permeia a canção, urde
As pedras... Tu! – E r a, como a História soletra,
E onde o zênite da História não investe,
Chamas-te a um só tempo: o E s p í r i t o e a L e t r a,
E “consummatum est”...
Tu! P e r f e i t a-c o n s u m a ç ã o, seja o que
For, e onde?... Teu selo...
Em Fídias? Chopin? Davi?
Na cena de Ésquilo? Em ti
Sempre – se vingará: o ANELO!...
– A marca desse globo – carente:
A P l e n i t u d e?... o fere!
Ele – prefere
Começar e prefere lançar o sinal – mais à frente!
A espiga?... madura feito um cometa fugaz,
Mal sente
A brisa a tocá-la, chove sementes
De trigo, a própria perfeição a desfaz...
VIII
Eis aí – olha, Frederico!... é – Varsóvia:
Sob a estrela que flameja,
À luz que, insólita, envolve-a – –
– Olha, os órgãos da Igreja;
Olha! Teu ninho: ali – os sobrados
Patrícios velhos como a P u b l i c a-r e s,
O chão surdo e pardo
Das praças, e a espada de Segismundo nos ares.
IX
Olha!... nos becos os potros
Do Cáucaso irrompem
Como andorinhas defronte das tropas, ao sopro
Da tempestade; c e m – o u t r o s
C e m – –
O fogo fulge, hesita, infesta
O prédio – – e eis aí – contra a fachada
Vejo testas
De viúvas empurradas
Pelo cano
Das armas – – e vejo entre a fumaça no gradil
Da sacada um móvel como um caixão erguerem... ruiu...
Ruiu – T e u p i a n o!
X
Ele!... que exaltava a Polônia, tomada
Desde o zênite da História dos
Homens, no êxtase da toada –
A Polônia – dos ferreiros transfigurados;
Ele mesmo – ruiu – no granito da calçada!
– E eis aí: como o nobre
Pensamento é presa certa
Da fúria humana, o u c o m o – s é c u l o s o b r e
S é c u l o – t u d o, q u e d e s p e r t a!
E – eis aí – como o corpo de Orfeu,
Mil Paixões rasgam dementes;
E cada uma ruge: “E u
N ã o!... E u n ã o” – rangendo os dentes –
✴
Mas Tu? – mas eu? – que surda
O canto do juízo:“A l e g r i a, n e t o s q u e v i r ã o!...
G e m e u – a p e d r a s u r d a:
O I d e a l – a t i n g i u o c h ã o – –"
5. Bibliografia
SIEWIERSKI, H. e SOUZA, M. P. de (trad. e introd.). “Cyprian Norwid. O Piano de Chopin.” Gráfica e Editora OCB, Brasília-DF, 1994, 24 pp. com 4 ilustrações.
SIEWIERSKI, H. (org.). “O Piano de Chopin: uma Obra de Aproximação”, Edelbra Ind. Gráf. Editora Ltda., Erechim-RS, 1999, 64 pp. com 5 ilustrações.
SOUZA, M. P. de. Desatinada azáfama - reflexões sobre um percurso tradutório. In Sob o signo de Babel. Literatura e poéticas de tradução. Vitória: PPGL/MEL, Flor&Cultura, 2006.
6. Notas dos Tradutores
¹ ANDRADE, Mário de. “Atualidade de Chopin”. In O Baile das Quatro Artes, Livr. Martins Ed., São Paulo, 1963, p. 161-4.
² Cyprian Norwid (monografia). New York, Twayne Publishers, 1974, p. 59.
³ A primeira versão d’ O Piano de Chopin, escrito no fim de 1863 ou início de 1864, foi publicada numa revista polonesa editada na Suíça (Pisma zbiorowe..., caderno 2, Bendlikon, 1865). O texto aqui reproduzido e traduzido é a segunda versão do poema, incluída por Norwid na coletânea poética Vade-mecum (1866), que não chegou a ser publicada durante a vida do artista, e cujo autógrafo encontra-se atualmente na Biblioteca Nacional de Varsóvia. Os tradutores serviram-se aqui das obras completas de Norwid editadas por Juliusz Wiktor Gomulicki: Cyprian Norwid, Pisma wszystkie, vol. I-XI, Warszawa, 1971-1976.
Imagens:
1. "Chopin" por Delacroix, 1838
2. Cyprian Norwid
Um comentário:
Ola Braga,
Pelo que pesquizei vc teve bastante contato com pessoas da familia Torga.
Sou pertencente a familia e estou estudando a arvore genealogica da familia. Poderiamos nos contactar por email ou telefone ??
grato
Fernando
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