segunda-feira, 18 de maio de 2020

EVIDÊNCIA SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MÉNAGE E SUAS DUAS DISCÍPULAS PREDILETAS


Por Francisco José dos Santos Braga






I. INTRODUÇÃO


Quando eu publiquei uma pesquisa literária sobre Gilles Ménage, autor da famosa História das Mulheres Filósofas (1690) e suas discípulas, as notáveis "preciosas" do século XVII na França, com o título "Preciosas sim, mas nem um pouco ridículas", um amigo carioca brincalhão fez o seguinte comentário sagaz e também malicioso: "Tem alguma relação com a expressão 'ménage à trois'?", referindo-se especialmente à relação entre o mestre e duas alunas prediletas, Madame de Sévigné e Madame de La Fayette.

Mme de Sévigné
Mme de La Fayette
Gilles Ménage













Está claro que ménage significa aqui moradia, habitação, domicílio e em inglês corresponde a household. Logo, a tradução literal da expressão "ménage à trois" é "moradia a três", subentendendo um triângulo amoroso. A dúvida estava em saber se "ménage", além de substantivo masculino, fazia referência a um sobrenome.
Atualmente "ménage à trois" é utilizada para designar os relacionamentos sexuais entre três pessoas, nas seguintes modalidades possíveis: dois homens e uma mulher, com ou sem bissexualidade masculina, e duas mulheres e um homem, igualmente com ou sem bissexualidade feminina.
A indagação dele imediatamente suscitou minha curiosidade, desencadeou em mim uma série de questionamentos e pus-me a procurar a origem da expressão.

Inicialmente verifiquei a possibilidade de que essa expressão jocosa, popular entre os brasileiros, constasse na Internet, proporcionando verificar-se algo sobre sua origem.
Obtive também da Internet as respostas mais curiosas que entendo interessante reproduzir aqui uma delas:
"Casal que acolhe uma terceira pessoa em casa, geralmente o amante da mulher ou a amante do marido."
"Expressão francesa que conheceu uma grande notoriedade graças a Émile Zola na segunda metade do século XIX através de sua novela Pot-Bouille. À época, essas relações chamadas triangulares eram geralmente percebidas como um pretexto para piadas duvidosas sobre o marido traído ("corno" ou "chifrudo"), o que fez escola no teatro de vaudeville e nos programas de entretenimento em rádios e tevês."
"O correspondente do jornal 'Le Monde' em Londres conta a história do ménage à trois que formaram Lady Di, Charles e Camilla Parker, durante o primeiro casamento do Príncipe de Gales."
"Expressão francesa sinônima: plan à trois."

Link: http://www.expressions-francaises.fr/expressions-m/3165-menage-a-trois.html

 

Émile Zola (1840-1902), como se sabe, deu o título coletivo de Os Rougon-Macquart a um ciclo de vinte romances ou episódios, cujo subtítulo era "História natural e social de uma família sob o Segundo Império". Nesta obra o autor seguiu as vidas dos membros dos dois ramos titulares de uma família fictícia vivendo após a queda de Napoleão III. Escreveu sua novela Pot-Bouille como 10º episódio de Os Rougon Macquart no jornal Le Gaulois entre 23/01/1882 e 14/04 do mesmo ano. Ali, com o título de Pot-Bouille (traduzido por "sopa ordinária" ou caldo medíocre em português), pretendia, em sentido figurado, particularizar o estudo da sociedade humana feito sob a ótica da ciência, visto que estava especialmente interessado no problema da hereditariedade e na evolução. É sabido que anteriormente Zola tinha apreciado o magnífico trabalho feito por Honoré de Balzac, conhecido por A Comédia Humana, famoso ciclo de cunho generalista que pretendia ser o retrato da sociedade contemporânea. Inspirado por A Comédia Humana de Balzac, o escritor naturalista Zola, por sua vez, fez seu estudo particularizado, de forma estritamente naturalista e fisiologista, desses ramos de uma mesma família, seguindo seus próprios critérios científicos. Eis aqui um trecho extraído do Prefácio do autor para o primeiro episódio intitulado A Fortuna dos Rougon:
(...) Les Rougon-Macquart, le groupe, la famille que je me propose d'étudier a pour caractéristique le débordement des appétits, le large soulèvement de notre âge, qui se rue aux jouissances. Physiologiquement, ils sont la lente succession des accidents nerveux et sanguins qui se déclarent dans une race, à la suite d'une première lésion organique, et qui déterminent, selon les milieux, chez chacun des individus de cette race, les sentiments, les désirs, les passions, toutes les manifestations humaines, naturelles et instinctives, dont les produits prennent les noms convenus de vertus et de vices. Historiquement, ils partent du peuple, ils s'irradient dans toute la société contemporaine, ils montent à toutes les situations, par cette impulsion essentiellement moderne que reçoivent les basses classes en marche à travers le corps social, et ils racontent ainsi le Second Empire à l'aide de leurs drames individuels, du guet-apens du coup d'état à la trahison de Sedan. (...)
(Minha tradução: Os Rougon-Macquart, o grupo ou a família que proponho estudar, tem como característica o transbordamento de apetites, a grande sublevação de nossa era, que se precipita sobre o prazer. Fisiologicamente, seus membros são a lenta sucessão de acidentes nervosos e sanguíneos que se declaram numa raça, após uma primeira lesão orgânica, e que determinam, de acordo com os meios-ambientes, em cada um dos indivíduos desta raça, os sentimentos, os desejos, as paixões, todas as manifestações humanas, naturais e instintivas, cujos produtos tomam os nomes convencionados de virtudes e de vícios. Historicamente, partem do povo, irradiam-se por toda a sociedade contemporânea, elevam-se a todas as situações, por esse impulso essencialmente moderno recebido pelas classes mais baixas que marcham pelo corpo social e, assim, eles informam o Segundo Império: usando seus dramas individuais, desde a emboscada do golpe até a traição de Sedan.)

Link: https://books.google.com.br/books?id=RTnfAgAAQBAJ&printsec=frontcover&source=gbs_atb&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false (p. 17)

Cabe indagar: Teria, por acaso, ficado no subconsciente de Zola alguma referência a Gilles Ménage e suas duas discípulas prediletas quando criou a expressão "ménage à trois", subentendendo, além do significado do acolhimento de uma terceira pessoa pelo casal originário sob um mesmo teto, um pretenso "caso" amoroso entre Ménage e suas duas discípulas "preciosas"? Teria Molière (in As Preciosas Ridículas ou As Mulheres Sábias) ou outro autor feito algum trocadilho malicioso ou mandado alguma indireta a respeito dessa amizade envolvendo o abade e suas discípulas prediletas por inveja do brilho dos três protagonistas que desconhecemos?

Um fato é certo: é possível constatar a existência de uma predileção de Gilles Ménage (1613-1692) por duas de suas discípulas: marquesa Madame de Sévigné (1626-1696), nascida Marie de Rabutin-Chantal, e condessa Madame de La Fayette (1634-1693), nascida Marie-Madeleine Pioche de La Vergne, que, respectivamente, passaram para a história do Antigo Regime: a primeira, que ficou mundialmente famosa como autora com base em suas cartas, que revolucionaram o gênero epistolar, e a outra, como autora especialmente do romance A Princesa de Clèves, romance em um único volume, em oposição aos romances muito longos da época, e que representou a transição para o romance moderno. As duas eram quase parentas, pois a mãe da Madame de La Fayette, Isabelle Péna, em segundas núpcias (1650), foi casada com o chevalier René Renaud de Sévigné, tio de Madame de Sévigné. De acordo com Roger Duchêne, Marie-Madeleine conheceu Gilles Ménage, quando ele tinha trinta e oito anos, e ela, dezessete. Para surpresa do mestre Ménage, ela se casou inesperadamente em 1644 com o Marquês Henri de Sevigné, mulherengo e estróina, que veio a falecer em 1651 num duelo por causa dos belos olhos de uma amante. O marquês deu à sua esposa dois filhos: Françoise, nascida em 1646 e Charles, nascido em 1648.
Ainda mais inesperado foi o casamento de Marie-Madeleine com François Motier, Conde de La Fayette, com quem teve dois filhos.

Naquele meu trabalho acima referenciado consta um trecho da obra Madame de La Fayette - Sa vie et ses oeuvres, cujo autor é Harry Ashton, o qual assim se refere ao trio na nota de rodapé nº 6:
[ASHTON, 1922, p. 22-30] informa também que
“as cartas da Marquesa de Sévigné mostram que os laços de amizade entre ela e Madame de La Fayette se fortaleceram depois do casamento de Madame de La Vergne; já antes de 1652 as duas mulheres se conheciam, tendo se tornado parentas pelo segundo casamento de Madame de La Vergne. Todas as duas foram alunas de Gilles Ménage e mesmo a amizade particular do mestre por uma das duas alunas parece ter feito nascer um pouco de ciúme no coração da outra. Depois de um silêncio um pouco longo demais, Ménage escreveu à marquesa manifestando sua preferência por ela em detrimento de Madame de La Fayette. (...) Existe o costume, quando se fala das relações entre Ménage e suas alunas, de representar o mestre como um abade pedante, mulherengo, amante de todas as mulheres que ele encontrava, e perseguia as senhoritas de La Fayette e de Sévigné com suas atenções ao ponto de ser importuno e ridículo.”
Na opinião de Ashton, os documentos que apóiam essas acusações são muito frágeis.
“A verdade nos parece completamente outra. Há provas incontestáveis de que as duas moças faziam grandes esforços para reter Ménage como amigo e, sem acusá-las de terem sido elas as importunas, podemos admitir que elas provocavam o abadezinho para ter suas cartas e suas visitas.”
 
E Ashton justifica documentalmente com base nas correspondências do abade Ménage. Ele também calcula que foi por volta de 1650 que Marie-Madeleine começou a trabalhar sob a orientação de Ménage; essa data não combinaria bem com a carta de Madame de Sévigné escrita para reprovar Ménage por sua parcialidade em favor da nova aluna.

Link: https://books.google.com.br/books?id=VB09AAAAIAAJ&pg=PA24&lpg=PA24&dq=.&f=false

O melhor a fazermos talvez seja consultar outras obras de críticos e analistas literários que se debruçaram como verdadeiros detetives investigativos sobre a relação entre os três ilustres personagens e algumas passagens conhecidas vivenciadas por eles. Com base nas correspondências disponíveis entre as duas alunas prediletas e seu mestre, o abade Ménage, porventura é possível afirmar que nada pode ser incriminado a este último a não ser sua insistência em sentir-se amado, primeiro por Madame de Sévigné, e não correspondido, confessa seu amor pela amiga dela, Madame de La Fayette? Rejeitado por ambas suas prediletas, Ashton acha que a expressão "abadezinho" ou pobre abade seja pertinente, no caso. De posse das informações que vêm a seguir, poderá o leitor formar sua opinião e tirar sua própria conclusão.


II. ESTUDO INVESTIGATIVO NA OBRA VOLUMOSA DE CRÍTICOS E ANALISTAS LITERÁRIOS


[PRALON, 2011, 8-11], eleito em 2010 para a Academia de Marseille das Ciências, Belas Letras e Artes e acolhido em 22/03/2011, pronunciou as seguintes palavras no seu discurso de posse com referência a Roger Duchêne, biógrafo, especializado nas Cartas de Madame de Sévigné e que o antecedeu na mesma Cadeira:
“(...) no capítulo 9 de seu livro Madame de Sévigné, lindamente intitulado "Uma escolar de trinta anos" (p. 104-119 na edição de 1982, que possuo), Roger Duchêne mostra o que eram as conversas eruditas, tanto epistolares quanto romanescas. O poeta helenista, editor e comentador de Diógenes Laércio e de Malherbe, abade mundano também, Gilles Ménage (1612-1692), publicou, em 1652, Miscellanea contendo Poesias francesas, entre as quais "O pescador ou Alexis, Idílio a Madame a Marquesa de Sévigné, precedida dum elogio da própria homenageada, no papel de "belle insensible" (eu cito 11 versos do extenso poema):
Des ouvrages du ciel le plus parfait ouvrage,
Ornement de la cour, merveille de notre âge,
Aimable Sévigné, dont les charmes puissants
Captivent la raison et maîtrisent les sens;
Mais de qui la vertu, sur le visage peinte,
Inspire aux plus hardis le respect et la crainte.
Vous, dont l'humeur contraire aux lois de l'amitié,
Et dont la main sensible aux traits de la pitié
Fait ses doux entretiens et ses plaisirs uniques
Du funeste récit des histoires tragiques,
          Écoutez les soupirs d'un pêcheur amoureux (...)  ¹

(Minha tradução: Das obras do céu a obra mais perfeita, / adorno da corte, maravilha de nossa época, / amável Sévigné, cujos poderosos encantos / cativam a razão e dominam os sentidos, / porém cuja virtude, pintada no rosto, / inspira aos mais atrevidos respeito e temor. / Tu, cujo humor contrário às leis da amizade, / e cuja mão sensível às marcas da piedade / faz suas doces palestras e seus prazeres únicos / da funesta narração das histórias trágicas / escuta os suspiros dum pescador amante.)

O Idílio narra as tribulações do pastor Alexis (o próprio Ménage), amante infeliz da bela Íris (Mademoiselle de la Vergne, futura Condessa e Marquesa de La Fayette): "Ménage dedica a Madame de Sévigné, releva Roger Duchêne, a narração dum amor que não lhe foi destinado". O trio de amigos se acha fundado sobre uma rivalidade. A Marquesa de La Fayette definiu-lhe as regras numa carta dirigida ao abade (19/08/1652):
“Para mim, tenho vantagem sobre o Sr. *, pois continuei a amá-lo, embora disso tenha querido dizer, e o Sr. só me ataca sem motivo para se dar inteiro à Mademoiselle de La Vergne. Mas, enfim, ainda que ela seja mil vezes mais amável que eu, o Sr. teve vergonha de sua injustiça, e sua consciência lhe deu tão grandes remorsos que foi obrigado a repartir-se mais igualmente do que tinha feito primeiramente. Louvo a Deus deste bom sentimento e lhe prometo de por-me de acordo tão bem com essa amável rival que não ouvirá nenhuma queixa nem dela nem de mim; estando resolvida, quanto a mim, de ser em toda a minha vida a mais verdadeira amiga que tem.”  

* Observe que ela dá a Ménage um tratamento cerimonioso e formal, utilizado para pessoas desconhecidas ou respeitosas ("vós", em francês, traduzi por "o Sr.").

Vinte e seis anos mais tarde, Molière poderá zombar das "mulheres sábias" (1678), ridicularizar a pretensão ao saber na ordem da mundanidade; ele não saberia chegar a romper o charme desse gracejo elegante onde afloram algum equívoco e até mesmo alguma crueldade. Dez anos mais tarde, em 1662, Ménage, numa carta a Pierre-Daniel Huet, o erudito bispo de Avranches, sub-preceptor do Delfim, revela um epigrama de sua lavra sobre suas relações com as duas belas escritoras:
“Penso que tu me ouviste dizer outrora que eu tinha amado Madame de La Fayette em verso e Madame de Sévigné em prosa. Madame de La Fayette me obrigou a colocar este pensamento em verso, embora ela não tire proveito disso:

De Parménis et de Timarète
À qui j'ai dit mainte fleurette
On fait cent jugements divers.
Pour moi je n'en dis qu'une chose:
J'adorais Timarète en vers
Et j'aimais Parménis en prose.

(Minha tradução: De Parménis e de Timarète / A quem eu disse muito cachepô de flores / são feitos cem julgamentos diversos. / Para mim digo disso apenas uma coisa: / Eu adorava Timarète em versos / E eu amava Parménis em prosa.)

Timarète é Madame de La Fayette; Parménis, Madame de Sévigné. O poema não é de Malherbe, nem, com toda a razão, de Racine. Mas é composto com graça.
Roger Duchêne faz um breve apanhado das aspirações culturais das damas da alta sociedade * :
“Nada de mais importante para jovens como Madame de Sévigné ou Madame de La Fayette do que esta presença, a seus lados, de um abade cheio de espírito e de saber que as ajudasse, malgrado a ausência de formação inicial delas, a tomarem parte e espaço na cultura de seu tempo. Muitas damas puderam como elas, pelo menos na aristocracia, começar bons estudos na idade em que as jovens fechavam definitivamente seus livros. Elas desabrocharam, junto das academias, dos salões e até da corte, das redes ativas de intercâmbios culturais: após ter recebido de Ménage a 11ª Provincial, Madame de Sévigné lhe escreveu: “Li com muito prazer a 11ª Carta dos jansenistas. Parece-me que é muito bonita. Comunique-me se não é teu sentimento.” Como a litote é deliciosa! A troca literária estabelece um comércio de amizade e de inteligência: Madame de Sévigné quer aprender, junto de seu mentor, a apreciar os bons autores. A única reserva é que, não tendo aprendido o latim (e o grego), ela conhece mal os Antigos e “não pode ter contatos diretos com eles. O gosto do tradutor influencia o julgamento dela e a priva de sua liberdade.” (...) 

* Madame de Sévigné, 1982, p. 110-111.
Eis como Roger Duchêne reconstitui pacientemente uma constelação social e cultural, uma maneira refinada de ler, debater e escrever. A gente compreende e aprecia melhor essa literatura encantadora, muito frequentemente julgada frívola e impulsiva: lêem-se ainda hoje Madame de La Fayette (A Princesa de Clèves)... e Madame de Sévigné, acrescentaria eu, mesmo se a arte epistolar esteja um pouco perdida. ²  Seu retrato moral e literário, incessantemente remodelado, ganha novas nuances e se faz mais complexo: não se trata de contestar a ternura, a vivacidade de espírito, o estilo fluido e gracioso; mas descobre-se também uma mulher preocupada com moral e piedade, digna herdeira de sua avó, Jeanne de Chantal, e, contraditoriamente, uma mundana sensata, sedutora, um pouco imaginativa e até um pouco folgazã, segundo a fórmula "grande século" de Roger Duchêne. (...)
Modestamente, sem charlatanice, este terá poderosa e pacientemente contribuído para um conhecimento mais fino da era clássica, combatendo as ideias preconcebidas, que fariam de Madame de Sévigné uma mãe atenciosa mas superficial, de Madame de La Fayette uma mundana que afeta um pouco de recato e austeridade, de La Fontaine um simples animador, de Molière um comediante, em ruptura com as imposições da vida em sua família e seu meio ambiente. A Marquesa e a condessa foram autênticas e honradas mulheres eruditas, La Fontaine um esteta refinado, Molière, um humanista culto, uma espécie de filósofo, tanto quanto um cômico genial. (...)


Quanto à Madame de La Fayette, [ZECHLINSKI, 2012, 137-151], na sua tese intitulada Três Autoras Francesas e a cultura escrita no século XVII: gênero e sociabilidades, recomenda
“ler e reler as cartas trocadas entre Madame La Fayette e Ménage para compreender bem o que significava o amor terno, sobre o qual teorizou Madeleine de Scudéry e que "mais de uma grande dama viveu em companhia de um belo espírito que sabia criar em torno dela um clima de doce afeição e de atenção intelectual e moral que o casamento lhe recusava”. (...)
Conforme comentamos, o chamado amor galante aproximava-se mais das experiências vividas em amizades do que em casamentos. Ele pressupunha confiança, fidelidade, afeição e compartilhamento, sem necessariamente pressupor o envolvimento romântico, nem sexual, entre os dois amigos. Dessa forma, o amor galante era o sentimento que permitia homens e mulheres de letras suplantarem a hierarquia de gênero, tornando a amizade uma experiência de igualdade.
Porém, o desejo de igualdade na relação de amizade não significava o esquecimento da desigualdade social de fato existente. Assim, os homens de letras que investiam em relações de amizades com mulheres sábias estavam conscientes das dificuldades encontradas por elas para a aquisição dos bens culturais. Dessa forma, o auxílio que eles prestavam às suas amigas escritoras quanto à gramática e à elaboração das narrativas significava não só um ato de generosidade (que o ideal de amizade pressupunha), mas também uma maneira consciente de combater a misoginia da sociedade em que viviam. (...)
Portanto, Ménage pode ser inserido no rol de autores que procuraram contribuir para a elaboração de uma memória para as mulheres sábias, sobre a qual comentamos. (...)
O casamento de Marie-Madeleine com o Conde de La Fayette, em 1655, quando ela tinha vinte e dois anos, não proporcionou para a então Condessa uma experiência amorosa muito intensa. Quando se casaram, o Conde era um oficial aposentado de trinta e oito anos, viúvo e que vinha de uma família da alta nobreza, mas cuja renda não era muito alta. De acordo com Roger Duchêne, a forma um tanto apressada com que aconteceu o casamento de Madame de La Fayette gerou especulações no interior da corte. Contava-se que a jovem Marie-Madeleine estava grávida de outro homem (cujo nome desconhecemos) e que era necessário casá-la rapidamente. Sua família havia feito um acordo com o Conde de La Fayette, que, por sua vez, queria casar-se novamente o quanto antes, já que passava por dificuldades financeiras.
Tal história nunca foi confirmada, como avalia [DUCHÊNE, 2000], não existe nenhum documento que a comprove. Sabemos somente que os noivos não tinham qualquer proximidade anterior ao casamento e que o acordo para a cerimônia se desenrolou de maneira mais rápida do que o habitual. Madame de La Fayette acompanhou o marido para as terras que ele possuía no campo em Auvergne. Meses depois, ela enviou de lá uma carta à Madame de Sévigné lamentando-se por ter perdido o primeiro filho. Quando voltou a Paris, as intrigas sobre o seu casamento já haviam cessado e ela retomou o cotidiano nos espaços letrados.
Na realidade, o Conde e a Condessa de La Fayette adotaram um modo de vida que convinha principalmente a ela. Enquanto o marido permanecia grande parte do tempo nas terras em Auvergne, Madame de La Fayette vivia em Paris em sua casa da rua Vaugirard, onde abriu o próprio salão.
Como salonnière, Madame de La Fayette ampliou ainda mais os vínculos amistosos e tornou-se próxima de escritores e de homens de letras que, além de Ménage, influenciaram-na a escrever, entre eles Pierre-Daniel Huet e Jean Regnault de Segrais, que inclusive assinou os dois volumes de Zaïde, historie espanhole, entre 1699 e 1671. (...)

Hotel de Rambouillet, um dos mais 
prestigiados salões literários do Antigo Regime














Além das companhias mais íntimas da escritora, que continuavam a ser Gilles Ménage, Madame de Sévigné e também a cunhada do rei, Henriette d'Angleterre, a partir de 1660, Madame de La Fayette manteve uma relação de grande afinidade com o Duque de La Rochefoucauld, escritor que frequentava especialmente o salão de Madame de Sablé e que ficou conhecido pelo gênero das "máximas". (...).
A relação extremamente próxima da Condessa de La Fayette com o Duque era conhecida no ambiente letrado e, embora saibamos que eles mantinham uma constante correspondência, dela não foi preservada sequer uma carta, o que nos faz imaginar que eles devem ter tido o cuidado de destruí-las.
Já grande parte da correspondência que Madame de La Fayette manteve com Gilles Ménage foi preservada, embora muitas cartas tenham se perdido. (...)
A crença que um amor verdadeiro está presente na amizade mais do que no casamento é de fato perceptível pelas recorrentes cobranças de afeto e de atenção que Madame de La Fayette faz a Gilles Ménage. Ele não só a corresponde pela escrita epistolar, mas também através da escrita literária, pois muitas de suas obras são dedicadas para a amiga (...).
As demonstrações de afeição pela amiga foram recorrentes nas obras de Gilles Ménage, como demonstra Roger Duchêne, pois ela ocupou um lugar preponderante como musa nas poesias que ele publicou entre 1656 e 1658. (...)”


Segundo [ESMEIN-SARRAZIN, 2015, p. 77-89], grandes poemas de Ménage publicados em Poëmata e dedicados à Madame de La Fayette a enterneceram, especialmente o idílio Le Jardinier, a elegia Sur la Fièvre de Phyllis (sobre uma febre que ela sofrera), L’Oiseleur, La Bella Uccellatrice e o Sonetto que encerra o volume "in lode della virtuosissima, e bellissima signora de la Vergne".


Links: https://books.google.com.br/books?id=DtacQXCdri0C&pg=PA18&hl=pt-BR&source=gbs_toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=false para a elegia Sur la Fièvre de Phyllis (89-92), o idílio Le Jardinier (p. 105-114) e Sonetto (p. 117) na 2ª edição (1656) de Poëmata, em Paris
para o idílio L'Oiseleur (p. 194-203) na 7ª edição (1680) de Poëmata, em Paris

https://books.google.com.br/books?id=omFEAAAAcAAJ&pg=RA19-PA5&lpg=RA19-PA5&dq=&f=false para o idílio La Bella Uccellatrice (p. 294-302), onde destaco os seguintes versos na 4ª edição (1663) de Poëmata, em Amsterdam:
(...) Nè men si farà gioco, 
Delle lagrime triste, & de' sospiri 
D'un infelice Amante: 
Sendo ella, ben lo sai, 
De' tenerelli Amori 
La Maestra e la Madre. (...)

(Trad. livre: Não se fará piada / Das lágrimas tristes e dos suspiros / Dum Amante infeliz: / Sendo ela, bem o sabes, / Dos tenros Amores / A Mestra e a Mãe.)

Em 20 de agosto de 1662, Madame de La Fayette lançou sua primeira novela: A Princesa de Montpensier, publicada sob anonimato, que teve uma difusão anterior à sua publicação. Não se sabe que papel Ménage representou na composição da narrativa, na elaboração e primeira redação da novela. Entretanto, é certo que, num segundo tempo, ele, que já era conhecido como autor de As Origens da Língua Francesa (1650), tomou parte da reprise, correção e retificação da versão inicial, algo comprovado graças à correspondência que a romancista mantinha com ele e que foi preservada. Essa obra que fez de Madame de La Fayette uma mulher de letras teve um sucesso vivo e imediato, e cinco novas edições, todas anônimas, foram lançadas ao longo do século XVII. Foi em seguida erigida em manifesto do romance francês e sua autora considerada pioneira no nascimento dum novo gênero literário. De fato, fez escola, na medida em que não somente orientou a poética romanesca dos decênios seguintes, mas também outras novelas históricas retomaram seus principais personagens. Em carta de fim de agosto de 1662 a Ménage, a romancista refere-se a "notre Princesse".


Sabe-se que ela fez o mesmo com Pierre-Daniel Huet, bispo de Avranches, alguns anos mais tarde quando da redação de Zaïde, história espanhola (1669-1671), o que pode ser comprovado por várias cartas dirigidas ao prelado testemunhando seu trabalho de reescrita e de emenda do romance. A colaboração dele pode ser comprovada também com a edição de Zaïde acolhendo um Tratado da Origem dos Romanos da autoria de Huet (vide imagem supra da capa do romance na edição de 1670).
Os críticos (especialmente Roger Duchêne e André Beaunier) têm considerado que as relações entre Ménage e Madame de La Fayette se interromperam entre 1665 e 1684, e têm atribuído sua rusga ao ciúme do primeiro por sua amada em face do cortejo cada vez mais insistente do Duque de La Rochefoucauld, o célebre autor das Máximas, que passou a prestar à autora uma colaboração literária intensa como conselheiro.
Duas outras novelas de Madame de La Fayette foram supervisionadas por Rochefoucauld, especialmente o segundo: Zaïde, história espanhola, em 3 volumes, e A Princesa de Clèves (1678), em 2 volumes, e outras produções posteriores. A Princesa de Clèves é tida como um dos primeiros romances psicológicos, e também o primeiro roman d'analyse que marcou um ponto de viragem na história do romance. Até então o romance histórico ou heróico costumava ter 10 volumes, como Ciro e Clélia de Madame de Scudéry. Madame de la Fayette desejou que seus dois romances mencionados aparecessem sob a autoria de Segrais, que concordou com a ideia, reservando-se o direito de fazer conhecer mais tarde o verdadeiro autor, o que fez com efeito.



[WALCKENAER, 1856, p. 57-80] trata do amor de Ménage pela Marquesa de Sévigné no livro I capítulo VI de suas Memórias no tocante à vida e aos escritos de Marie de Rabutin Chantal, a saber:
“(...) O abade Ménage (pois ele era também abade, e, como muitos outros, para possuir vantagens, mas não para poder exercer as funções eclesiásticas) podia ter 32 ou 33 anos, quando conheceu Marie de Rabutin-Chantal e consentiu em dar-lhe lições. Ele ainda não tinha publicado nada, mas gozava de boa reputação entre os eruditos, tanto franceses quanto estrangeiros, e em correspondência regular com os mais renomados entre eles. Ménage não pôde dar seus cuidados à instrução de Marie Chantal, sem se tornar amante dela; e desfrutava deliciosamente as marcas de amizade que ela lhe dava, e o sucesso de suas lições, quando as disposições feitas para o casamento de sua jovem aluna com o marquês de Sévigné vieram contristar seu coração. (...)
“Este projeto de ruptura de Ménage deu lugar a uma correspondência entre ele e ela, da qual só nos restam duas cartas; mas elas bastam para nos mostrar que Marie Chantal, jovem que era, tinha compreendido que o amor de Ménage era para ela sem consequência, e não a forçava a se privar das assiduidades dum homem cuja sociedade era agradável e instrutiva, e prova que, desde sua mais tenra idade, Madame de Sévigné não era estranha à arte das mulheres atraentes e sensuais, e que, se sua virtude não lhe permitia utilizá-la para conquistar amantes, ela sabia servir-se dela para conservar seus amigos e aumentar o número deles.

De Marie de Rabutin-Chantal, Marquesa de Sévigné (1626-96) vejamos aqui três epístolas de sua lavra dirigidas ao abade Gilles Ménage, seu preceptor, extraídas das Memórias de Walckenaer:

1. De Srta. Marie de Rabutin-Chantal a Ménage (Paris, ... *)

Eu digo ao Sr., ** mais uma vez, que não nos entendemos bem, e está muito feliz por ser eloquente, porque, sem isso, tudo o que você me pediu dificilmente valeria a pena. Embora isso esteja maravilhosamente bem resolvido, no entanto, não estou assustada com isso e sinto minha consciência tão clara sobre o que você me diz que não perco esperança de informar sua pureza. É, porém, uma coisa impossível, se o Sr. não me conceder uma visita de uma meia hora; e não entendo por que motivo ma recusa tão obstinadamente. Suplico novamente que o Sr. venha aqui e, como não quer que seja hoje, peço que o faça amanhã. Se não vier, talvez não fechará sua porta para mim, e eu o perseguirei tão de perto que o Sr. será forçado a admitir que está um pouco errado. No entanto, quer fazer-me passar por ridícula, dizendo-me que só está brigando comigo porque está zangado com a minha partida. Se assim fosse, eu mereceria bombons e não o seu ódio. Mas há toda a diferença, e só acho difícil de entender que, quando você ama uma pessoa e tem saudade dela, seja preciso, por isso, deixá-la com frio no último ponto, nas últimas vezes em que você a vê. Essa é uma maneira bem extraordinária de agir e, como eu não estava acostumada com ela, você deve desculpar minha surpresa. No entanto, eu imploro que você acredite que não há um daqueles velhos e novos amigos dos quais me fala, a quem eu não valorizo nem amo tanto quanto o Sr. É por isso que, antes de perdê-lo, me dê o consolo de colocá-lo numa situação incômoda, e de dizer que é o Sr. que não me ama mais.
Chantal.

* Carta de Marie de Rabutin-Chantal a Ménage (acredita-se que esta carta, assim como a seguinte, foi escrita em 1644, antes do casamento de Madame de Sévigné).

** Observe que ela dá a Ménage um tratamento cerimonioso e formal, utilizado para pessoas desconhecidas ou respeitosas ("vós", em francês, traduzi por "o Sr.").

O que mais picante e ao mesmo tempo mais amável que uma tal carta; e onde está o meio de resistir a ela quando a gente ama? Ménage não pôde: ele argumentou, desculpou-se, tergiversou sobre a expressão "defunta amizade" que ela tinha empregado em uma de suas cartas, e ele retornou, como escravo submisso, para se recolocar na corrente. Ela o tomou ao pé da letra e lhe respondeu assim:

2. De Srta. de Rabutin-Chantal a Ménage *

Foi o Sr. que me ensinou a falar de sua amizade como duma pobre defunta; pois, para mim, não seria nunca informada disso, amando-o como faço. Atribua as culpas a si mesmo desta palavra feia que lhe desagradou; e creia que não posso ter mais alegria do que saber que conserva por mim a amizade que me prometeu, e que está gloriosamente ressuscitada. Adeus.
Marie Chantal.

* Ménage tinha tomado a seus cuidados a educação de Srta. de Chantal. Desde que se tratava do casamento de sua aluna, parecia ter colocado nas suas relações uma frieza que Marie de Rabutin-Chantal tinha dificuldade de se explicar.

3. De Madame de Sévigné a Ménage (Paris, domingo, 12 janeiro 1654)

Eu estou agradavelmente surpresa de sua lembrança, senhor; há muito tempo que tinha suprimido as demonstrações da amizade que estou certa de que tem sempre por mim. Eu lhe rendo mil graças, senhor, por querer repô-las a seu lugar, e por me testemunhar o interesse que dá ao meu retorno e à minha saúde. Minha grande viagem *, numa tão rude estação, não me fatigou completamente, e minha saúde está de uma perfeição que eu desejaria à sua. Irei explicar-lhe tim-tim por tim-tim, senhor, e garantir-lhe que há espécies de amizade que a ausência e o tempo não dissolvem nunca.
A marquesa de Sévigné.

* Madame de Sévigné chegava da Bretanha.




Até 2015, estava tudo mais ou menos posto a respeito da relação de Ménage com suas duas discípulas prediletas, principalmente após os trabalhos de Roger Duchêne, que parecia terem fixado suas linhas mestras, quando [MABER, 2015, p. 35-46] trouxe novos insights, jogando nova luz sobre o que julgávamos estar definitivamente estabelecido. Abaixo vou resumir o que ele descobriu:

1) Segundo ele, As Memórias para servir à Vida de Monsieur Ménage, no tomo I do Menagiana de 1715, nos oferecem uma imagem completamente diferente de sua correspondência. Aí ficamos sabendo que Ménage mantinha correspondência, não somente com as pessoas de letras de Paris e das Províncias, mas também com os estrangeiros e que entre as obras manuscritas que ele deixou após sua morte se acham várias cartas latinas, francesas, italianas, a todos os eruditos da Europa.
Constata-se ainda lacunas importantes como na sua correspondência com os eruditos da Inglaterra como Émery Bigot, John Pearson, bispo de Chester, e Isaac Vossius.
Quanto à correspondência mantida com suas discípulas prediletas, temos 182 cartas de Madame de La Fayette para ele, mas somente 3 da parte de Ménage, às quais é possível acrescentar os rascunhos de 10 outras, e também 5 cartas em latim e 4 em italiano; mas é tudo o que nos resta de centenas de comunicações entre os dois amigos.
Quanto à Madame de Sévigné, temos apenas 18 cartas dela e nenhuma da parte de Ménage. Embora as cartas dela a Ménage possam ser lidas na edição de Roger Duchêne, Maber informa que nenhuma dessas cartas está datada, e sua datação por Duchêne está baseada em suposições às vezes equivocadas, como está também a discussão sobre as relações entre ela e Ménage na biografia da marquesa publicada pelo mesmo autor. Duchêne também está convencido de que as relações entre Ménage e Mme de Sévigné foram interrompidas por "rusgas e, finalmente (...) uma ruptura quase total" em 1663, segundo sua estimativa. Essa convicção determina sua datação das cartas dela, já que afirma que não houve nenhuma comunicação entre Ménage e ela após 1663. Mas infelizmente Maber considera que essa convicção está equivocada.
A favor de sua tese, Maber apresenta notas assinadas por Ménage e um diário de viagem a Paris manuscrito e inédito assinado por Alessandro Segni a serviço de seu senhor Francesco Riccardi, intitulado Viaggi di Asellandro Segni col Sige. Marchese Francesco Riccardi, que ele encontrou em bibliotecas de Florença, mostrando encontro marcado por Ménage entre esses viajantes florentinos e as duas discípulas, evidenciando que houve um encontro de Ménage com Mme de Sévigné em 02/02/1666 e, de novo, outro encontro em 16 e 18/02/1669, desta vez com as suas duas discípulas prediletas, quando novamente ele acompanhava os viajantes florentinos.

Graças a esses novos elementos da correspondência de Ménage, Maber acredita que seja necessário revisar a biografia de Mme de Sévigné, e também, repensar a datação de Roger Duchêne para várias de suas cartas. Fica aqui claro que os contatos entre o mestre e suas discípulas nunca foram definitivamente rompidos, conforme queriam os críticos.
Roger Duchêne estava convencido de que as relações entre Ménage e Madame de Sévigné deviam ter terminado com "brigas e, finalmente [...] uma ruptura quase total" em 1663, conforme sua estimativa. E essa convicção determina a datação dele para as referidas cartas, já que ele afirma que não houve nenhuma comunicação entre Ménage e a marquesa depois de 1663. Mas infelizmente essa convicção, como tantas outras certezas da história literária, está equivocada.
O caso de Madame de La Fayette é mesmo mais impressionante. Todos os biógrafos estão de acordo sobre o fato que depois dos anos de uma amizade muito próxima, houve um longo período em que Ménage e a condessa tinham completamente perdido o contato entre si. Segundo André Beaunier, "não há mais, durante duas dezenas de anos, nenhum bilhete, nem apenas um sinal de vida, trocados entre Ménage e Madame de La Fayette", e ainda segundo Beaunier, em 1684, depois do acidente de Ménage, ela deve ter tido pena dele, retomando o contato entre ambos. Por outro lado, Roger Duchêne afirma também que após 1665 "é o silêncio... ei-los separados por perto de vinte anos", e o repete na sua própria edição de suas Obras Completas. Ele tenta interpretar a ausência aparente de cartas entre Ménage e Madame de La Fayette: imaginou um melodrama passional: segundo ele, é ela que teria abandonado o mestre em favor do duque de La Rochefoucauld.

2) Além dos acidentes que tendem a dispersar toda correspondência antiga, o próprio Ménage contribuiu para esses problemas. Próximo ao fim de sua vida, Ménage teve a ideia de publicar uma Coletânea de correspondências em todas as línguas, e com essa intenção ele pediu de volta suas cartas a seus correspondentes, aí incluídas todas as cartas latinas que dirigiu à Madame de La Fayette. Mas ele jamais publicou sua coletânea: quase todas as cartas a ela se perderam, e muitas outras certamente tiveram a mesma sorte. E é bem enlouquecedor pensar que ele teria certamente escolhido para sua coletânea as mais interessantes e as mais bem escritas de todas suas cartas!





III. NOTAS EXPLICATIVAS




¹  Roger Duchêne foi autor do artigo "Madame de Sévigné à Marseille" [1673], da publicação da monumental edição da obra "Madame de Sévigné , Correspondência, edição crítica, texto estabelecido, apresentado e anotado por Roger Duchêne", 3 volumes, Gallimard, 1973-1978 (republicadas numa última edição completa emendada em 2005 para a Biliothèque de La Pléiade) e dos livros "Madame de Sévigné" (1982), "Madame de Sévigné ou la chance d'être femme", Fayard, 1982, edição aumentada 2002 e "Madame de Lafayette, la romancière au cent bras", biografia, Fayard, 1988, edição aumentada, 2000.

²  A seguinte variante consta da 2ª edição de Poëmata de Gilles Ménage (1656), p. 76-81:
Des ouvrages du Ciel le plus parfait ouvrage, 
Miracle de ces lieux, merveille de notre âge 
Aimable Sevigny, dont les charmes puissants 
Captivent la raison & maîtrisent les sens; 
Mais de qui la vertue sur le visage peinte 
Imprime aux plus hardis le respect & la crainte: 
Vous, dont l'humeur contraire aux lois de l'amitié, 
Et dont l'âme insensible aux traits de la pitié 
Fait ses doux entretiens & ses plaisirs uniques 
Du funeste récit des histoires tragiques, 
             Écoutez les soupirs d'un Pêcheur amoureux... (p. 76)



³   Como já o dizia elegantemente Pierre Guiral no seu discurso de saudação ao neo-acadêmico Roger Duchêne, quando admitido na Academia de Marseille das Ciências, Belas Letras e Artes em 1972:
“É preciso, para escrever uma carta, certa disposição da alma, um desejo de desabafar, o gosto de fixar o instante que passa e o mundo que foi; em suma, é preciso estar em estado de graça e muitas vezes nós temos até mesmo perdido o sentido da graça.” 




IV. BIBLIOGRAFIA



ASHTON, Harry: Madame de La Fayette - Sa vie e ses oeuvres, 1922, Cambridge at the University Press, 295 p.

BRAGA, Francisco José dos Santos: Preciosas sim, mas nem um pouco ridículas, ensaio postado no Blog do Braga em 1º de maio de 2020.

DUCHÊNE, Roger: “Lettres” (Prefácio às cartas de Madame de La Fayette). In: FAYETTE, Madame de. Oeuvres Complètes. Paris: François Bourin, 1999. p. 509- 512.

_____. Madame de La Fayette. Paris: Fayard, 2000, 523 p.

_____. Être femme au temps de Louis XIV. Paris: Perrin, 2004. 428p.

_____. Madame de La Fayette, la romancière aux cent bras, Paris: Fayard, 1988

_____. Madame de Sévigné, ou la chance d’être femme, Paris: Fayard, 1982

ESMEIN-SARRAZIN, Camille: Ménage lecteur et correcteur de La Princesse de Montpensier de Mme de Lafayette, dans Littératures Classiques 2015/3 (nº 88), p. 77-89.

MABER, Richard: La correspondance de Gilles Ménage: une ressource révélatrice méconnue, dans Littératures Classiques 2015/3 (nº 88), p. 35-46.

MANZANO, Thaís Rodegheri:  E se a literatura se calasse? - Os impasses do romance da Antiguidade ao século XX, seção "Era da Inocência", capítulo intitulado "Um caso isolado" sobre o romance A Princesa de Clèves de Madame de La Fayette, p. 41-43, São Paulo: Ed. Terceiro Nome, 129 p.

PRALON, Didier:  Discours de réception de M. Didier Pralon - Académie des Sciences, Belles-Lettres et Arts de Marseille

VILLEMAIN: Lettres Choisies de Madame de Sévigné à sa fille et à ses amis, précédées de l'éloge de Mme. de Sévigné par Mme A. Tastu, couronné para l'Académie française et de l'extrait du rapport de M. Villemain, Paris: Didier, Librairie-Éditeur, 1845

ZECHLINSKI, Beatriz Polidori: Três autoras francesas e a cultura escrita no século XVII: gênero e sociabilidades, tese de doutorado apresentada ao programa de pós-gradução em História da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012, 229 p. No capítulo 3, há uma seção denominada "Madame de La Fayette e Gilles Ménage" (p. 137-51).

ZOLA, Émile: Les Rougon-Macquart (Les 20 volumes): Édition augmentée, Arvensa Éditions, 2014, 900 p.

WALCKENAER, Charles Athanase: Mémoires touchant la vie et les écrits de Marie Rabutin-Chantal, dame de Bourbilly, Marquise de Sévigné, Paris: Librairie de Firmin Didot Frères, 1856, tomo I, cap. VI,  p. 57-80.

10 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Quando publiquei um ensaio literário sobre Gilles Ménage, autor da famosa História das Mulheres Filósofas (1690) e suas discípulas, as notáveis "preciosas" do século XVII na França, com o título "Preciosas sim, mas nem um pouco ridículas", um amigo carioca brincalhão fez o seguinte comentário sagaz e também malicioso: "Tem alguma relação com a expressão 'ménage à trois'?", referindo-se especialmente à relação triádica formada pelo mestre e duas alunas prediletas, Madame de Sévigné e Madame de La Fayette.
Foi preciso estender minha pesquisa sobre os salões literários e as "preciosas" no Antigo Regime por mais uns 15 dias para esclarecer a questão colocada, valendo-me do testemunho de outros especialistas e de cartas do trio para desvendar o enigma.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2020/05/evidencia-sobre-relacao-entre-menage-e.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

José Carlos Hernández Prieto disse...

Que confusão!!! rsrsrss.
No fim, ficamos da mesma forma que quando lemos Capitu enovelando seus leitores... É perfeitamente possível que não tenham chegado ao intercurso carnal. Ainda subsistia em certos ambientes aquele amor galante idealizado pelo ciclo cavalheiresco tardo-medieval.
Obrigado por essas letras. Pesquisarei mais a respeito. Abraço fraterno. J. Carlos Hdez

Gustavo Dourado (escritor, poeta de cordel e presidente da Academia Taguatinguense de Letras) disse...

Gratidão, Braga, paz, amor e saúde, tudo de bom.

PAULO JOSÉ - PAJO POETA (Paulinho) disse...

Parabéns por mais este precioso estudo-documentário que trás à baila, meu nobre Confrade Braga! Que Abençoada seja sempre sua inspiração e determinação na socialização de saberes profundos! A culta seara que lavramos nos renderá sempre colheitas fartas! Parabéns!!! Grande abç

Prof. José Maurício de Carvalho (ex-professor titular da UFSJ , membro do Instituto de Filosofia Brasileira, do Instituto de Filosofia Luso-brasileira com sede em Lisboa, da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos-AMEF, filósofo, psicólogo e pedagogo) disse...

Obrigado Francisco. Abraços, Mauricio

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Sempre o mestre Braga nos surpreende com pepitas extraordinárias.
Sucesso sempre!

Pe. Sílvio Firmo do Nascimento (professor e editor da Revista Saberes Interdisciplinares da UNIPTAN e membro da Academia de Letras de SJDR) disse...

Caro Francisco Braga,
Graça e paz!
Recebi seu e-mail e acessei o link acima e gostei muito.
Gratidão,
Pe. Sílvio

Paulo Roberto de Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente eleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2018-2020) disse...

Prezado confrade Braga, bom dia. A provocação valeu a pena. Que belo texto de distinta pesquisa. Obrigado por me enviar.
Abraços fraternos,
Paulo Sousa Lima

Benjamin Batista (Advogado, escritor, produtor cultural, presidente da Academia de Cultura da Bahia. idealizador de mais de 90 academias de letras , artes e cultura na Bahia, no Brasil e no mundo. Editor e cantor lírico.) disse...

Um abraço, amigo.
Saúde

Nicolau Bachá (baterista carioca) disse...


PERFEITO , MESTRE E MAESTRO.