Por Francisco José dos Santos Braga
Padre Godinho (☆ Carmo da Cachoeira, 1920 ✞ São Paulo, 1992)
“Enquanto houver homens como eles (Abraham
Lincoln e John Kennedy), a liberdade não perecerá sobre a face da terra, pois
ela não pede apenas líderes, exige também os mártires.”
I. INTRODUÇÃO
Em 26 de novembro de 1963, o Deputado Padre Godinho pediu a palavra, em sessão da Câmara dos Deputados, para registrar nos Anais o sentimento de consternação que assolara o mundo com o assassinato do 35º Presidente dos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy, ocorrido em Dallas, Texas, no dia 22. Em seu discurso desenvolve mote latino, que se traduz por "Caíram as trevas".
Pe. Godinho, na tribuna, destacava-se pela eloquência e erudição. Conhecedor de várias línguas, prendia seus ouvintes citando e comentando vários autores nos seus respectivos idiomas. Era um prazer ouvi-lo em seus discursos, nos quais deixava transparecer a argúcia do sacerdote, doutor em Filosofia, Teologia e Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
II. O DISCURSO DO DEPUTADO PADRE GODINHO EM 26 DE NOVEMBRO DE 1963
Discurso proferido por Pe. Godinho em sessão da
Câmara dos Deputados em 26/11/1963, publicado no Diário da Câmara dos Deputados
de 27/11/1963, p. 9.261
Senhor Presidente, Senhores Deputados.
Foi como se uma luz se tivesse apagado, de repente,
no mundo. "Tenebræ factæ sunt." ¹
Foi como se uma noite de angústia e de soturnos
íncubos tivesse baixado, repentinamente, sobre a face da Terra. "Tenebræ factæ sunt."
Foi como se um pesadelo e uma delirante alucinação
tivessem, inesperadamente, dilacerado nas suas garras de loucura o coração de
milhões de homens. "Tenebræ factæ sunt."
Eram aquelas horas mansas e preguiçosas, quando a
tarde escorre, plácida, para os braços do crepúsculo, velho e cansado porteiro
da noite. Mas, aquele dia, a noite se antecipou. Ia descer primeiro sobre os
corações, depois, sobre o mundo.
Na hora sexta, "tenebræ
factæ sunt." A noite com o seu mistério, a noite com os seus
fantasmas, a noite com o seu pavor, a noite com a sua mentira, a noite com as
suas armadilhas sagazes e as suas emboscadas traiçoeiras, a noite com os seus
laços bem urdidos e os seus venenos sutis, com os seus gritos solitários e os
seus uivos lancinantes, a noite que gela o coração e acoberta o crime, a noite
que atrai a vítima desprevenida e empresta à morte o seu regaço de sombra
para solerte tocaia – aquele dia, a noite chegou inesperada, trazendo no seu
bojo a gargalhada sinistra que, num átimo – num átimo quase eterno, num átimo
que fixou o tempo e estancou o fluxo da História – ecoou pelos quatro cantos do
mundo, como que desafiando a mais tenaz capacidade de crer, zombando da mais
desesperada esperança e deixando escorrer a baba envenenada do ódio
inimaginável, do ódio que se julgara proscrito, para sempre, da convivência
humana.
Com os olhos vendados pela
súbita escuridão e velados pelas primeiras lágrimas que nenhuma força humana
consegue reter, homens e mulheres de todas as raças e de todas as crenças
tentaram agarrar-se a alguma coisa que lhes permitisse não crer, que
desmentisse as palavras sinistras que, àquela hora, já se atropelavam nas asas
das ondas velozes por sobre montanhas e mares, cidades e vales, até a última
fronteira do mundo. Mas, ai de nós, a verdade temida, a verdade terrível, a
verdade jamais pressentida, era, desgraçadamente, a verdade verdadeira.
A milhares de quilômetros,
numa cidade embandeirada em festa, entre flores e aclamações, entre os gritos
dos peões na pradaria sem fim, ao cheiro acre do petróleo brotando aos
borbotões do solo esturricado, alguém fechara a derradeira porta à compreensão
e à fraternidade, e uma janela se abrira ao ódio assassino, covarde e
desvairado. Sobre ela a morte se debruçara paciente e tranquila, fria e
calculada. Como quem sabe que a presa não lhe fugirá. Como quem não tem pressa
porque conhece a sua hora. Como o caçador previdente a quem o instinto não
engana e sabe que a flecha da sua aljava é ligeira e é certeiro seu olho experimentado.
Como o encenador que prepara a tragédia para que o herói caia, entre o céu e a
terra, ao som das tubas gloriosas, ao rufar de místicos tambores, ante o
espanto da multidão colhida de surpresa e as vozes do coro que justifica,
soturno, a catástrofe.
Foi assim que alguns
estampidos ecoaram na hora do triunfo, no instante do mais belo sorriso, quando
a árvore jovem forte era mais forte do que nunca, quando deitava sólidas raízes
no chão de um mundo áspero e agressivo, quando os primeiros frutos da luta
tenaz e da teimosa esperança apenas amadureciam para a fartura dos vazios
seleiros e para as expectativas das alegres colheitas. Estampidos naquela hora
de glória, espocando no céu claro do outono, seriam sempre os rojões da
alegria, soltados pelas mãos escuras de algum negro agradecido, nunca o rumor
das balas assassinas partidas das janelas do ódio, das mãos de um jovem cevado
no ódio e educado para o ódio; que, não podendo renegar a sua pátria, como
desejou, conheceu o plano sinistro de privá-la de quem dedicara a vida a
restituir ao mundo, no plano temporal, o amor banido e a fraternidade perdida.
Lá em cima, uma janela se
esvaziava, uma sombra se prendia na multidão, um rosto e uma mão chamuscados
eram apenas duas manchas de pólvora numa página virada da história dos homens.
Lá em baixo, uma fronte jovem se curvava para sempre repousada sobre os joelhos
da esposa jovem e bela, com uma grinalda vermelha a envolver-lhe os densos e
revoltos cabelos negros. A grinalda da sua vitória, a coroa da sua luta, a paga
da sua esperança, o prêmio da sua vida. “Só
o que corre no estádio recebe o prêmio”, disse alguém que entendia disso - Paulo,
Apóstolo. Lá em cima, a mansarda vazia, uma arma escondida entre livros, restos
de uma refeição feita com sossego e sem temores de olhos indiscretos.
Lá embaixo, um mundo vazio,
um corpo exânime e os restos de uma vida que não temeu os olhos dos homens, nem
a ira dos insensatos, nem os esgares do ódio cego e fratricida. Lá em cima e lá
em baixo, dois jovens, dois mundos – o mundo do desespero, que o ódio engendra
e constrói, e o mundo da esperança, que só o amor é capaz de plasmar com os
pobres materiais que a condição humana oferece, uma visão que ultrapassa o
tempo e tira a sua força dos valores eternos. Uma janela se fechou para o
mundo; uma porta se abriu para a eternidade. Uma rua de Dallas, manchada de
sangue quente como o perdão rubro, como as flores do martírio, é a nova
fronteira entre o amor que redime e o ódio que o esteriliza e mata, entre a
liberdade que é capaz de dar a vida para que outros a tenham e a opressão que a
estanca nas mais recônditas fontes do espírito, antes mesmo de destruí-la na
pobre e frágil argila do corpo humano.
Foi dessa rua que ficará,
quem sabe, como um marco redentor na história do século trágico, que partiu
para o mundo a terrível noticia. John Fitzgerald Kennedy, o jovem; John
Fitzgerald Kennedy, o herói de guerra; John Fitzgerald Kennedy, o cidadão do
mundo; John Fitzgerald Kennedy, o paciente artesão da paz entre os homens; John
Fitzgerald Kennedy, o marinheiro dos celestes oceanos; John Fitzgerald Kennedy,
que reintegrou na casa grande de seu povo os irmãos enjeitados da raça escura
como a noite; John Fitzgerald Kennedy, o menino grande que tinha nas mãos as
sortes da humanidade; John Fitzgerald Kennedy, o que acreditava e, por isso,
amou e, por isso, esperava; John Fitzgerald Kennedy, o 35º Presidente dos
Estados Unidos da América; John Fitzgerald Kennedy, o pai de dois pequenos
anjos que lhe iluminavam os poucos instantes em que lhe era dado dedicar-se a
si e aos seus; John Fitzgerald Kennedy já não existe.
Oh! A fragilidade dos
homens, a vacuidade do poder, a inanidade da glória!
Uns poucos centímetros de
metal, o ódio longamente semeado e transformado em sistema de vida bastam para
que uma existência se interrompa e sejam sacudidos os alicerces da História.
Mas o jovem caído em plena
caminhada, o soldado prostrado em pleno fragor da áspera batalha, o menino
irlandês, predestinado para ter nas mãos as sortes do mundo no século dos
deslumbramentos da ciência e da técnica, sabia de cor as palavras que, ontem,
ressoaram sob as abóbadas da Catedral de São Mateus: vita mutatur, non
tollitur. ² A morte não é um fim, é apenas uma
mudança; não é um termo, é apenas uma transfiguração dos mártires caídos sob o
fio da espada, pregados à cruz infamante, assados nas grelhas ardentes, ou
triturados pelos dentes das feras. Diz a Liturgia antiga: Visi sunt
oculis insipientium mori; illi autem sunt in pace. Aos olhos dos
insensatos, parecem ter morrido; eles, porém, estão em paz. Seu sangue tinha
fecundidade de vida, era semente semeada por mãos inesperadas.
Ele está em paz – o menino
grande que o mundo amava e cuja partida chorará por longo tempo. Partiu cedo,
mas redimiu o seu tempo. Viveu em plenitude essa curta vida. Dele se conhecem
gestos de grandeza e de heroísmo. Não se conhece uma só gesto de mediocridade.
Na Universidade, onde
forjou seu espírito e o enriqueceu de ideias; na Marinha, onde lutou pela
liberdade; no Parlamento, onde se inaugurou na vida pública e onde se
credenciou para a magistratura mais alta; na Presidência, onde recebeu um
legado onde parecia ímpar aos seus jovens anos, John Kennedy foi sempre o
primeiro na luta, na tenacidade do risco, e o último no repouso sobre os êxitos
colhidos.
Nascido num berço de ouro,
viu o irmão mais velho, piloto voluntário da Força Aérea, desaparecer nos céus
com as dez toneladas de explosivos do seu avião. Ele mesmo, voluntário da
Marinha, foi, pouco depois, guindado à posição de comando de seu pequeno barco,
que um destróier inimigo poria a pique ao largo das Ilhas Salomão. Não
abandonou um só de seus homens, nadando ferido uma noite inteira, e
conduzindo-os a salvo. Carregou para sempre as marcas da ferida que o colocou,
pela primeira vez, face a face com a morte. Mais tarde, já senador pelo seu
Estado natal, a enfermidade recrudesceu, o rapagão forte teve de recorrer a
muletas para caminhar. Mas a doença não o abateu. “Prefiro morrer –
disse aos médicos que lhe comunicavam as poucas esperanças de êxito para
operação a que devia se submeter –, prefiro morrer a ter de caminhar de
muletas”. As muletas não eram o seu forte. Não nascera para elas, nem elas
existiam para ele. A longa convalescença levou-o ao estudo da vida dos grandes
homens do seu país e daí nasceu um livro que não faltou sequer a láurea de um
famoso prêmio literário e a que não faltará – espero – o capítulo derradeiro
que retrate para as gerações o “perfil de coragem do seu próprio
autor".
Para um moço de espinha
ferida não era fácil carregar sobre os ombros o peso do mundo. Mas, por que, na
história destes anos de Kennedy na Presidência do seu país e o luto universal
que toldou as esperanças da humanidade na sexta-feira trágica, é o melhor
atestado de que na guerra, ou na doença, na luta do Parlamento e na cadeira de
Lincoln e Roosevelt, John Kennedy não provou jamais o gosto da mediocridade?
Venceu o preconceito da religião, venceu o preconceito da raça, venceu o preconceito
da mocidade.
"Hoje, o mundo é muito diferente. Porque o
homem retém em suas mãos mortais o poder de abolir toda forma de vida humana.”
³
Quem disse isso foi um jovem de quarenta 43 anos,
no seu discurso de posse na Presidência da República. “Raras vezes a beleza
da forma, num discurso de circunstância, foi tão despida de ornamento para
servir a verdades tão puras que parecem nascidas para o mármore das mais nobres
inscrições”. (Carlos Lacerda, prefácio a A Estratégia da Paz,
de John F. Kennedy, Difusão Pan-Americana do Livro, 1961.)
"Era a nova geração que
tomava nas mãos a direção de um mundo que desembocava na era atômica e no ciclo
das conquistas espaciais. Sem ter posto em ordem ainda o quintal de suas casas.”
“Que deste momento e deste
lugar chegue aos amigos e aos inimigos a notícia de que a tocha foi passada a
uma nova geração de norte-americanos, nascidos neste século, temperados pela
guerra, disciplinados por uma paz fria e amarga, orgulhosos de nossa antiga
herança e não dispostos a testemunhar a lenta destruição dos direitos humanos
com que esta nação esteve sempre comprometida e com os quais estamos hoje
comprometidos.”
“Que saiba toda nação, quer
nos queira bem ou nos deseje o mal, que pagaremos qualquer preço, suportaremos
qualquer encargo, suportaremos qualquer dificuldade, apoiaremos qualquer amigo
e nos oporemos a qualquer inimigo, a fim de assegurar a sobrevivência e o êxito
da liberdade.”
O preço mais alto, o preço
que não tem preço, foi pago, sexta-feira, em Dallas, no Texas, por si e pelo
mundo.
"Aos que vivem em choças e aldeias, em
metade do globo, lutando por romper as cadeias da miséria, prometemos nossos
melhores esforços, para ajudá-los a se ajudarem durante o tempo que for
necessário, não porque os comunistas o estão fazendo, não porque queremos os
seus votos, mas porque é justo. Se a sociedade livre não puder ajudar os muitos
que são pobres, não poderá jamais salvar os poucos que são vivos.”
“Às Repúblicas irmãs ao sul de nossas fronteiras
fazemos uma promessa especial – de
transformar nossas boas palavras em atos bons numa nova Aliança para o
Progresso; de ajudar os homens e governos livres a se libertarem das cadeias da
miséria. Entretanto, esta pacífica revolução da esperança não se pode tornar
uma presa de potências hostis. Que saibam todos os nossos vizinhos que nos
uniremos a eles na oposição à agressão e à subversão, em qualquer parte das
Américas. E que saiba toda outra potência que este hemisfério pretende
continuar dono de sua própria casa.”
“Unamo-nos para invocar
as maravilhas da ciência, em vez de seus terrores. Exploremos juntos as
estrelas, conquistemos os desertos, erradiquemos as enfermidades, toquemos as
profundezas do oceano e estimulemos as artes e o comércio. Unamo-nos para
escutar em todos os recantos da terra o mandato de Isaías: 'Desfazei os
pesados fardos da opressão e deixai livres os oprimidos'.” ⁴
E, quase numa estranha
profecia:
"Em vossas mãos, meus concidadãos, mais do
que nas minhas, estará o êxito ou fracasso da nossa senda. Desde que este país
foi fundado, cada geração foi chamada a dar testemunho de sua lealdade
nacional. Os túmulos de jovens norte-americanos que atenderam a este chamamento
pontilham o globo.”
A partir de ontem, o seu
túmulo, entre os heróis de Arlington, diz que ele não se enganara.
"Concidadãos do mundo: não pergunteis o
que os Estados Unidos podem fazer por vós e, sim, o que podeis fazer, juntos,
pela liberdade do homem.” ⁵
“Com uma consciência
tranquila como única recompensa e a História como juiz final dos nossos atos,
marchemos avante para guiar a terra que amamos, implorando a bênção e a ajuda
de Deus, porém sabendo que, aqui na terra, o trabalho de Deus deve ser, na
realidade, o nosso próprio trabalho.”
Esse discurso inaugural, de
que acabo de ler trechos colhidos aqui e ali, vale como um testamento, a que
deverão ser juntadas, como codicilo, as palavras derradeiras, que deviam ter
sido pronunciadas em Dallas:
"Nós, neste país, nesta geração, somos, por
destino, mais do que por escolha, as sentinelas das muralhas da liberdade
mundial. Porque, como foi escrito há muito tempo, 'a não ser
que o Senhor monte guarda à cidade, em vão vigiarão sentinelas'.”
Quando a Câmara presta,
reverente, o tributo da sua dor pela perda que o mundo acaba de sofrer, não é
certamente a hora para recolher os admiráveis pensamentos desse jovem que pôs,
corajosamente, as ideias a serviço da ação, num mundo em que pseudo–ideologias
estão apenas a serviço da subversão. Seus discursos e pronunciamentos ficarão,
como os de Lincoln, como os de Jefferson, como os de Churchill, como os de Rui,
transformados num roteiro de liberdade, válidos para todos os tempos e para
todas as gentes. Sobre eles se curvarão os responsáveis pelas sortes do mundo.
Sobre eles se debruçará a juventude que foi feita para o amor e para as nobres,
difíceis e ousadas empresas, como as que ele ousou, amou, e levou a cabo, e não
para o ódio homicida e para as inúteis carnificinas.
Fique assinalado, nesta
hora, o nosso pesar mais sentido. Seja manifestada a nossa amargura mais
profunda. Que Deus o tenha em paz e nos alimente do seu exemplo, para que não
caiamos na tentação de descrer de qualquer esforço e para que não vejamos
triunfantes sobre seu túmulo a brutalidade da opressão, contra cujo domínio ele
imolou, mais que a liberdade, uma vida que já era um patrimônio dos homens
livres.
Aos olhos dos insensatos,
parece ter morrido; ele, porém, está em paz. ⁶
Suas crianças não o tiveram
ontem, não o terão amanhã, não o terão nunca mais, para ajudá-las a apagar as
pequeninas velas do pequeno bolo dourado da vida.
Foram vê-lo sob a cúpula do
Capitólio, a fronte cercada de uma estranha grinalda vermelha. As crianças,
menos do que ninguém, entendem a morte. Estão próximas demais das eternas
fontes da vida. Devem ter pensado numa curiosa festa em que havia soldados e
bandeiras e multidões que soluçavam, quase sem fazer ruído, e “Daddy the
President”, imóvel, na glória de seu poder... Que importa, se tanta gente
chorava? As crianças entendem o choro; é seu companheiro constante. É a voz
antiga da dor que, por sua vez, é a teimosa mensageira da morte.
Mas, se elas soubessem
alguma coisa das Sagradas Escrituras teriam dito ao mundo, do alto do
Capitólio, com a voz que Deus empresta aos inocentes: “Aos olhos dos
insensatos, parece ter morrido; ele, porém, está em paz.”
Ele está em paz, sua vida
recomeça. Sua voz não se apagará, não envelhecerá, não perderá o timbre
argentino e o nobre sotaque da velha cidade natal. Do asfalto, manchado de
sangue, em Dallas, no Texas, ele partiu para a História, como jovens heróis
que, um dia, Homero cantou em ritmos imorredouros. Às margens do Potomac, à
sombra das cerejeiras em flor, um novo símbolo para humanidade vai sentar-se ao
lado de Lincoln, repetindo as mesmas palavras que o amor de Cristo ensinou aos
homens, e que continuam, pelos séculos, inspiradoras de todas as conquistas
humanas e de todos os sacrifícios, até mesmo o da própria vida.
Enquanto houver homens como
eles, a liberdade não perecerá sobre a face da terra, pois ela não pede apenas
líderes, exige também os mártires.
Mas, antes que a glória dos
mármores olímpicos, como na Grécia Antiga, o imobilize nas formas hieráticas
dos deuses e dos heróis, prefiro, já que está tão próximo o Natal, vê-lo ao
nosso menino, caído nas calçadas de Dallas, sozinho e exânime, como o mais
pobre menino do mundo. É rico e não terá nenhum presente este ano. É poderoso e
não há ninguém que consiga reanimá-lo. Deu-se de presente a si mesmo.
Emprestou-nos a sua força para sustentar-nos na luta que não tem quartel. Lá se
foi o nosso menino com a cabeça aureolada por uma linda grinalda vermelha. Como
um pássaro ferido, de asas partidas. Como naquela noite de pavor do Pacífico.
Só que agora não haverá mais terra firme. Ele se foi para sempre. Sem, sequer,
dizer-nos adeus. Foi remando pelo oceano das águas eternas, onde a liberdade se
funde no amor que não tem fim.
Mas partiu contente consigo mesmo. É o que serve. Nós o choramos, como se todos
fôssemos um pouco seus pares, como se todos fôssemos um pouco seus
irmãos. Deus o guarde por nós, que não o soubemos guardar. Ele está em
paz.
Senhor Presidente, Senhores
Deputados,
Esta é a homenagem de
respeito e de saudade que a Minoria nesta Casa presta, pelas minhas pobres
palavras, à memória de John Fitzgerald Kennedy, trigésimo quinto Presidente dos
Estados Unidos da América, desaparecido, tragicamente, para a dor dos que o
amaram e para a esperança dos que confiaram às suas mãos jovens as sortes da
sua paz e o destino da sua liberdade. (grifos meus)
III.
NOTAS EXPLICATIVAS
¹ "Tenebræ
factæ sunt" (Caíram as trevas) seria um título
extremamente adequado para este discurso, já que Pe. Godinho utiliza como temática
de seu discurso o Responsório V (de nove) das Matinas da Sexta-feira Santa que
diz:
Responsório V: Tenebræ
factæ sunt, dum crucifixissent Jesum Judæi: et circa horam nonam exclamavit
Jesus voce magna: Deus meus, ut quid me dereliquisti? Et inclinato capite
emisit spiritum.
Versículo: Exclamans Jesus voce magna, ait:
Pater, in manus tuas commendo spiritum meum. Et inclinato capite emisit
spiritum.
Trad. Responsório V: Tudo se cobriu de
trevas, quando os Judeus crucificaram Jesus; e perto da hora nona exclamou Jesus
em voz alta: Meu Deus, por que me abandonaste? E, com a cabeça inclinada,
entregou o espírito.
Versículo: Clamando Jesus
em voz alta, disse: Pai, em tuas mãos entrego meu espírito. E, com a cabeça
inclinada, entregou o espírito.
Observe que o Responsório é
composto de duas partes: o responsório propriamente dito e seu versículo.
As fontes bíblicas para
este Responsório são Mt. 27: 45-46, Jo. 19: 30 e Lc. 23: 46.
Muitos compositores tiveram
especial predileção por esse texto e nele se inspiraram, compondo autênticas
obras primas, tais como: Gaspar van Weerbeke (1501), Tomas Luis de Victoria
(1585), Carlo Gesualdo (1611), Johann Michael Haydn (1772), Pe. José
Maria Xavier e muitos outros.
² A vida não é tirada, mas
transformada.
³ O trecho completo, logo no segundo parágrafo do
discurso de posse de JFK, em 20 de janeiro de 1961, foi:
" Agora o mundo é muito diferente. Porque o
homem retém em suas mãos mortais o poder de abolir todas as formas de pobreza
humana e todas as formas de vida humana. Contudo, ainda continuam em litígio em
todos os recantos do globo as mesmas crenças revolucionárias pelas quais
lutaram nossos antepassados — a crença de que os direitos do homem não emanam
da generosidade do Estado, mas da mão de Deus."
Observe que, tendo ganho a eleição por uma das menores margens de votação na história, JFK estava consciente da grande importância deste discurso. As pessoas que testemunharam o pronunciamento ou o ouviram pela televisão ou através do rádio elogiaram o novo presidente. Até ginasianos lhe escreveram em reação a suas ideias. Em seguida a esse pronunciamento inaugural, cerca de 75% de norte-americanos expressaram aprovação a JFK.
⁴ Aqui JFK convoca os dois blocos da Guerra Fria ao entendimento e à concórdia.
⁵ Com esta incitação, JFK já se encaminha para o fim do discurso de posse. Imediatamente antes, ele fez a seguinte provocação a seus cidadãos norte-americanos: "Não perguntem o que seu país pode fazer por vocês – perguntem o que vocês podem fazer por seu país."
⁶ Trata-se do mesmo provérbio da
nota 3, só que no singular, referindo-se obviamente a John Fitzgerald Kennedy.
IV. OBSERVAÇÕES
1) Para ouvir o áudio do célebre discurso, queira acessar o link abaixo. Também forneço o áudio no formato mp4 que pode ser acionado diretamente. Informo que tanto o corpo central do discurso quanto algumas poucas expressões não aparecem gravadas, parecendo que a gravação do discurso foi truncada. Seja como for, é um importante testemunho das "ipsissima verba" de Pe. Godinho naquela memorável sessão da Câmara dos Deputados em 26/11/1963. Vale a pena ouvir o que Pe. Godinho tem a dizer aos Brasileiros de hoje.
2) Embora a Internet possua o texto do discurso, alerto para o fato de que o meu texto aparece levemente alterado em relação àquele, tendo em vista ter-me servido do áudio do discurso para fazer os devidos ajustes necessários ao perfeito entendimento da exposição oral das ideias de Pe. Godinho. Não obstante, tal discurso pode ser encontrado na Internet no seguinte link:
V. AGRADECIMENTO
Gostaria de consignar aqui meu agradecimento a Bruno Braga Campos por ter transformado o arquivo de áudio, para o formato mp4, do discurso de Pe. Godinho, facilitando a sua audição pelo leitor deste Blog.
3 comentários:
Obrigado Francisco. Belíssimo discurso do Pe. Godinho. Pe. Jurandyr
Prezado FJSBraga, existem homens sobre cujos feitos a historia emudece, JFKennedy foi um deles.
O discurso do Pe.Godinho, proferido na Câmara dos Deputados, vai para a minha estante junto ao livro "Os 100 discursos históricos ", de Hilário Figueiredo.
Obrigado pelo envio desta peça de esmerada oratória.
Lúcio Flavio Baioneta.
Una saggia, veritiera e commovente testimonianza, grazie di avercela inviata. Un caro abbraccio a te e a Ruthe, Giulio e Teresa
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