sexta-feira, 23 de março de 2018

A CRISE GREGA NÃO É ECONÔMICA, MAS CULTURAL

Por Stélios Rámfos
(em entrevista a Richard Werly, enviado especial a Atenas, pelo jornal O TEMPO, edição de 14/06/2012)
Traduzido do francês por Francisco José dos Santos Braga

> Entrevista: O filósofo grego Stélios Rámfos julga com severidade seu país, enquanto as reformas patinam
> À véspera das eleições legislativas, ele descriptografa as mentalidades helênicas à prova de choque sócio-econômico
> A ocasião de denunciar a cegueira da Europa


Stélios Rámfos, filósofo


Um Sócrates moderno? No seu café preferido de Atenas, não longe dum parlamento grego sonolento diante das eleições de 17 de junho, o filósofo Stélios Rámfos, 73 anos, se diverte com a comparação audaciosa com o mestre-para-pensar da Antiguidade, que um novo processo fictício acaba de inocentar ¹. E, no entanto, os debates que ele suscita na Grécia, e a singularidade de suas críticas sobre a Europa, na tormenta político-financeira atual, derrubam as verdades helênicas estabelecidas e questiona muito bem “valores tradicionais”. Tudo como há dois milênios...

O tempo: Uma nova Grécia está ou não emergindo?
Stélios Rámfos: De qual Grécia a gente está falando? A Grécia das relações comunitárias? Ou a Grécia real? Minha resposta é que a crise, por mais dolorosa que seja, ainda não mudou as mentalidades. Os que assim crêem se enganam. Umas das razões do beco sem saída das reformas é que a população nem sempre se convenceu da solidez delas. Você me dirá que as estatísticas são incontestáveis, que nossa falência está consumada... Talvez. Mas os Gregos permanecem sentimentais. Para eles, a percepção continua a ser mais importante que os fatos e os algarismos.

Falar de “mentalidade grega” não é reducionista?
– Circule neste país, fale com as pessoas, escute-as... Os Gregos não são absolutamente racionais. Não raciocinam como os Europeus ocidentais. Não conhecemos a Renascença. Nossa história não forjou as consciências individuais. Nossa estrutura mental permaneceu de certa forma atrofiada, focalizada sobre problemas do momento. A Grécia se reencontrou, após sua independência, impelida à categoria dos Estados “modernos”, sem ter forjado real contrato social. Diz-se muitas vezes, mas é verdadeiro: o nó central de nossa sociedade continua a família em sentido amplo. Tudo passa pelo prisma das relações pessoais. Construir alguma coisa com outro, com o cidadão distante, não faz sentido. O clientelismo do Estado grego e dos partidos tem um fundamento muito cultural. Os Europeus fizeram a aposta de que o euro nos transformaria. Ora o que se produziu foi o contrário. O crédito barato permitia satisfazer as necessidades da família, dos clãs... As mentalidades enganaram as finanças.

As mentalidades podem mesmo assim evoluir!
– É preciso compreender com qual país tu estás lidando. Nossa modernização fica amarrada por nosso fundo cultural medieval que rejeita a novidade e a organização, que supostamente geram um futuro melhor. A relação com o tempo é essencial. Os Gregos não vivemos na mesma temporalidade que os Alemães que, contrariamente a nós, separam bem distintamente o passado, o presente e o futuro. Aqui, só conta o presente!
Ora, sem perspectiva, tudo se torna preto e branco. Tudo se polariza. As reformas europeias só são aceitáveis se tu te projetas no futuro. Os Gregos pensam, sem o saber ou sem o confessar, à moda do século XVIII. Pensam sempre em termos de lutas de classes. Em termos de bem e mal. Uma união nacional a serviço de um projeto de futuro é, a partir de então, muito difícil. Na medida em que a confiança não exista. O Grego não tem confiança nem em seu vizinho, nem em seu Estado. Ele acredita na sua família, no seu partido, naquele com o qual possui, de nascença ou vida social, uma ligação de parentesco. É o alicerce da catástrofe.

Fazer o inventário desses comportamentos é fácil. O desafio está em compreendê-los, de levá-los em conta no processo de reforma. Como fazê-lo?
– A União Europeia confunde geografia e cultura. O alargamento não significa que nós nos parecemos mais. A problemática grega, intimamente ligada à religião ortodoxa, é a de uma boa parte da Europa oriental, e sobretudo a da imensa Rússia. Os traços de caráter que evoco se acham de Chipre a Vladivostok! Nossa cristandade é a da Idade Média. Fazemos parte da civilização europeia, sem partilhar os valores culturais da Europa moderna. Sei que isso vai chocar, mas os valores europeus não penetraram sempre. Trinta anos de pertencimento à União Europeia é muito pouco. Não houve neste país nenhuma reforma da educação, somente mudanças superficiais. Tornaram o Estado grego compatível com a União Europeia. Não o transformaram.

A transformação de uma sociedade não é o papel de suas elites?
– O que fizeram as elites gregas desde trinta anos atrás? Ocuparam-se com sua integração na Europa. Entraram nas redes de poder, as universidades... Mas elas não procuraram modernizar a sociedade grega. Pior: nossas elites lisonjearam, na Grécia, o desinteresse pelo Estado. Os armadores, para tomar essa categoria modelo de empreendedores globalizados, são uma caricatura. Fazem seus negócios, se mantêm o mais possível longe do Estado grego, que não os tributa, e eles redistribuem, via suas fundações privadas. Como queres que os Gregos não reflitam em termos marxistas?

Não é culpa da Europa...
– É sim, porque os Europeus construíram seus planos de reformas sobre certezas estatísticas. Raciocinaram em termos de verdade absoluta: a austeridade orçamentária é a condição da viabilidade do Estado. Então se cortam as despesas públicas e se diminuem os salários de forma horizontal, em equidade. Mas que fazer se a população não se reconhece nas verdades absolutas dela? É o que se passa na Grécia. Os Alemães teriam feito melhor relendo Kant e se inspirando nas suas “ideias reguladoras” ². Releia Kant, Sra. Merkel! É preciso achar uma síntese entre o grande projeto europeu, as exigências econômicas e as tradições. Tentemos compreender porque Europa do Sul é afetada por esta crise. O peso do catolicismo muito tradicional – o que eu chamo de paleo-catolicismo – desta periferia meridional desempenha, como a ortodoxia na Grécia, um papel considerável. A grecidade não é folclore. Isto não tem nada de fútil. Tu falas aos Gregos da saúde de seu Estado, enquanto eles estão obsedados pela saúde da alma. Como te fazeres compreender?

Não se deve, às vezes, desrespeitar as tradições?
– Elas constituem o alicerce da Europa. Ignorá-las é impossível, suicida. Não se pode dissociar a rejeição das reformas na Grécia da nossa propensão ao niilismo. É o famoso “não temos mais nada a perder” que tu ouves por toda a parte. A teologia ortodoxa raciocina em termos de sentimentalismo. Nosso sentimentalismo é apocalítico. Ele favorece as grandes catástrofes, o impasse. A tróika [a missão de experts europeus encarregados de supervisionar as reformas] teria feito melhor cercando-se de antropólogos ou de filósofos, em vez de se fechar nos ministérios. A Europa não é homogênea. Aceitemo-lo. Questões tão essenciais como o valor de trabalho não são compartilhadas nos mesmos termos. Os Gregos – está aqui também o peso da ortodoxia – privilegiam a tradição ascética. Têm uma relação diferente com a eternidade. Nós não tivemos um Tomás de Aquino ³. O trabalho é um pouco um pecado. A razão, ignoramos.

E a democracia? A União Europeia negocia com governos eleitos. Cabe a eles mudar seu país...
– Não se pode parar nas eleições e crer que elas vão resolver tudo. A riqueza de Kant e de suas ideias reguladoras é exatamente a busca da síntese. Na Grécia, nossas necessidades financeiras excedem de longe a capacidade de nossos políticos de assumir suas responsabilidades. É preciso, portanto, forjar soluções adaptadas. Eis o problema estrutural! Esta crise não é senão um assunto de economistas. Por que os funcionários de Bruxelas não consultam jamais os filósofos, os antropólogos? Nós lhes teríamos explicado porque o processo das reformas fracassará, enquanto os Gregos pensarão que podem manter apenas uma parte delas: a que lhes convém...

Então os Europeus são ingênuos?
– Sim, são. Estou sempre atento às referências à Grécia antiga. Ora, quem são os grandes especialistas da Antiguidade e da Arqueologia? Europeus, não Gregos. Entre os Europeus, grandes pesquisadores alemães. Ora, o que eles deduziram? Que o berço deste país era Atenas de Sócrates, enquanto nós somos tanto quanto, ou mais, os filhos dos pais da Igreja ortodoxa. Vou ser provocador, mas a herança de Aristóteles ou de Platão, é um assunto alemão, não grego. Os Europeus moldaram nossa herança à sua imagem.

Que fazer, nessas condições? Largar a Grécia?
– Não, pelo contrário. A União Europeia deve ter clemência e repetir aos Gregos uma única mensagem antes e após o 17 de junho: tudo depende dela. Não se deve fechar a porta, pois a União precisa de seu flanco sul para ser a Europa. A sociedade europeia só pode existir se ela assumir e gerar suas contradições. De novo digo alto e bom som: essa crise não é econômica. Ela é cultural. É preciso falar de educação. É preciso colocar as questões existenciais e responder a elas. É preciso ir além do niilismo com o qual flerta uma parte cada vez maior da população grega. Essa crise deve servir de psicoterapia. Na Grécia, a tróika deve mudar interlocutores, reencontrar aqueles que escrevem, que fazem vibrar a alma grega. É preciso que a tróika provoque nosso "philótimo ", nosso ímpeto de honra. É preciso estimular nosso amor pela União Europeia. Paremos de desenrolar um tapete vermelho aos políticos medíocres. Eles apenas representam uma parte da solução. Pensam em termos de partidos. É preciso recriar formas, reinventar uma dinâmica. O que mata a Europa é a indiferença dos funcionários. A Grécia das tradições populares talvez alimente os clichês, mas é a Grécia real.





NOTAS   EXPLICATIVAS



¹    Um processo fictício inocentou em maio de 2012 o filósofo Sócrates, que os juízes atenienses, em 399 a.C., tinham obrigado a se envenenar com cicuta.

²  Kant (1724-1804) defende como “ideia reguladora” um “conceito tirado de noções e que ultrapassa a possibilidade da experiência”.
N.T. A Infopédia portuguesa define as “ideias reguladoras” de Kant da seguinte forma: “(...) Enquanto faculdade que opera a síntese suprema do conhecimento, a razão terá no entanto, também, de se orientar por princípios a priori, que Kant designa como ideias reguladoras (ou transcendentais): Deus, alma e mundo, entendidas doravante não como entidades transcendentes mas como valores teleológicos apontando para a necessidade de um aperfeiçoamento constante do conhecimento, visando a unidade crescente deste. (...)

³    Tomás de Aquino (1224-1274), dominicano, sustenta que a fé crista não é nem incompatível, nem contraditória com o exercício da razão.

  N.T.: No verbete philótimo (φιλότιμο, em grego), a Wikipedia explica que é um substantivo grego que traduz o "amor à honra". Contudo, philótimo é quase impossível de ser traduzido suficientemente, visto que descreve uma complexa gama de virtudes. Philótimo é considerado a mais elevada de todas as virtudes gregas que determina e regula como alguém deve comportar-se na sua família e nos grupos sociais. Refere-se especialmente a respeito e a fazer a coisa certa. (...) Philótimo para um Grego é essencialmente um estilo de vida.
Considera-se que as crianças possuem philótimo quando mostram amor incondicional e respeito para com seus pais, avós e amigos. Ou quando mostram  gratidão por um pequeno presente ou por um pequeno gesto de gentileza que alguém possa ter-lhes dispensado. (...)
Philótimo é o sentimento de não ser capaz de fazer o suficiente por sua família, pela sociedade e por sua comunidade; manifesta-se através de atos de generosidade e sacrifício sem esperar nada em troca. Philótimo é ter mais satisfação de dar do que de receber.
Cf. in https://en.wikipedia.org/wiki/Philotimo


The Washington Oxi Day Foundation, em sua autodeclarada missão de educar os responsáveis por decisões políticas nos Estados Unidos e o público em geral sobre o papel desempenhado pela Grécia  para o desfecho da II Guerra Mundial, chama o conceito de philótimo como “o segredo grego”. Cf. in https://www.youtube.com/watch?v=aXPJNDVfBgU

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

STÉLIOS RÁMFOS nasceu em Atenas em 1939, estudou Direito e Filosofia nas Universidades de Atenas e de França, respectivamente, seguiu uma carreira docente em Filosofia na Universidade de França VII de 1969-1974, retornou a Atenas, onde tem se dedicado a escrever livros, artigos e ensaios e a dar conferências.
Seus livros, bem como suas conferências constituem análise crítica dos filósofos clássicos e modernos e uma reflexão da sua repercussão sobre nossa vida contemporânea.
É desse filósofo que trago a entrevista antológica dada ao jornal francês O TEMPO, publicada em 13 de junho de 2012, inédita até hoje ao público brasileiro.
O Blog do Braga, mais uma vez, constrói uma ponte com a comunidade intelectual grega, acreditando estar contribuindo para uma maior integração com a fonte da cultura ocidental.

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...


Prezado Amigo,

Boa Tarde.

Muito obrigado pelo seu trabalho intelectual e de elevado nível cultural.
Bem-haja.

Bom final de semana.

Abraço.

Diamantino Bártolo

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Presidente) disse...

Grato pelo envio da preciosa matéria. Abraço para você e Rute. Fernando Teixeira

Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro (advogado, escritor e presidente da Academia Itaunense de Letras-AILE) disse...

Prezado Francisco,

Boa tarde, bom final de semana.

Obrigado pelo envio da entrevista.

Fraternal abraço.

Arnaldo

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

A cultura grega é extraordinária e conhecemos pouco de sua modernidade.
A sua contribuição é muito valiosa em nosso país.
Obrigado!

Benjamin Batista (presidente da Academia de Cultura da Bahia, showman e barítono de sucesso) disse...

Excelente!

Prof. Cupertino Santos (professor de história aposentado de uma escola municipal em Campinas) disse...

Prof. Braga!
Sempre cativantes os temas da Grécia que através de sua divulgação - quase que única - são trazidos ao público brasileiro.
Nesse caso, a entrevista alinhava diversas questões como a discutida problemática do "caráter nacional" como fator determinante na realidade social. Há muitos anos li a obra do prof. Dante Moreira Leite que me impressiona muito até hoje. Também, outra questão; imagino que o que se passa com a Grécia na visão desse filósofo pode ser generalizado, embora caso a caso, para a totalidade dos países que estão fora do "eixo central" do sistema capitalista que historicamente são afetados pelas contradições de suas recorrentes crises.
Grato.
Abraço.

Prof. José Luiz Celeste (ex-professor da EAESP-FGV e tradutor) disse...

Prezado Professor:
Sinto uma espécie de nostalgia qdo leio essa entrevista de Ramfos. Primeiro, porque me é dificil entender tanta dificuldade em superar uma crise q parece ínfima comparada com as confrontações q Atenas Antiga precisou enfrentar no seu embate com o império persa. Mas, aí as colocações de Ramfos sao esclarecedoras. A Grécia Antiga nao é a Grécia hodierna. O territorio é o mesmo, a lingua é a mesma, com transformaçoes, claro, até a moeda (drakma) foi a mesma até recentemente. Mas o povo tem DNA diferente, religião diferente. É outro povo. Aí apareceu a insinuante União Europeia-UE, poderosa, persuasiva, trilionária, e a Grécia deixou-se convencer. Foi agregada. Ofereceram riquezas irrecusáveis. A Grécia aceitou. É compreensível.
O escritor português, Valter Hugo Mãe, disse mais ou menos a mesma coisa; q os portugueses tomaram dinheiro emprestado, q gastaram em veleidades e q agora se veem às voltas com as cobranças da Sra Merkel. Ecco!

Acho q têm q pagar e pronto: por que não dão uma ou duas ilhas do Egeu em comodato, durante 20 anos, e pronto?

No fundo, pelo discurso de Ramfos, existe um amor mal resolvido entre as partes. Nem a UE quer abandonar a Grécia, nem tampouco a Grécia quer cortar as relações. Espera um perdao da dívida...

Dra. Merania de Oliveira (jornalista e viúva do ex-presidente da Academia Marianense de Letras, Dr. Roque Camêllo) disse...

Dr. Francisco,

Paz, saúde e alegria!

Agradeço-lhe e o parabenizo pela tradução da entrevista do filósofo grego STÉLIOS RÁMFOS e pelo envio do linque para lermos o que ele nos fala, postada no seu blog.

O filósofo foi corajoso por nos mostrar de maneira sutil como o grego não é muito chegado ao trabalho e com isto os estudiosos se tornam também poucos. Será que estou falando bobagem?

Quando visitamos o interior da Grécia, o guia chamou-nos atenção, pelo grande número de pessoas, assentadas nas portas de suas residência, nos vilarejos. Isto durante a semana, horário de trabalho.

Li e reli a entrevista. Vou enviá-la para minha amiga Laene que tem um grupo de amigas que discute filosofia. Vocês a conheceram em Mariana, no dia do sarau.

Esta entrevista veio na hora certa. Estou lendo um livro que você já deve ter lido, “A Civilização do Espetáculo”, de autoria de Mário Vargas Llosa. Acredito que o filósofo grego Stélios Rámfos deve até conhecê-lo pessoalmente. Llosa faz uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Estou gostando muito desta leitura.

Sinto muito meu querido Roque não estar aqui para discutirmos sobre o livro que hora leio e a entrevista que você traduziu tão bem. Tínhamos o hábito de lermos o mesmo livro, na mesma época. Eu sempre saí ganhando com as sábias explicações do Roque, tão lúcidas que me faziam refletir e muito me ajudaram.

Abraços extensivos à querida Rute e muito obrigada

Merania