domingo, 4 de agosto de 2019

FESTIVAL FERNAND JOUTEUX NA ESCOLA NACIONAL DE MÚSICA EM 22/12/1943



Por Francisco José dos Santos Braga

Efígie de Fernand Jouteux (1866-1956), por autor desconhecido, 
provavelmente desenhada em Paris no 2º período francês (entre 1921-1925)





O JORNAL, órgão dos "Diários Associados", anunciava, uma semana antes da sua execução, um Festival FERNAND JOUTEUX. Em que consistiu esse festival? É o que veremos neste post.

I

Atraiu-nos a vista a seguinte matéria, enquanto consultávamos a hemeroteca digital de O JORNAL, com o seguinte título: Canudos, tema de uma opera em que Antonio Conselheiro é a figura central, Ano XXV, edição nº 7.519 de 15/12/1943, p. 3.

CANUDOS, TEMA DE UMA ÓPERA EM QUE ANTÔNIO CONSELHEIRO É A FIGURA CENTRAL

Um professor francês, discípulo de Massenet, escreveu a peça, inspirado na obra de Euclides da Cunha — Quase meio século de Brasil — Estudos no ambiente sertanejo — Foch e uma pequena ilha do oceano Pacífico — Através de 15 Estados brasileiros

Penetrou o repórter pela infindável escada do velho casarão da rua do Russel, onde se alojara o mais querido discípulo de Massenet e um dos mais curiosos viajantes do interior brasileiro. O quadro é de uma simplicidade sugestiva. Aves, plantas, músicas. Rabiscos literários emprestam ao ambiente um tom agradável de naturalidade.
O professor Fernand Jouteux recebe o jornalista com a efusão sincera da alma francesa. Poderíamos, se tempo houvesse e não escasseasse o papel, deixar correr a pena, gravando aquele borbotão de assuntos que jorravam em força como se desejassem povoar páginas inteiras de um romance pitoresco.

VOCAÇÃO E DESTINO

A história desse ágil e sempre jovem mestre de oitenta anos começa no século passado. Criança, em carta aos pais a propósito de vocação e destino, Fernand Jouteux escreve apenas duas palavras: música e Brasil. No primeiro caminho vai ao conservatório, estuda, aproxima-se dos mestres e torna-se um deles. Ganha fama. Escreve óperas, dirige nos grandes teatros de Paris, ensina em numerosas cidades. O destino, ele o cumpre antes mesmo que o século vinte alvorecesse. Em 1894 dirige-se ao Brasil. Fôra a Amazônia, com a sua grandiosidade e os seus encantos, o que mais o seduzira. E o professor Jouteux fixa sob os céus tropicais do extremo norte seu primeiro contacto com o Novo Mundo.

NO NORDESTE BRASILEIRO

Mas é ele um irrequieto. Não se detém em Manaus. Aspirava conhecer o Brasil. Vive o ambiente dinâmico onde se escrevia a história. De um ligeiro passeio à Europa deixa-se fixar em Pernambuco. Compra uma fazenda em Garanhuns. Vive na intimidade dos sertanejos, põe um facão à cinta e enverga as roupas típicas do homem do campo. Nas horas de folga, o professor Fernand Jouteux estuda a crônica dos nossos acontecimentos. Desfilam diante de suas observações os principais fatos da história. Para um pouco em Canudos. Interna-se nas páginas fascinantes de Euclides da Cunha, conhece os detalhes da campanha e os ângulos mais salientes da figura de Antônio Conselheiro. Nesse instante, o artista concebe a ideia da obra. Levará para o palco tudo aquilo que Canudos encerra como epopeia, tragédia, heroismo. Inicia-se aí a história da ópera "Os Sertões" ¹.

CONSELHEIRO, HERÓI TEATRAL

— Percorri quinze Estados, durante muitos anos — declara ao repórter o professor Fernand Jouteux — para conhecer bem o ambiente do interior do Brasil. Acreditei que não era possível escrever sobre Canudos sem ter uma ideia exata das realidades dos nossos sertões, sua maneira de vida, correntes populares, todos os fatores que pudessem estar relacionados com aquele marcante acontecimento. Concluiu meu trabalho. A ópera está ponta, há vinte anos, aliás, e, desde este tempo, tenho procurado meios para realizar a sua montagem. No próximo dia 22 no concerto que darei no Municipal, incluirei vários trechos seus, numa demonstração às autoridades, aos artistas e aos críticos.
Acredito que a peça agradará. Pelo menos há muito movimento. Não darei tempo para ninguém dormir. Antônio Conselheiro é um excelente herói teatral. Na ópera ele aparecerá como um dramático, profeta e militar. Como está tudo organizado, permitem-se grandes feitos cênicos. Quero, assim, restabelecer as tradições do teatro antigo, onde a ação é predominante.
O professor Fernand Jouteux espera apresentar "Os Sertões" ao público brasileiro no próximo ano. Serão necessários três meses de ensaio e um detalhado serviço de organização. O libreto é de sua autoria e se inspira todo na obra euclidiana e no trabalho do marechal Dantas Barreto, com quem manteve relações no Recife.
Depois de uma animada palestra sobre a teatralização do episódio de Canudos, a palestra envereda para outros tópicos. Abrimos o livro de notas do professor Jouteux. Com a própria letra de Massenet está ali uma carta ao artista, em que o autor de "Manon" exprime a sua admiração pelo talento do antigo discípulo. Leiamos suas próprias palavras: "Meu bom amigo. É bem longe de Paris que tomo conhecimento do seu grande sucesso. Estou contente. Em meio de tantas felicitações que lhe foram endereçadas foi desvanecedor para mim ter você pensado no seu velho amigo e em "Safo". Aplaudi-lhe de todo o coração e lhe envio agora um abraço, dizendo, ainda: bravo. Massenet." No fim do papel está este post scriptum: "Você merecia este triunfo. Lembro-me dos seus trabalhos e tinha a certeza do que você era capaz de produzir."

SOBRINHA DE FOCH E UM REI NA FAMÍLIA

A palestra deslocava-se de temas e também os circunstantes de lugar. Íamos deixar a casa do professor Jouteux. Sobre o muro que dá para a baía desenrolam-se os últimos bosquejos da prosa. O velho mestre de música narra outros detalhes de sua vida pitoresca. Fala da guerra e de sua confiança inabalável na ressurreição da França. Lembra os momentos críticos da grande nação e destaca seus grandes generais. Foch entra em cena. Mas, o marechal vencedor de tantas batalhas não era, no Brasil, um estranho. A senhora do professor Fernand Jouteux é sobrinha do marechal e muito se orgulha dos seus feitos.
— Aliás, — diz o professor Jouteux, — temos um rei na família, que impera sobre uma pequenina ilha do Pacífico. Missionário no Oriente, meu parente, e Mons. Baudichon ² tornou-se, por aclamação do nativos, o rei da ilha de Tuamotu ³, possessão que trouxe para o império francês.
E, assim, estava concluída a entrevista com o mestre, a quem não passaram desapercebidos os lances dramáticos de Canudos, que ele evocará na movimentada ópera que escreveu.

Fonte: O JORNAL, Ano XXV, edição nº 7.519 de 15/12/1943, p. 3.

O JORNAL: edição de 15/12/1943. 



NOTAS EXPLICATIVAS


¹  Observa-se, por parte do compositor francês, uma indefinição quanto ao título da ópera que passa por diversos designações: inicialmente, Antônio Conselheiro, o filho do homem; depois, Canudos; aqui, Os Sertões; e, finalmente, parece ter-se fixado em O Sertão.

Original do libreto da ópera-Crédito: IHG/Tiradentes

Versão em português editada em 1955-Crédito: IHG/ Tiradentes




































²  Trata-se de Joseph Baudichon, com o nome clerical de François de Paul Baudichon, nascido em 12 de setembro de 1812 em Sainte-Maure de Touraine (Indre et Loire) e falecido em 11 de junho de 1882 em Tours.

³  Certamente uma das ilhas Marquesas na Polinésia Francesa. O mais correto seria tratar Tuamotu como arquipélago, porque se compõe de quase 80 ilhas e atóis.
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Arquip%C3%A9lago_de_Tuamotu

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Nesses dias que antecediam a apresentação do Festival Fernand Jouteux, tivemos a sorte de depararmo-nos com um texto entusiástico em favor do compositor francês, da autoria de Georges Bernanos que encontramos em O JORNAL, edição nº 7524 de 21/12/1943, p. 4. Ei-lo:

II

FERNAND JOUTEUX
Por Georges Bernanos
(Copyright dos "Diários Associados")

Publicou O JORNAL, um destes dias, com o maestro Fernand Jouteux, uma entrevista cheia de inteligência, de simpatia e delicada e generosa compreensão, que muito honra ao jornalista que a escreveu. Por maior que seja, porém, a habilidade de um jornalista, não poderá ele transmitir em algumas linhas, aos seus leitores, a alta lição de uma vida inteira de homem e de artista. E como o assunto esteja longe de se ter esgotado, permito-me dizer, por meu turno, o que penso sobre esse músico admirável que o público vai ouvir amanhã, 22 do corrente, numa seleção de obras em que se destacam trechos de sua ópera "O Sertão", inspirada no livro de Euclides da Cunha.
Nestes três anos em que tenho tido a honra de colaborar nos "Diários Associados", venho falando aos meus leitores como a amigos. Nem sempre, é certo, estamos de acordo em todos os pontos, mas nos estimamos mutuamente e espero ter-lhes merecido a confiança. E se algum crédito possuo junto deles, convoco-os hoje para dizer a cada um: "Mesmo no caso em que não sejais amador apaixonado de recitais ou de concertos — dizia Berlioz que a grande música se compreende com o coração — não deixeis, não deixeis por coisa alguma, de comparecer ao encontro que meu país vos marcou para amanhã, à noite, no Salão Leopoldo Miguez, da Escola Nacional de Música. É meu país, com efeito, que vos convida, pois o homem idoso, de perto de oitenta anos, que vereis no palco, incomparável de energia e de fé, pertence a um tipo humano absolutamente caracterizado e tão especificamente francês quanto os grandes vinhos ilustres das nossas regiões champanhense, bordalesa ou borgonhense.
Não cometo a tolice de pensar sejamos os únicos capazes de fornecer ao mundo um tipo de superior humanidade. Longe disso. Digo simplesmente que o nosso, desaparecendo, falsearia, talvez irreparavelmente, o curso da história e o equilíbrio sempre instável entre as Raças e as Nações. À força brutal, elementar das Raças, à força do Dinheiro, não menos brutal e feroz que a outra, a humanidade civilizada opôs, ainda, seus tipos nacionais, formados através dos séculos, ao mesmo tempo possantes e delicados, que a Barbaria Moderna não pode senão esmagar, dada a impossibilidade de escravizá-los. Eles encarnam a ordem, a permanência, a segurança do mundo em face das forças cegas desencadeadas pela violência e pela corrupção, mas que nem a corrupção nem a violência poderiam encadear de novo.
Quando sairdes, meu caro leitor, da sala Leopoldo Miguez, na noite de amanhã, cheios ainda os ouvidos de uma esplêndida música, simultaneamente trágica e terna, sábia e simples, tão magnificamente equilibrada que parece feita sem esforço — mas em verdade ao preço de que profunda experiência dos recursos da arte! — de sublimidade jamais afetada, de alegria jamais forçada, de ironia jamais amarga, pensareis sem dúvida, uma vez mais, que a especulação universal, com toda a sua força, sua audácia, seu cinismo e sua publicidade colossal, não saberia — para retomar minha comparação — lograr fazer em alguns miseráveis anos aquilo que consumiu tantos séculos: um homem nobre, uma arte nobre, um nobre vinho.
Considero como um dia feliz aquele em que, pela primeira vez, de passagem por Barbacena, Fernand Jouteux tomou o caminho da Cruz das Almas ¹. Com uma curiosidade distraída, indiferente, eu via aproximar-se esse velho de passo apressado, descoberta a cabeça sob sol escaldante. Mas assim que o meu olhar cruzou o seu, a um tempo malicioso e ingênuo, reconheci o signo que não enganaria ninguém, o signo sagrado. Era um olhar puro, no sentido exato da palavra, pois não era com certeza nem ignorante, nem crédulo e permanecia puro graças à vontade inflexível de não pousar, no decurso da vida, a não ser no que fosse puro como ele. Oh! certo, uma vez ainda, há por toda a parte homens livres, graças a Deus. Não desses que se dizem livres porque a Democracia assim os classifica, mas que são realmente livres e o seriam não importa onde e como, na riqueza ou na miséria, na saúde ou na doença, que o seriam mesmo nas cadeias se pudessem viver sob um tirano. Esses homens, repito, encontram-se por toda a parte. Talvez, portanto, eles fossem, outrora, no meu país, mais simplesmente, mas naturalmente, mais ingenuamente livres que em outros lugares, sem nada de pretensioso, de afetado, de rebuscado, de atormentado; livres, quase contra a sua vontade, e sem o saber, porque sua liberdade tinha o seu princípio baseado numa espécie de liberdade interior, a qual eles não sentiam absolutamente necessidade de experimentar a todo momento, do mesmo modo que um verdadeiro cristão não põe à prova a sua fé a cada instante. Julgá-los-iam, de bom grado, conformistas, porque se esforçam para não atrair inutilmente a atenção de pessoa alguma. Dir-se-iam conformistas, e eles o eram, com efeito, nas circunstâncias fúteis e familiares da vida. Eram conformistas como eram pacifistas, isto é, eram-no "até certo ponto", e, ultrapassado esse ponto, nada os poderia fazer retroceder senão a certeza — ou a ilusão — de ter executado sua tarefa, de poder reingressar sem remorsos ao Conformismo ou à Paz.
Quando Fernand Jouteux partiu para o Brasil, eu tinha a idade de um menino e ele era homem feito, um jovem artista festejado por todos, tendo já alcançado grande sucesso com o seu célebre "Oratório de San Martin de Tours" ²  que entusiasmou o mestre Massenet, de quem ele era discípulo predileto.
Conheci, na minha mocidade, certo número de franceses semelhante a ele, seus contemporâneos ou seus precursores; imagino, assim, muito bem, esse musicista já ilustre, filho de altos funcionários e esposo de uma jovem descendente de uma família de militares e magistrados, realizando bruscamente, a milhares de quilômetros de sua cidade natal, um sonho de criança, sacrificando, de um só golpe, a esse sonho de criança, os proventos de sua carreira e conforto de sua idade madura, a segurança de sua velhice. Censura-se, com frequência, aos franceses sua ignorância da geografia. Eles a ignoram muitas vezes, é certo. Pelo menos conhecem-na pouco, mas sonham bastante com ela. Há para eles países definitivos, como há esse país ainda mais misterioso que se chama o Sobrenatural. Não falam a seu respeito e preferem nele pensar, solitários, em segredo. Por volta de 1890, como aliás hoje, não se viam nas igrejas, como na Espanha, maníacos batendo com a cabeça no chão, estendendo os braços, multiplicar, convulsos, os sinais da cruz, ou chupar os dedos dos pés das estátuas, como se fossem de açúcar-candy... Estes não eram menos o nosso povo, que dava mais missionários à igreja e mais ouro à Propagação da Fé. Milhares de jovens franceses, que em nada se distinguiam de seus camaradas, que participavam alegremente dos seus jogos, e se acreditaria apaixonados por todas as alegrias da vida, deixaram um dia, tranquilamente, suas famílias e seus amigos, para irem pregar o evangelho aos pagãos, morrer de febre ou na mão do carrasco. É claro que Fernand Jouteux pertence a essa espécie de homem. Estou certo de que ele partiu, há mais de quarenta anos, para as ásperas e então muitas vezes mortais regiões do Amazonas, tão simplesmente como teria tomado o ônibus do Montrouge, ou o "tramway" de Auteuil. E também simplesmente sua mulher o seguiu, segue-o sempre, partilhando dos seus trabalhos, seus sonhos, sua pobreza, seu gênio...
Amigos da França, olhai, quarta-feira, esse homem de pé diante do palco como um capitão de navio no seu posto de comando. E é um capitão do mar, com efeito, um velho navegante do oceano dos sonhos, do oceano sem limites. Quando ele erguer sua batuta, esquecereis sua idade, seus cabelos brancos e vereis que a vida não lhe pesou muito sobre os ombros, porque ele não permitiu que ela o dominasse, porque sempre a enfrentou, com os seus olhos claros. Sonho e Lucidez. Sonho e Vontade. Sonho e Razão, eis o signo de nosso povo, a sagração de sua grandeza. 

Fonte: O JORNAL, edição nº 7524 de 21/12/1943, p. 4.



NOTAS EXPLICATIVAS

¹  "(...) O compositor e maestro francês, Fernand Jouteux, autor da ópera “Os Sertões” passa várias vezes por Barbacena, antes de recolher-se em Tiradentes. Georges Bernanos escolhe morar em Barbacena pela sonoridade do nome da fazenda que Virgílio de Melo Franco lhe dá por empréstimo. É o “Caminho da Cruz das Almas”. Aqui, o fazendeiro Bernanos, católico e crítico feroz do nazismo, recebe em sua casinha bucólica, desde jovens escritores como Paulo Mendes Campos, Hélio Pelegrino e outros, até o consagrado e exilado Stefan Zweig, que pouco depois se suicida em Petrópolis. Na trilha de Bernanos, vem o pintor Emeric Marcier. (...) A casa de Georges Bernanos, desde 1968 está mantida para registrar a passagem do escritor francês que viveu em Barbacena por cinco anos – de 1940 a 1945."
Fonte: Conheça um pouco da história nos 224 anos de Barbacena (1791-2015) 

²  Em 1897 Fernand Jouteux compôs seu maior sucesso na França: o oratório Bellator Domini (Guerreiro de Deus), para as festas do 15º centenário de morte de São Martinho de Tours, na Catedral de Tours. Para o jornal O Imparcial, do Rio de Janeiro, em 4 de agosto de 1920 Jouteux declarou: “O primeiro trabalho que fiz foi um oratório em duas partes, além de um prólogo e um epílogo, intitulado Bellator Domini, em 1897, executado em Tours por uma grande orquestra, sob minha regência. Foi essa minha estreia. (...)"

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III

Anúncio, em moldura preta, do Festival FERNAND JOUTEUX em O JORNAL

Fonte: O JORNAL, edição nº 7524 de 21/12/1943, p. 10.

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Vejamos agora a cobertura que o CORREIO DA MANHÃ fez do Festival Fernad Jouteux, na semana que anteceu a sua apresentação. Da mesma forma, servimo-nos da hemeroteca digital do referido jornal.

I

Na coluna Correio Musical, na edição 15070 de 17/12/1943, p. 11, aparece o seguinte texto infelizmente truncado:
"(...)
MAESTRO FERNAND JOUTEUX
— O nosso público já conhece e aprecia o maestro Fernand Jouteux. Mestre compositor francês, discípulo de Massenet, e hoje mais brasiliense que muitos dos nossos patrícios.
Os concertos do maestro Jouteux têm sido sempre recebidos com entusiasmo e verdadeiro interesse.
O grande escritor francês Bernanos, referindo-se ao velho mestre, escreve: (...)"

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, coluna Correio Musical, na edição 15070 de 17/12/1943, p. 11.

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II

Na coluna Correio Musical, na edição 15073 de 21/12/1943, lê-se à p. 5:

"O MAESTRO FERNAND JOUTEUX, O HOMEM E A OBRA

Não pode haver figura mais interessante do que a desse velho mestre francês, músico de talento e viajante inveterado, que escolheu nosso país para pouso derradeiro.
Fernand Jouteux já está no Brasil há meio século (menos um ano), tendo-o percorrido incessantemente em estudos de duplo caráter, para conhecer a música e o povo. E, sobretudo, para ter ideia do ambiente.
De tudo isso resultou que esse discípulo de Massenet, abandonando a delicadeza um pouco feminina da arte do autor da "Manon", nos desse uma obra dramática de grande envergadura intitulada "O Sertão", inspirada no livro magistral de Euclydes da Cunha.
Jouteux é hoje um pioneiro no campo da música brasiliense, como — por assim dizer — um novo bandeirante, neste século da aviação, para grande parte dos nossos Estados que ele visitou e conhece melhor que a maioria dos nossos patrícios.
Seu concerto que se vai realizar a 22 do corrente, à noite, no salão da Escola Nacional de Música, sob o patrocínio do prefeito Henrique Dodsworth e de altas personalidades da nossa sociedade, será um acontecimento.
Antônio Conselheiro, para Jouteux, é um herói, um profeta, uma espécie de caudilho manqué.
Transportando-o para a cena ele quis assim restabelecer as tradições do teatro antigo, onde a ação é predominante.
Há grande movimentação de massas na sua ópera. E se não fôsse a situação tão antagônica do enredo, diríamos que ele deveria ter aproveitado certos aspectos do misticismo caboclo e de similitudes ocasionais, para tratá-la à moda dos grandes mestres russos, com a interferência obrigatória dos coros, na ação, representando as multidões.
Ninguém compreendeu tão bem a alma dos nossos homens do sertão. O feitio e o caráter do matuto, do caipira, do caboclo, do próprio índio.
Resulta de tudo isso o perfeito absurdo de termos um homem culto, ultracivilizado, de espírito alerta e sutil, inverossimilmente identificado com essa gente primitiva e patriarcal...
Assim é Jouteux. E isso lhe faz grande honra.
Da sua obra escrita no Brasil destacam-se: "A Sinfonia Brasiliense", "Os Cantos Brasilienses", premiados pelo Salon des Musiciens Français; a cena dramática: "Le Retour du Marin", também premiada pela Société des Compositeurs de Paris; e, além de outras de menor importância, a ópera "O Sertão".
O programa que será executado amanhã às 9 horas da noite, no salão da Escola Nacional de Música, compreende as seguintes obras: "Árias Sudanesas"; "Volta à terra natal", para clarinete solo e orquestra; poema sinfônico "Impressões de meu jardim"; "Dança Chinesa", sob a escala chinesa, e por fim, alguns trechos da ópera em 4 atos "O Sertão": "Introdução e Ária das Palmeiras", soprano Heloysa de Albuquerque e orquestra; "Ária da Torrente" (ato II) Antônio Conselheiro — barítono Guilherme Damiano e orquestra; "Dueto do Calvário"; "Bailado" — "Valsa Nostálgica", "Sarabanda dos Punhais", "Baiano", orquestra.
O concerto terminará com a "Marcha Solene dos Aliados", em homenagem aos chefes das Nações Aliadas.
Temos, pois, a reunião da arte com o patriotismo, virtude nativa que Fernand Jouteux não poderia ter esquecido. - JIC"

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, coluna Correio Musical, edição 15073 de 21/12/1943, p. 5.

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III

Na coluna Correio Musical, na edição 15076 de 24/12/1943, lê-se à p. 6:

"FESTIVAL FERNAND JOUTEUX

Se não foi propriamente uma noite de glórias, foi de grande satisfação para o ilustre músico e compositor Fernand Jouteux, por ter sido tão apreciado por um público de escol, ante-ontem, no salão da Escola Nacional de Música.
O programa, composto com grande liberalidade, acusou desde logo os diferentes ambientes em que se inspirou o autor das peças apresentadas: "Árias Sudanesas", "Volta à terra natal" (Chinon, France), "Impressões de Meu Jardim" (em Garanhuns, Pernambuco), "Dança Chinesa", etc.
De tudo isso resulta a apresentação de quadros musicais coloridos e pitorescos e à prova segura de um métier que nunca o abandona, nem mesmo nas pequenas minúcias da arte.
O concerto teve como fecho patriótico, a "Marcha Solene dos Aliados", em homenagem aos grandes chefes das Nações Aliadas, etc. Mas estávamos quase propondo ao maestro Fernand Jouteux que a substituísse pela "Apoteose da Pá", de seu Jardim de Garanhuns, cuja allure vibrante e guerreira exprime com muito mais eloquência os sentimentos de um ardoroso patriota.
A parte mais importante do programa era constituída por alguns trechos da ópera "O Sertão", inspirado no episódio histórico de Canudos, e na qual Fernand Jouteux, dando expansão ao seu lirismo, faz obra verdadeiramente teatral.
A "Introdução" possui lindo caráter pastoral, com belo desenvolvimento do tema principal; é a "Ária das Palmeiras" — excelentemente interpretada pela exímia cantora patrícia Heloysa de Albuquerque — é sentimental e, às vezes, dramática. A voz possante e de magnífico timbre da artista lhe dá perfeito realce.
Na "Ária da Torrente", Guilherme Damiano (pela primeira vez metido na pele de Antônio Conselheiro) se esforça por não ser levado pela correnteza, vencendo afinal o turbilhão das águas...
O "Duo do Calvário" entre soprano e barítono, foi melhor, dando-nos amostra mais segura do valor do trabalho.
Il y a en tout cela un grand élan lyrique.
Os "Bailados", divididos num tríptico interessante, apresentam cada qual relação peculiar: o primeiro nostálgico, na forma de uma valsa; o segundo, delirante e trêfego, pois que o caracteriza a sarabanda dos punhais jagunços; o terceiro, humorístico e crismado bahiano, excede-se um pouco talvez na feição extremamente popularesca, o que não impediu de ser bisado...
Em extra foi executado um quinteto para cordas, intitulado "Melodia", do tenente Adelgício Corrêa de Almeida, obra bem trabalhada e que teve excelente interpretação.
O maestro Fernand Jouteux e os seus auxiliares foram muito justamente aplaudidos pelo auditório, composto dos mais finos elementos da nossa sociedade.
A presença do prefeito Henrique Dodsworth e do embaixador britânico Sir Noel Charles, tão amigo dos artistas, ainda mais realçou o festival.
Fernand Jouteux é um artista consciencioso, dotado de belo talento. Malgrado tenha passado muitos anos da sua vida em meios relativamente atrasados, o seu espírito alerta e cheio de mocidade não se deixou vencer pelo ambiente.
Só poderemos dar uma opinião mais completa sobre "O Sertão" depois de ouvirmos a execução integral da ópera.
Os trechos apresentados são deveras curiosos e bem arquitetados.
É uma obra que honra o seu autor. - JIC"

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, coluna Correio Musical, edição 15076 de 24/12/1943, p. 6.


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Além dos dois periódicos já mencionados — O Jornal e Correio da Manhã —, o jornal Diário da Noite juntou-se a seus parceiros cariocas para também prestar homenagem ao idoso compositor francês pelo seu afã de produzir sua obra com a utilização de motivos que relevam nossas grandezas tropicais. Assim, foi encarregado o escritor Austregésilo de Athayde de fazer-lhe justiça através de pequena peça laudatória, em moldura preta, inserida na p. 2 do jornal no dia do concerto (22/12/1942):

FERNAND JOUTEUX

Fernand Jouteux, discípulo amado de Massenet, grande expressão do gênio francês, vive há cerca de cinqüenta anos pelo interior do Brasil.
Sonhou com as grandezas tropicais. Sofreu a sedução das flores virgens, da existência livre no mundo perdido.
Quem sabe tudo lhe veio da leitura de "A Jangada" e Júlio Verne inspirou-lhe a filosofia do desprendimento das coisas supérfluas, em benefício de um contacto prolongado com a velha natureza da desordem amazônica. Na terra nova, formando-se como nos dias molhados do Gênesis.

* * *

Compenetrou-se do solo brasileiro e em tudo que compôs aqui há muito mais dos influxos telúricos do que da formação estética recebida na França. Mas não perdeu a personalidade, o ímpeto desinteressado do verdadeiro artista, o desprezo pelo material.
Fernand Jouteux, a quem Georges Bernanos chama "um velho navegante do oceano dos sonhos", aí está jovem aos oitenta anos, fiel aos antigos ideais da arte, independente de toda prisão, existindo não como um sobrevivente dos tempos, mas como um homem atual, moderno no sentido de sobrepor a tudo a condição da liberdade. Homem francês.

* * *

Ouviremos uma seleção das suas obras, entre as quais a partitura da ópera "Sertão", vinda da guerra de Canudos, das descrições euclidianas, nas quais perpassam os centauros sertanejos e a boiada estoura e o vulto silencioso do grande fanático projeta sua sombra mística.
Fernand Jouteux apreendeu todo o drama com a alma de um brasileiro, o que quer dizer que soube comunicar-lhe a intensidade real, sem perder a medida, o senso de beleza, a graça típica do espírito criador da França.
As duas pátrias uniram-se hipostaticamente no seu esforço heróico. Vendo-o alto, musculoso, sobre a floresta de instrumentos, a batuta arremessada, pensamos que o gênio dominou as débeis condições da natureza humana e que a arte lhe deu o que a sorte negou a Juan Ponce de León "par le diable tenté". Deu-lhe o domínio da perpétua juventude.

Austregésilo de ATHAYDE

Fonte: DIÁRIO DA NOITE, Ano XV, edição nº 3.961 de 22/12/1943, p. 2.
Linkhttp://memoria.bn.br/pdf/221961/per221961_1943_03961.pdf

DIÁRIO DA NOITE: edição de 22/12/1943.

III. AGRADECIMENTO 



À minha esposa Rute Pardini Braga pelas fotos que formatou e editou para os fins desta matéria.








10 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Com este post concluo uma série de 9 matérias sobre o compositor francês FERNAND JOUTEUX (1866-1956), com as quais o Blog do Braga homenageia esse Maestro que viveu entre nós de 1937 a 1952, discípulo predileto de Jules Massenet, este último, autor das óperas Manon e Thaïs, entre muitas outras.
No presente post apreciaremos o Festival FERNAND JOUTEUX, levado ao palco da Escola Nacional de Música, no dia 22 de dezembro de 1943 e patrocinado pelo prefeito da Capital Federal, Henrique Dodsworth.
Dois jornais cariocas atraíram nossa maior atenção: O JORNAL e CORREIO DA MANHÃ, cujo acesso fizemos através da sua hemeroteca digital durante o período semanal anterior ao concerto e mesmo após o evento, em busca de alguma abalizada crítica musical.

https://bragamusician.blogspot.com/2019/08/festival-fernand-jouteux-na-escola.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Rute Pardini (cantora lírica e escritora) disse...

Obrigada meu amor vou ler com carinho.
Seu trabalho está lindíssimo.

Prof. José Lourenço Parreira (capitão do Exército, professor de música, violinista, maestro, historiador e escritor, além de redator do "Evangelho Quotidiano") disse...

Caríssimo amigo Braga, é sua característica erudita o surpreender-me, sempre, com textos e pesquisas enriquecedoras.
Esta sobre o grande Fernand Jouteux é uma delas!
Muitíssimo grato! Aplausos ao amigo e à querida esposa, Rute Pardini! Sursum Corda!

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Muito bom!

Unknown disse...

Notável confrade Braga.
Enaltecido por esse seu texto, renascendo a história da música, por meio do maestro quase esquecido.
Parabéns pelo texto e sucesso!

Passos de Carvalho
Lavras - MG

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, advogado, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...


Grato pelo envio, amigo Braga. Saudação amiga para você e Rute. Fernando Teixeira

Pe. Sílvio Firmo do Nascimento (Professor e Editor da Revista Saberes Interdisciplinares) disse...

Muito bom!

Pe. José Raimundo Batista Bechelaine (filósofo e professor da FUNEDI/UEMG e membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Caro confrade,
Agradeço o envio das suas postagens, que sempre aprecio e me enriquecem. Admiro muito a França, que considero minha terceira pátria e o francês, minha segunda língua. Porém eu não tinha conhecimento do compositor Fernand Jouteux.
Boa tarde, um abraço.
J. Raimundo B. Bechelaine

Prof. Dr. Paulo Castagna (docente do Instituto de Artes da UNESP, colaborador do Museu da Música de Mariana desde 2001 e membro do Conselho Consultiro da F-CEREM desde 2012) disse...

Caro Braga,

Excelente sua divulgação dos trabalhos de Fernand Jouteux, com isso o nome desse compositor passa a ser mais conhecido, proporcionando um importante apoio na divulgação de sua música. Espero que nos próximos anos você abra novas séries de postagens sobre Jouteux, ou mesmo pesquisas específicas que lancem novos olhares sobre esse interessante personagem da história musical brasileira.

Abraço,

Paulo Castagna

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Agradecemos pelo envio.

Cordial abraço,

Do amigo Mario.