terça-feira, 16 de agosto de 2016

O ESCÂNDALO DO SISTEMA MONOTÔNICO


Por Sarántos Kargákos, historiador e escritor
Traduzido e comentado por Francisco José dos Santos Braga


Sarántos Kargákos


I.  INTRODUÇÃO, por Francisco José dos Santos Braga


O grego moderno, conhecido também por romaico, historicamente corresponde ao quinto estado de evolução da língua grega, desde as origens da língua grega até os nossos dias.

Através da ação do Estado grego que saía de uma ditadura militar (1967-1976) que privilegiou a "katharévussa" ou "katharévousa" (uma modalidade de grego moderno concebida no início do século XIX como compromisso entre o grego antigo e o grego demótico), houve relativa unanimidade com a adoção do demótico como a língua oficial do povo grego em 1976 (a partir de então, seria adotado como língua de comunicação cotidiana e da literatura grega moderna), devido à situação de diglossia que vigorou durante a permanência da "katharévussa" (demótico era língua para uso diário, enquanto a "katharévussa" era uma forma arcaica utilizada para documentos oficiais, literatura, escritos formais e outros fins). Nesta ocasião, o demótico ainda fazia uso do sistema politônico ¹.

No presente texto, o autor Sarántos Kargákos revela-se favorável à permanência do grego demótico ("A reivindicação da nossa época, para a nossa língua, foi invariavelmente uma só: o reconhecimento do demótico, a língua do nosso Hino Nacional") "como a única língua hoje do Povo grego", que recebeu estatuto de língua oficial em 1976, em substituição à "katharévussa" (por katharévussa entenda-se "língua purificada",  concebida para expurgar do grego os aportes estrangeiros, especialmente os vocábulos turcos, mas sem tentar ressuscitar o grego antigo), criada no início do século XIX por Adamántios Koraís. Daí, a recomendação de Sarántos Kargákos de "que aprendamos a escrever e a usar correta e lindamente o demótico".

O demótico se firmou ainda mais, quando em 1979 o escritor grego Odysseus Elytis foi agraciado com o prêmio Nobel de Literatura.

Mas o Estado grego não conseguiu a mesma relativa unanimidade quando, em janeiro de 1982,  decidiu avançar, desta vez promovendo uma reforma na grafia do demótico, eliminando os sinais diacríticos e quase todos os acentos, deixando apenas o acento agudo (sistema monotônico ²), para descontentamento de grandes expoentes da literatura grega. Por outro lado, essa reforma de 1982 foi de pleno agrado de jornalistas, editores, fotocompositores e corretores de texto. 

Quanto ao texto de Kargákos em minha tradução para o leitor lusófono, esclareço que constitui importante documento em defesa do sistema politônico na língua grega, que esteve em vigor durante séculos. O Parlamento Grego decidiu por sua supressão com uma única sessão tumultuada fora de hora, numa fatídica madrugada de janeiro de 1982, sem consulta aos maiores interessados (Academia de Atenas, universidades gregas, Escolas Filosóficas e Associações de Escritores), impondo aos Gregos e aos Cipriotas a adoção do sistema monotônico, fazendo uso inconstitucional de uma emenda a um artigo da lei sobre matrícula de alunos nos Liceus do Ensino Geral, Técnico e Profissional.

Esse documento ainda denuncia que essa malfadada operação foi urdida por "jornalistas, proclamadores-coladores de cartazes, folhetinistas, escritores de manifestos... que salvarão a nossa língua da ferrugem das eras". 

Também na sua crítica à implantação do sistema monotônico, o artigo não poupa "editores, fotocompositores e corretores de texto, "por razões econômicas", como declaravam, para ganharem tempo na disposição dos caracteres tipográficos e nas correções.

O artigo de Kargákos atribui ao socialista PASOK de Andréas Papandréou a imposição do sistema monotônico ao povo grego.

Finalmente, agradeço ao Prof. Alexandre Orfanídis, residente em Atenas, a gentileza de me ter recomendado a leitura do presente artigo.



II.  TEXTO: O ESCÂNDALO DO SISTEMA MONOTÔNICO, por Sarántos Kargákos
 
1.

O sistema monotônico  foi imposto ao Povo helênico pelo governo do PASOK — Ministro da Educação Sr. Veryvákis — com emenda que inopinadamente foi proposta, perto da meia noite, quando o Parlamento Grego (sessão de 11/01/1982) tinha concluído a discussão e votado o "Artigo Único" e exclusivo  da Lei nº 1.228, que constituía "Ratificação do ato de 11/11/1981 do Presidente da Democracia sobre a matrícula de alunos nos Liceus do Ensino Geral, Técnico e Profissional" e com exatamente esse título foi promulgado no tomo I da folha 15 do Diário Oficial da União do dia 11/02/1982.

Então, encarou-se com leviandade imperdoável e horripilante um assunto nacional fundamental, o da forma de escrita dos vocábulos de uma língua antiquíssima — uma maneira consagrada e praticada durante muitos séculos. Porque: 
a) é posto em discussão artigo eivado de inconstitucionalidade; 
b) dá entrada à meia noite, quando a maioria dos parlamentares está ausente; 
c) desencadeia surpresa (e veremos porquê); 
d) dá entrada inconstitucionalmente (vide item "a"); 
e) dá entrada sem indagar-se nem o Povo — enquanto então exatamente se sustentava que para duas bases militares devia haver... plebiscito — nem a Academia de Atenas, nem as Universidades do país e especialmente as Escolas Filosóficas, nem as Associações dos Escritores-Literatos — apesar da importantíssima declaração de Ioannis Theodorakópoulos, erudito catedrático e então Secretário Geral da Academia: 
"Só aqueles que têm algo a dizer desenvolvem a língua, isto é, as pessoas intelectuais, e não os glossoplastas e legisladores... Os legisladores linguísticos não possuem nenhuma competência e impedem simplesmente a evolução da cultura linguística." 
2.

Houve, obviamente, muito antes desta data, anúncio de círculos do PASOK não apenas sobre a imposição do monotônico, mas também sobre uma extrema simplificação de nossa língua (como se fôssemos os incultos Turcos de Kemal Ataturk ³ e não os portadores da mais antiga língua viva do mundo...). No "Comunicado da Liga das Cientistas gregas" (outubro de 1979) se prediz que "o monotônico é um passo" para a identidade da escrita com a linguagem oral (não nos imitaram os Ingleses nem os Franceses...), isto é: a supressão dos ditongos, dos muitos "ι", dos dois "ε" e "ο" — e "nesta obstinada operação", diz o texto, "dominam os jornalistas, proclamadores-coladores de cartazes, folhetinistas, escritores de manifestos... que salvarão a nossa língua da ferrugem das eras". Apenas eles são competentes...


3.

Nenhuma discussão precedente ampla, aberta e livre foi observada no país sobre esse grande assunto depois daquela velha, de duradoura memória, "Causa dos Acentos", que ficou sem continuação e opiniões esporádicas aqui e acolá. A única que foi questionada — porque nem os Partidos foram informados, como imediatamente aparecerá — era uma Comissão que se reuniu como queria o então Ministro da Educação bem como o famigerado KEME do mesmo Ministério. O que declarou a Comissão e o que disse o KEME evidentemente não sabemos, nem se existiu e o que exatamente defendeu a minoria. Porém, nem a Representação Nacional ficou sabendo disso, quando deu entrada inesperadamente, à meia noite de 11/0l/1982, ao artigo inconstitucional, o "pelinho" na lei sobre matrícula de alunos nos Liceus, etc. De qualquer modo, anunciamos os nomes dos seus membros daquela Comissão, com gravíssimas responsabilidades nacionais, a fim de que cada um assuma a sua responsabilidade pessoal e que o Povo grego não os esqueça que o salvaram, parece, do analfabetismo e do desperdício de tempo e dinheiro...: Prof. universitário Emmanuel Kriarás (presidente), Fánis Kakridís (prof. univ.), Chrístos Tsolákis (filólogo), Vas. Fóris (filólogo), Demétris Tombaídis (conselheiro do KEME), Chr. Michalés (pres. da OLME), Apóst. Kotlittas (prof.), Alói Sidéri (filólogo da OPELE). Tudo isso significa, em nossa opinião, que o competente Ministro tratou, de forma contrária ao interesse popular, do assunto colossal de mudança da escrita da nossa língua depois de tantos séculos de prática ininterrupta, como um assunto menor que com uma Comissãozinha e poucas reuniões do KEME põe em ordem... 


4.

As atas daquela sessão do Parlamento dos Gregos (da situação inesperadamente crítica) oferecem informações abaladoras e formam a descrição do fato como escandaloso. Senão vejamos:
a) Pela meia noite de 11/01/1982  foi concluída a discussão para a matrícula dos alunos dos Liceus, quando, de modo completamente súbito, foi dada entrada da adesão, conforme dito, como Artigo 2, um tema totalmente independente — e nacionalmente grande: a imposição do sistema monotônico (porque uma coisa é o reconhecimento da realidade que existe e funciona, como aconteceu com a língua demótica, e outra (coisa) a imposição autoritária de uma realidade não existente).
b) Depois de uma infeliz intervenção de Evánguelos Avérof, que indagou qual espécie de sistema monotônico pensava o Governo adotar e que a inabilidade do Ministro competente mostrou que o assunto não o tinha preocupado absolutamente...  e depois da tagarelice impetuosa, estupidíssima de alguns parlamentares, intervém o seu então representante parlamentar da Oposição Oficial, Sr. Konstantinos Mitsotákis (p. 456 das Práticas do Parlamento) e assinala os seguintes protestos:
1. Este artigo sobre sistema monotônico "é acrescentado hoje, na última hora... inesperadamente. Refere-se a um grande assunto...".
2. Solicita para ser transferido à próxima reunião do Parlamento a discussão do artigo sobre o sistema monotônico. "Não é possível que o Governo tenha a pretensão de nos trazer esse grande assunto, inesperadamente, e exigir que o votemos e depois da meia noite". "A emenda (Senhor Deus, com... emenda da meia noite altera subitamente a escrita das palavras que tinha sido mantida por séculos!) refere-se a um assunto muito sério".
3) Anuncia que, se o Governo insistir, a Oposição Oficial é obrigada a retirar-se da sala (p. 456, 2ª coluna).
4) Replica o Sr. Konstantinos Mitsotákis e assinala de novo (p. 457): a) a seriedade do assunto; b) que erroneamente ele é proposto com emenda; c) que erroneamente é convocado o Parlamento para discuti-lo depois da meia noite; d) que, assim como vem "um tal assunto", subitamente, a Oposição não se comprometeu a estar preparada para lê-lo e por-se a par. "Não temos nenhum dossiê... nenhum preparativo. Não tem nada a ver com o projeto de lei discutido. É óbvio que é inconstitucional a emenda... Dêem-nos tempo para nos prepararmos...".
5) Da parte do KKE, a sra. Maria Damanáki intervém duas vezes (p. 457, 2ª coluna) e pede também ela adiamento porque "o corpo se cansou — talvez não queira dizer que já não existe quorum —. Porém, o sr. Michális Stefanídis que presidia responde a tudo isso com as seguintes tiradas inigualáveis (p. 457, 2ª coluna): "É inaceitável e incompreensível para o Povo grego, o qual, quando é informado sobre essa discussão que acontece aqui, sentirá decepção." (só por isso) 
6) O sr. Konstantinos Mitsotákis torna (p. 458, 1ª coluna) a assinalar que "o Governo e o gabinete insistem... sob essas circunstâncias estamos sinceramente desolados, mas não somos capazes de continuarmos a discussão e somos obrigados a nos retirarmos" (e os parlamentares da Nova Democracia se retiram da sala.)

5. 

Assim, o crime contra a nossa língua foi perpetrado: de forma escandalosa, repentina, não preparada e inconstitucional, e se julgarmos pela tagarelice que se seguiu, superficial e deplorável, essa emenda fora de propósito e de muita importância sobre a imposição do sistema monotônico ao Povo grego foi votada por volta das 2 horas da madrugada — a fim de ser verificado mais uma vez o que foi dito de nosso povo: o dia vê os feitos da noite e se ri...

Por quantos foi votada essa emenda? Conforme declaração do inesquecível Panag. Kanellópoulous — não estava presente na reunião, visto que ninguém sabia que o Governo repentinamente daria entrada a uma inconstitucionalidade, — uma lei secundária, trazendo à discussão tão máximo assunto nacional, foi votada por não mais de 30 parlamentares! A informação é repetida pelo poeta-acadêmico Nikifóros Vrettákos ("Éthos" de 8/5/1990). O que então séculos criaram, às 2 horas da madrugada demoliram-no 30 parlamentares... Escandaloso, leviano ato de gravidade antinacional.

6.

A lei, assim que "foi adulterada", foi promulgada, como lembramos antes, no Diário Oficial da União com outro título e é preciso desmedida imaginação para alguém inventá-lo.

E contudo, ninguém tinha, então nem agora, pedido ao Estado a imposição do sistema monotônico. A reivindicação da nossa época, para a nossa língua, foi invariavelmente uma só: o reconhecimento do demótico, a língua do nosso Hino Nacional, como a única língua hoje do Povo grego. E o Governo transditatorial do sr. Konstantinos Karamanlís com o Ministro da Educação sr. Geórgios Rálli levou a cabo o reconhecimento dessa realidade,  não a súbita imposição de uma realidade totalmente nova,  oferecendo aos alunos e ao Povo uma Gramática Neo-helênica simplificada e bastante sincronizada, que enfrenta quase todas as complicações de acentuação dos vocábulos que atormentavam as velhas gerações e torna fácil e harmonioso o trabalho da acentuação  sublinhando ao mesmo tempo que a enorme dívida, por décadas talvez, de todos nós, seja que aprendamos a escrever e a usar correta e lindamente o demótico.


7. 

Então, claro, depois da ditadura (sendo precursores, antes da ditadura, dois jornais de Thessaloníki  que, portanto, mantinham um sinal no lugar dos espíritos e acentuavam todas as palavras), alguns jornais de Atenas tinham começado a empregar o sistema monotônico,  por razões econômicas, como declaravam, para ganharem tempo na colocação dos caracteres tipográficos e nas correções. Mas qual homem sério cogitaria defender algum dia que editores, fotocompositores ⁴ e corretores de texto fossem estabelecer como se escreve uma língua? A nossa língua constitui um fato espiritual e histórico cristalizado através dos séculos e não pode render-se a mesquinhos critérios utilitários, quando outras línguas mais jovens não os admitem. Nem é lógico  para não dizermos que é risível – correspondentemente ao nível da formação linguística da maioria, quiçá, do povo num dado período histórico, que o Estado responsável aumente ou limite as exigências à língua, a fim de que a língua cada vez  brincadeira extra  se adapte ao ócio de muitos e não os muitos (se adaptem) à virtude da educação linguística.


8. 

Após a promulgação da lei, começou-se a por em prática um vasto plano de fanática destruição linguística e material: 
a) O Poder aterrorizou os funcionários do Estado e dos Organismos Públicos (especialmente os educacionais, obviamente), para não reagirem à colocação em prática do sistema monotônico.
b) Destruíram milhões de livros educativos, cujo valor atingia muitos milhões, porque neles a língua era demótica politônica, e deveriam ser de novo compostos tipograficamente no sistema monotônico  como se os espíritos e os acentos impedissem a sua leitura pelos partidários do monotonismo, enquanto logicamente ocorre o contrário: quando para algum leitor faltam alguns sinais distintivos e de acentuação das palavras, isso dificulta a leitura de um texto e toma tempo.
c) Naufragou o ensino do grego antigo  nossa herança  na Educação Secundária e nas Escolas Filosóficas.
d) Começou a tradução apressada, ofegante e leviana das Leis Básicas do Estado, antes de ter tempo para ridicularizar-se a língua demótica com a prática das escolas públicas, mas para passar, junto com o demótico, o sistema monotônico também  com evidente pressa do ritmo de evolução e de purificação de nossa língua, mas também de refundição legítima e de mistura dos elementos dela.


9.

Logo depois dessa súbita e apressada mudança, vários Gregos cultos, alguns deles com a incurável "síndrome do progressismo"... adormeceram politonistas, como diria o nosso Povo, e, já no dia seguinte, sem se perguntarem ou sem indagarem o quê e como, despertaram monotonistas. Repentinamente, na madrugada de 11 para 12 de janeiro de 1982, depois de toda uma vida, compreenderam o que não tinham sido, escrevendo sobre tais décadas anteriores. E a partir de então, apoiadores dos 30 parlamentares que sonolentos votaram o sistema monotônico, não cessaram de empregá-lo e pregá-lo, destacando as vantagens econômicas, culturais e de tempo.

Perguntamos: Qual língua antiga, desenvolvida naturalmente e sem pressa dentro dos séculos, aplicou descontos nas exigências de memória histórica e carestia, submetendo-se a critérios não linguísticos, isto é, dela própria, autonomamente e não comercialmente? Então, se tais critérios valerem, a nossa língua, causando alegria aos ociosos, pouco instruídos, como também às multinacionais dos computadores, devia empregar o alfabeto latino sempre que muitas vantagens econômicas e outras materiais... Contudo, todas as línguas no grande passado  e não tão grande quanto o helênico,  são difíceis, exigentes, densas em memória semiológica, e se recusam a submeter-se a critérios utilitários. Após debates de 100 anos ou mais, a língua francesa no ano passado admitiu algumas mudanças tímidas  na realidade: harmonizações,  depois de meses de discussões públicas, mas também das mudanças mesquinhas, logicamente justificadas, finalmente as refutou a Academia Francesa,  legítima guardiã da língua do Povo.

E aqueles não têm a grave, santa obrigação de defenderem,  como nós, que somos também os únicos,   os nossos antigos Textos, que sem acentos e espíritos não são compreendidos. E é conhecida a vitoriosa oposição dos Espanhóis à descarada reclamação das empresas multinacionais a fim de abolirem a letra ῆ.


10.

Da forma repentina, inconstitucional que foi imposto de madrugada o sistema monotônico, ninguém quis conscientizar-se, nem o mal informado Ministro da Educação, como foi criado, com a cumplicidade de 30 parlamentares, da mais mesquinha minoria do Parlamento dos Gregos, um nova cisão linguística do nosso Povo.

Então foi publicada também a seguinte Declaração dos Escritores Gregos:
"Acreditávamos que a ação do Estado com a qual, há poucos anos, reconheceu o demótico como a única língua da nossa nação hoje, salvaria nosso povo de uma questão linguística, especialmente politizada e seria a origem de um estudo e conhecimento mais profundo da língua, de um uso e de uma escrita mais consciente das suas palavras.

Em vez disso, para nossa tristeza vimos ser criado de forma artificial, imediatamente, um problema linguístico recém-formado,  a questão da acentuação dos vocábulos no discurso escrito e, junto com ele, ainda por cima o assunto da escrita das palavras ser debatido por alguns — a saber, a completa desarticulação da língua grega. E aqueles que criaram esse problema pensaram em politizá-lo, sem compreenderem que, confiando ao Estado a sua solução, assumiam perante a Nação uma gravíssima responsabilidade. E assim temos um novo "imbroglio" linguístico na Grécia.

Porque:
1) As palavras, como no-las transmitiram os pais do Demoticismo são escritas assim por 2.000 anos, tendo-se cristalizado uma tradição respeitável, até mesmo por estrangeiros; 
2) o modo de se escreverem as palavras é sempre competência exclusiva dos escritores de uma localidade e nunca de outros fatores da vida;
3) nossa principal obrigação hoje é ensinar os Gregos a falarem e a escreverem corretamente o demótico transmitido;
4) as simplificações da nossa língua nos últimos anos reduziram ao mínimo as dificuldades da acentuação das suas palavras; 

declaramos que: 

não admitimos qualquer mudança na grafia dos vocábulos de nossa língua e continuaremos a escrever e imprimir nossos livros com deferência à tradição linguística viva e à forma plena das palavras, como nos ensinaram os pais do demoticismo e os grandes escritores do grego moderno.
Os escritores

Nikos Athanassiádis, Tássos Athanassiádis, Éfi Elianoú, Oréstis Alexánis, Kóstas Assimakópoulos, Tákis Barritsiótis, Olga Vótsi, Nikifóros Vrettákos, Pétros Glézos, Margarita Dalmáti, Dialechtí Zevgóli-Glézou, Lilí Zográfou, Naná Isaía, Iúlia Iatrídi, Panos Kararias, Andréas Karadónis, Zoí Karélli, Grig. Kassimátis, Tassos Kórfis, Guiorguís Kótsiras, B. Konstantinos, Christóforos Liontákis, N. K. Loúros, Christos Malerítsis, G. Manoussákis, Melissánthi, E. N. Móschos, Dimítris Myrát, Élli Nezeríti, Theód. Xydis, Th. Papathanassópoulos, Dim. Papakonstantínou, Léna Pappá, P. B. Páschos, G. Patriarchéas, N. G. Pentzíkis, E. N. Platís, Aléxis Solomós, Tatiana Stávrou, Gueorguía Tarsoúli, Fófi Trézou, Ioánna Tsátsou, Kóstas E. Tsirópoulos, Th. D. Frangópoulos, Nikos Fokás, Panaguiótis Fotéas, Herríkos Chatsianéstis, Dínos Christianópoulos.

Esse manifesto, que provocou ira, insultos e calúnias — libelos dos tardios seguidores do sistema monotônico, seguiram um monte de opiniões de pessoas notáveis da nossa cultura espiritual — e apenas essas coisas refreariam um Governo sensível, com consciência nacional e o trariam ao auto-conhecimento de forma que, pelo menos para colocar o assunto na discussão popular mais ampla  e não insistir na imposição autárquica do sistema monotônico.

Odysseus Elytis declarou: "Eu sou a favor do sistema antigo, contra o sistema monotônico e a favor do ensinamento dos Gregos antigos. É a base para saberes a etimologia das palavras. O atual mau trato da língua me incomoda também esteticamente. Quero ver escrito "cafeníon" e que pronunciemos o "n". 
Agora, todas as palavras possuem uma abertura." 

Nikifóros Vrettákos sublinhou:
"Foi valorizado o aspecto que facilita aos alunos algo que, talvez, seja antipedagógico. Existe, aliás, uma tradição que expressa a visão de grandes pedagogos, os quais insistem que a criança precisa ter dificuldade para tornar-se pessoa capaz de, na sua vida, enfrentar todas as adversidades. 
Sustentou-se, também, favoravelmente ao (sistema) monotônico, o aspecto que ele facilita para os tipógrafos e compositores tipográficos, em geral, e que as edições, de novo geralmente, ficam mais econômicas.
São negligenciadas, porém, as razões que obrigaram as "épocas alexandrinas ao estabelecimento dos acentos, que são válidas também hoje. Muitas vezes, os meus escritos não são lidos direito quando são impressos no (sistema) monotônico. Esperemos que o assunto será reexaminado futuramente e que prevalecerão pontos de vista mais ajuizados."

Cornélios Kastoriádis destacou:
"Agora sobre o (sistema) monotônico. Se vocês não quiserem que os senhores do Ministério façam ortografia fonética, então é preciso deixarem (como estão) os acentos e os espíritos, porque os que os puseram, sabiam o que faziam. Não existiam no grego antigo, porque muito simplesmente existiam dentro das próprias palavras. Eles, os Kriarás e os outros (...) que fizeram essas reformas  peço que conste dos jornais  não sabem o que é uma língua. Não sabem isso que conhecia minha filha na idade de três anos: aprendia uma palavra e depois procurava os parentes próximos dela. Isso é uma língua. Um magma, um emaranhado, onde as palavras são produzidas umas das outras, onde os significados escorregam de uma para a outra, é uma unidade orgânica da qual não podes tirar nem colar coisas, por força de um pseudo-governo, sentado num gabinete no Ministério da Educação. A supressão dos acentos e dos espíritos é a anulação da ortografia, que é afinal a destruição da continuidade. Já as crianças não podem compreender Kaváfis, Seféris, Elytis, porque eles estão cheios da riqueza do grego antigo. Quer dizer: vamos destruir o que construímos há pouco? Este é o dramático destino do helenismo contemporâneo."

Seguiram-se protestos, debates públicos, recursos. O Governo ficou impassível, acreditando que de ano em ano ganharia com coação, terrorismo, boatos de que não existem mais máquinas de escrever politônicas, nem tipógrafos politônicos, que o Estado finge que não compra livros politônicos, que seria exigido finalmente o sistema monotônico. Porém indagamos: pode uma prática constrangedora de 8 anos derrubar uma tradição de uma prática de muitos séculos? Que nos respondam os responsáveis.

Seja como for, também nossos filhos, nestes anos bissextos, não aprenderam bem a nossa língua, porque foram suprimidos os acentos e os espíritos, e seus textos, reconhecidamente, a cada ano são cada vez mais deploráveis, provas do desmonte linguístico. A maioria dos nossos escritores conscientes continua a escrever politonicamente  e dos nossos jovens escritores também, não apenas dos mais velhos,  importantes revistas e distintas editoras continuam a utilizar o sistema politônico e o Povo insiste. Santa perseverança nacional, admirável resistência à destruição.


11.

Concluímos que:

1. A imposição do sistema monotônico foi a) inoportuna, b) arbitrária, c) autoritária, d) súbita, e) inconstitucional, f) não aceita pelo nosso povo, e em especial pelos particularmente interessados. Trata-se, então, de um verdadeiro Escândalo de importância nacional.

2.  A "Nova Democracia" NÃO SE COMPROMETEU a por em prática o sistema monotônico. O primeiro ministro atual, sr. Constantinos Metsotákis, opôs-se pessoalmente àquela ação apressada e catastrófica e ordenou a retirada de todos os parlamentares da então Oposição Oficial da sessão do Parlamento após a meia noite. Consequentemente, nem o partido, nem o primeiro ministro, nem os ministros dele, nem seus parlamentares têm QUALQUER COMPROMISSO e obrigação de por em prática e insistir no sistema monotônico. Não cooperaram, OPUSERAM-SE à fabricação deste escândalo.


12.

Pedimos: 
1.  Que o governo ordene e o digníssimo sr. Ministro da Educação em colaboração com o Ministro da Cultura iniciem a rediscussão sobre o sistema monotônico. A discussão (deverá ser) aberta, democrática e destemida e sejam chamados para esse diálogo anti-autoritário todos os responsáveis: a Academia de Atenas, as Universidades e as Associações de Letras.

2.  Que o governo permita imediatamente que todos os funcionários do Estado e dos três Poderes possam, se o quiserem, livremente escrever no sistema politônico, sem temor e qualquer pressão.

3. Que sejam colocadas as conclusões desses debates, se não na imediata crise como conviria, aos Gregos com plebiscito formal, na Representação Nacional e na sessão especial a tempo e completamente preparada para que aquela decidir livre, responsável e helenicamente.

Atenas, setembro de 1991.




Fonte: http://www.polytoniko.org/skandalo.php?newlang=en&font=Palatino+Linotype&title=%CE%A4%E1%BD%B8+%CF%83%CE%BA%CE%AC%CE%BD%CE%B4%CE%B1%CE%BB%CE%BF+%CF%84%CE%BF%E1%BF%A6+%CE%BC%CE%BF%CE%BD%CE%BF%CF%84%CE%BF%CE%BD%CE%B9%CE%BA%CE%BF%E1%BF%A6&right=no




III.  NOTAS EXPLICATIVAS, por Francisco José dos Santos Braga





¹  Confira, clicando no link referente ao texto  "O escândalo do sistema monotônico" no link fornecido logo acima, e comprove que foi escrito usando o sistema politônico, ou seja, com todo o arcabouço gráfico do passado, consistindo de acentos (agudo, grave e circunflexo),  sinais diacríticos (espíritos doce e rude) e os sinais de pontuação, da forma como prescreveu Erasmo de Roterdam (séc. XV). Desta forma, o autor Sarántos Kargákos deixa evidente sua filiação ao sistema politônico,  ao adotá-lo no seu texto, em contraposição ao monotônico, atualmente em vigor. Ressalte-se que o sistema ortográfico que é adotado atualmente na Grécia e em Chipre denomina-se monotônico, com um único acento agudo, em contraposição ao sistema antigo, milenar, alexandrino, ainda usado em grego clássico, chamado politônico, que utiliza todo o arcabouço gráfico do passado. O monotônico é oficial somente desde 1982, embora ainda encontremos em uso publicações acadêmicas e oficiais no sistema ortográfico antigo, publicadas anteriormente àquela data.  
Os textos bíblicos e os dos clássicos gregos, porém, estão escritos na ortografia politônica. 
Um texto na ortografia politônica, que for transcrito para a ortografia monotônica tal como explicamos, observará um único acento agudo, ignorando todos os demais sinais diacríticos. 


²  A etimologia (derivada do grego antigo ἐτυμολογία) do adjetivo "monotônico" é derivada da aglutinação dos vocábulos "μόνος" e "τόνος", com o significado de "único + acento". O vocábulo oposto a "monotônico" é "politônico" e se refere ao uso de "muitos acentos".
Existe uma palavra muito próxima a "monotônico" na língua portuguesa, que é a "monotonia" (derivada de μονοτονία), significando "qualidade do que é monótono, repetitivo, enfadonho ou maçante; ausência de variedade".
Este segundo vocábulo (monotonia) mostra o que acontece com uma língua  antiga como a grega, que venha a fazer uso da simplificação/unificação de seus acentos e sinais diacríticos, levando-a à existência de um acento único.
O sistema politônico (πολυτονικὸν σύστημα), contrariamente ao atual sistema monotônico (μονοτονικὸν σύστημα), é o sistema gráfico usado para escrever o grego antigo, bizantino e katharévoussa. Compreende um conjunto de regras para a utilização de sinais diacríticos e acentos, além de outras questões.
Para exemplificar, abaixo se pode apreciar um célebre provérbio grego (atribuído ao filósofo ateniense Antísthenes (c. 445-c. 365 a.C., discípulo de Sócrates), como outrora se escrevia e, a seguir, sua grafia atual, após a adoção do sistema monotônico.
Monotônico: αρχή σοφίας, η των ονομάτων επίσκεψη

Tradução: "O princípio da sabedoria é a visita das palavras", significando que, para a busca da verdade importa conhecer as raízes das palavras gregas, pelas quais nos tornamos frequentemente partícipes de uma sabedoria perdida no tempo, porém ao mesmo tempo existente e viva nos incessantes dilemas e nos esforços das pessoas de toda a terra e de cada época.

Em toda língua há o significante (forma gráfica + som) e o significado (o conceito transmitido pelo significante). Na língua grega os dois possuem uma relação primitiva, original, visto que, ao contrário das outras línguas, o significante não é uma sequência fortuita de letras. No inglês, por exemplo, que é uma língua "habituée", se os falantes concordarem em usar determinada palavra, ela fica válida. No grego, tal coisa é impossível. Por isso, muitos distinguem o grego como uma língua "conceitual", das restantes línguas "semânticas". 

³  Kemal Ataturk (trad. "Kemal, pai dos Turcos"), ⭐︎ Mustafa Kemal em 1881, Thessaloníki, Grécia ✞ 10/11/1938, Istambul, Turquia, soldado, estadista e reformador que foi o fundador da República da Turquia e seu primeiro presidente (1923-38). Modernizou os sistemas legal e educacional da Turquia e encorajou a adoção do modo de vida europeu, do alfabeto latino para a grafia da língua turca e da tendência europeizante para nomes dos cidadãos turcos. 

⁴  Cf. in http://www.tipografos.net/tecnologias/linotype.html; idem in http://www.tipografos.net/tecnologias/fotocomposicao.html

⁵  Confira o que escreveu o grande Odysseus Elytis tanto sobre o sistema politônico quanto sobre a elisão do "n" final (“ν”, em grego) num texto denominado "Por uma Ótica do Som", traduzido por mim algum tempo atrás, neste mesmo Blog do Braga, a saber:
http://bragamusician.blogspot.com.br/2013/03/implicacoes-da-reforma-ortografica-da.html



Por outro lado, traduzo abaixo a última entrevista de Georges Cheimonás a Aléxis Stamátis em 14/11/1999, divulgada no jornal "Καθημερινή", três meses antes de sua morte em 27/02/2000 em Paris, onde vivia nos últimos anos de sua vida.




Georges Cheimonás


(...)
Aléxis Stamátis: O que você pensa do sistema monotônico?
Georges Cheimonás: A destruição da língua grega com o sistema monotônico levará finalmente ao alfabeto latino. Nas línguas francesa, alemã e inglesa há fonemas que se escrevem, mas não se pronunciam. Quem jamais cogitou nivelá-los? Aqui temos supressão de ditongos, supressão de consoantes duplas... Há estudos que demonstram que de outra forma o falante grego contemporâneo pronuncia um vocábulo que começa por vogal com espírito brando e de forma esquisita quando é acentuado com espírito áspero, acento grave ou acento agudo.

Aléxis Stamátis: É o modernismo. Some o ajuste fino (fine tuning) e fica o código frio...
Georges Cheimonás: A Grécia sempre foi moderna, desde as mais antigas eras. Não tem necessidade de tais mudanças e transformações.

Fonte: http://www.lifo.gr/mag/features/3116

3 comentários:

Prof. Fernando Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e Secretário Geral da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Muito grato pelo texto, amigo. Fernando Teixeira

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor e gerente do Blog de São João del-Rei e do Blog do Braga) disse...

Dando continuidade às minhas traduções de atuais grandes pensadores gregos, o Blog do Braga brinda o leitor com um texto de Sarántos Kargákos, traduzido por Francisco José dos Santos Braga, gerente do blog.

Embora o que se verá aqui seja uma realidade grega, sempre é possível imaginar que haja o risco de reformas ortográficas traumáticas entre nós serem promovidas por ideologia política, e não pelo povo e pelos grandes interessados na língua pátria, como se deu na Grécia com o socialista PASOK, de Andréas Papandréou.

Paulo Roberto Souza Lima (escritor, gestor cultural e membro do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei) disse...

Eles, como nós, passamos pelo transe da reforma ortográfica. Quantos dilemas e maiores dificuldades.
Parabéns pela tradução.