terça-feira, 31 de outubro de 2017

AUTOBIOGRAFIA E EXÍLIO DO POETA LATINO OVÍDIO


Por Francisco José dos Santos Braga




I.  PREÂMBULO



Em palestra intitulada  "Centro Artístico e Cultural-C.A.C. de São João del-Rei", proferida em 2 de abril de 2017,  a palestrante, historiadora Profª Maria Lúcia Monteiro Guimarães, apresentou uma página onde se viam um brasão para o C.A.C. e dois dísticos elegíacos de "Tristia" de Ovídio,  extraídos do seu quarto livro, elegia nº 10, conforme se vê abaixo:
Brasão e citações diretas do poeta latino Ovídio
Certamente ambos foram da época em que o esloveno, mestre latinista, Pe. Luiz Zver SDB exerceu a presidência da 1ª Diretoria do C.A.C. (8/3/1959-7/9/1961). O brasão mostra uma lira e uma pena de ave dentro de um círculo em cujo perímetro se lê: Centro Artístico e Cultural / São João del-Rei-MG.

Tanto os versos de Ovídio quanto o brasão parecem indicar o patrocínio/produção literária e lírica que se pretendia para a entidade cultural são-joanense, considerada a precursora da Academia de Letras e do IHG locais, que durante dez anos prestou relevantes serviços à cultura são-joanense.

Inicialmente, proponho-me a  apresentar a tradução para os dois dísticos elegíacos, extraídos pelo Pe. Luiz Zver SDB de "Tristia" de Ovídio, quarto livro, elegia nº 10 (considerada a melhor fonte autobiográfica do poeta), a saber:
At mihi iam puero cœlestia sacra placebant,
inque suum furtim Musa trahebat opus.
(Tristia IV, 10, 19-20)
Minha tradução:
Mas mesmo quando criança os poemas 
[celestiais me alegravam,/
a Musa já me atraía secretamente para 
[servir-lhe.
________________________________
Temporis illius colui fovique poetas
quotque aderant vates, rebar adesse deos.
(Tristia IV, 10, 41-42)
Minha tradução:
Estimei e reverenciei os poetas daquela época/
e quantos poetas havia lá, tantos deuses eu 
[julguei estarem presentes.
________________________________

Concluído este preâmbulo, convém agora apresentar resumidamente algo sobre a vida e obra do poeta Públio Ovídio Naso, mais conhecido por Ovídio, e apreciar as razões por que Pe. Luiz Zver SDB escolheu versos de Ovídio para representar aquele movimento cultural são-joanense de 1959, que durou 10 anos.


II.  VIDA E OBRAS DE OVÍDIO (segundo Pe. Dr. Bernardo H. Harmsen, C.M.)


§ 1. Vida

A vida de Públio Ovídio Naso nos é conhecida pelas suas próprias obras, principalmente pela décima elegia do quarto livro dos Tristia


Nasceu o poeta a 20 de março do ano 43 a.C. em Sulmona (Sulmo), cidade pitoresca situada nos Abruzos, a 135 km de Roma. Já há tempos, sua família pertencia à ordem equestre. Juntamente com seu irmão, Ovídio estudou direito e retórica em Roma sob a direção dos mestres Arélio Fusco e Pórcio Latro. Seguindo o costume de muitos jovens romanos de família abastada, completou sua educação com uma viagem através da Grécia, Ásia Menor e Sicília. De volta, desempenhou alguns cargos de menor importância, mas, como não se pudesse acostumar às exigências do funcionalismo, resolveu dedicar-se à poesia para a qual mostrou, desde cedo, um grande pendor:
Sponte sua carmen numeros veniebat ad aptos,
et, quod temptabam dicere, versus erat. ¹
(Tristia IV 10, 25-26)

O ambiente e o clima espiritual eram, naqueles tempos, excepcionalmente favoráveis aos estudos e à literatura. Augusto, que desde o ano 31 era monarca, protegia os literatos, não só por amor da arte, mas sobretudo porque compreendia que êstes podiam prestar serviços relevantes nas reformas sociais. Muito significativas são as palavras de Materno no Dialogus de oratoribus de Tácito (c. 13): licet illos (sc. os oradores) certamina et pericula sua vel ad consulatus evexerint, malo securum et quietum Vergilii secessum, in quo tamen neque apud divum Augustum gratia caruit neque apud populum Romanum notitia. Testes Augusti epistulae, testis ipse populus, qui, auditis in theatro Vergilii versibus, surrexit universus et forte praesentem spectantemque veneratus est sic quasi Augustum. ²  E não foi só Vergílio a gozar de grande fama, também outros poetas desta época, a saber, Horácio, Tibulo, Propércio e Ovídio.

Cercado e admirado por familiares e amigos, Ovídio dava livre vazão à sua veia poética. Mas sùbitamente, no ano 8 d.C., foi relegado a Tomos, à margem ocidental do Mar Negro, um dos piores recantos de todo o império. O motivo deste banimento ficou sempre coberto por misterioso véu. O próprio poeta diz o seguinte:

Perdiderint cum me duo crimina, carmen et 
 [error,

alterius facti culpa silenda mihi;
nam non sum tanti, renovem ut tua vulnera, 

 [Caesar,

quem nimio plus est indoluisse semel.
Altera pars superest, qua turpi carmine factus
arguor obsceni doctor adulterii. ³

(Tristia II 207 ss.)
Neste trecho Ovídio diz que duas foram as causas de sua desgraça: carmen et error. É muito provável que o carmen tenha sido a Ars amatoria, que, realmente, zombava de tôda gravitas Romana e que contradizia os princípios éticos da política interna de Augusto. Mas, como esta obra fôsse publicada nove anos antes do destêrro, o verdadeiro motivo deve ter sido o error, que o poeta não quer revelar para não ofender o imperador. Talvez Ovídio favorecesse os amôres ilícitos da imoral Júlia, neta de Augusto, a qual, por sinal, foi desterrada no mesmo ano em que o poeta.

Ovídio nunca mais chegou a ver Roma. Sua alegria de viver desapareceu e sua inspiração sentiu a falta da convivência com os círculos mundanos de Roma. Morreu no ano 16 ou 17 d.C.

§ 2. Obras

As obras de Ovídio podem ser divididas em três grupos:
1. As poesias de sua mocidade. São poemas amorosos escritos em verso elegíaco:
a) Amores, "love poems which, except in the lament for Tibullus, show little real feeling" (Oxf. Class. Dict.) 
b) Heroïdes, "cartas de heroínas", uma correspondência figurada entre pessoas da mitologia, por ex., entre Penélope e Ulisses (nº XVI), entre Medéia e Jasão, etc.;
c) De medicamine faciei (resta-nos apenas um fragmento), manual de beleza para a mulher;
d) Ars amatoria, "escola do amor". Ovídio denomina-se praeceptor amoris, mas do amor sério êle não trata; 
e) Remedia amoris, em que o poeta propõe alguns meios para quebrar os laços do amor. 

2. Mais dignas e sérias são as obras de sua idade madura:
a) as Metamorfoses (Metamorphoseon libri XV): a obra-prima do poeta. São umas 250 narrações mitológicas (cêrca de 12.000 versos) que, muitas vêzes, terminam com a transformação de um deus em homem ou animal, ou de um homem em deus, animal, planta ou pedra. "Insuperável é a riqueza da veia poética, sem atingir entretanto a intensidade humana e artística de Lucrécio e Virgílio" (Leoni);
b) os Fastos (6 livros): um calendário poético dos seis primeiros meses do ano romano.

3. As obras escritas no exílio
a) os Tristia (5 livros), "cânticos tristes";
b) as Epistulae ex Ponto (4 livros), "cartas do Ponto".
Nessas duas coletâneas de elegias, o poeta sempre repete os mesmos assuntos: desespêro e sofrimento do exilado, e súplicas para que intercedessem a seu favor junto de Augusto. Embora encontremos páginas emocionantes, devemos constatar que o sofrimento não inspirou ao poeta verdadeira poesia;
c) Ibis e Nux, duas elegias de menor importância. 


§ 3. Algumas apreciações

- "Tanta perspicuitate et velocitate, quidquid mente concepit, (Ovidius) significat, tantam perfectionem in versus elegiacos inducit, tantam vitam in aridam materiam, ut nemo unquam par illi fuerit" (Salvatore D'Elia)
- "Ovide est le premier en date des poètes latins de la décadence: avec lui la rhétorique et le bel esprit s'insinuent dans la poésie. Mais c'en est aussi le plus grand. Son talent est très remarquable, et il n'y a guère jamais eu d'artiste mieux doué. De nos jours, il trouve encore un grand nombre d'admirateurs, séduits par sa facilité naturelle et la grâce de son esprit" (Humbert) 
- "Sua vida é amor, seu amor é divertimento, seu divertimento é arte" (Janssen) 
- "C'est un grand artiste, mais qui s'amuse trop de son art." "Pourquoi s'est-il jeté dans le merveilleux s'il ne devait que s'en amuser?" (Bayet)
- "A poet by instinct, Ovid lacked the dignity and earnestness which the loftiest poetry demands." "Having a fertile and creative imagination, he is unrivalled in the ease and liveliness with which he conceives and describes scenes and incidents." "His faults are frivolity and irreverence, lapses into bad taste, want of restraint in describing what decency should have forbidden, and redundancy of language." (Oxf. Class. Dict.)
- "O esplendor da poesia de Ovídio é ilusório: há apenas a forma, enquanto que a substância já está vazia; contém a ênfase que não exalta e não comove mais." (Leoni)
- "Ovídio não era inspirado por grandes idéias. O ambiente em que vivia não apreciava sentimentos profundos, mas enfastiava-se e procurava distrações. E assim, por maior que fôsse seu talento, por mais atrativas que sejam suas narrações, faltam-lhe a seriedade e o idealismo que comunicam um calor tão benfazejo à poesia de Vergílio." (Petrus Johannes Enk)


III.  NOTAS  EXPLICATIVAS



¹   Minha tradução:
A poesia vinha naturalmente para a cadência  
[própria:/
e o que pretendia exprimir era verso.  

²   Neste trecho Tácito compara a vida do poeta com a vida perturbadora e agitada do orador.
Minha tradução:  
Os oradores foram criados para consulados por suas disputas e perigos, mas eu prefiro o recolhimento sereno, calmo e pacífico de Virgílio, no qual afinal ele não estava sem o favor do divino Augusto, e a fama entre o povo de Roma. Temos o testemunho das cartas de Augusto, bem como o testemunho do próprio povo, que, ao ouvir no teatro alguns dos versos de Virgílio, ergueu-se em massa e homenageou o poeta, o qual por acaso estava presente como espectador, precisamente como aconteceu com o próprio Augusto. 


³   Minha tradução:  

Embora dois crimes - um poema e um erro -   
[me tenham trazido ruína,/
do segundo devo manter absoluto silêncio,/
pois minha importância não é tal que eu vá  
[reabrir tuas feridas, César,/
para quem já é demais ter sofrido  
[extremamente uma vez./
Resta outra parte, na qual, acusado de torpe  
[crime,/
sou censurado como mestre de ignóbil 
 [adultério./

⁴  Minha tradução: 
Com tanta perpicácia e celeridade, o que quer que seja concebeu (Ovídio) com a mente, meteu em versos elegíacos tão grande perfeição, tão grande vida na matéria árida que nunca pessoa alguma será igual a ele.





IV.  BIBLIOGRAFIA





HARMSEN, Pe. Dr. Bernardo H.: OVÍDIO: trechos selecionados e anotados pelo, Petrópolis-RJ: Editôra Vozes Limitada, Coleção Clássicos Vozes, Série Latina IV, 1962, 112 p. 


OVÍDIO: TRISTIUM (Tradução Literal de Augusto Velloso), 2ª edição, Rio de Janeiro: Edição da "Organização Simões", 1952, 223 p. 


OVIDE: LES TRISTES-LES PONTIQUES-IBIS-LE NOYER-HALIEUTIQUES (traduction nouvelle, introduction, notes et texte établis par Émile Ripert), Paris: Librairie Garnier Frères, collection Classiques Garnier, 1937, 566 p.

6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Tenho o prazer de apresentar o poeta latino OVÍDIO através de suas próprias obras, principalmente utilizando a elegia nº 10 do quarto livro dos TRISTIA. Aí podemos avaliar o próprio poeta e a sua circunstância.
Sirvo-me, para tanto, do prefácio do livro OVÍDIO, editado pela Edtôra Vozes Ltda. em 1962, com trechos selecionados e anotados pelo Pe. Dr. Bernardo Harmsen.
O Preâmbulo e as traduções dos dísticos de Ovídio são de minha autoria.

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro efetivo da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Sempre nos surpreendendo com seus textos de caráter internacional!
Pequenos somos diante de sua sabedoria.
Obrigado!

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (advogado, professor universitário, escritor, poeta e presidente da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Agradeço o envio do texto, confrade e amigo Braga.

Vamireh Chacon Albuquerque (professor universitário e autor de Os Partidos Brasileiros no Fim do Século XX) disse...

Parabéns pelo bom gosto e ótimas traduções de Ovídio !

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Como sempre, o ilustre amigo trás à luz a essência de sua intelectualidade, abordando temas tão significativos como esse, pelo que agradeço a gentileza do envio.

Parabéns por mais esse trabalho.

Abraços.

Prof. Cupertino Santos (professor de história aposentado de uma escola municipal em Campinas) disse...

Caro professor Braga.
Muito atraente sua exposição desse poeta clássico, fazendo despertar a quem o lê o interesse pela temática, hoje tão esquecida nos meios intelectuais. Muito boas as suas versões, algo que exige também, acho eu, uma capacidade de poeta para interpretar os originais.
Grato.