quinta-feira, 28 de outubro de 2021

RUTE PARDINI interpreta cena final do IV Ato da ópera LA TRAVIATA de Giuseppe Verdi


Por Francisco José dos Santos Braga


É minha intenção, com este trabalho e com base no vídeo da última cena do IV Ato de La Traviata, apresentar uma nova possibilidade artística de representá-la com maior expressividade e seguir mais de perto a obra original de Alexandre Dumas Filho, A Dama das Camélias, sem abdicar das belezas das alterações introduzidas pelo libretista da ópera de Giuseppe Verdi.

 

Violetta e Alfredo em La Traviata

 

 

I. INTRODUÇÃO

O libreto da ópera La Traviata de Giuseppe Verdi foi baseado no romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, sobre o qual trabalhou o libretista Francesco Maria Piave (1810-1876). Muitos libretistas trabalham sobre novelas e romances de reconhecido sucesso junto ao público e, reelaborando-os, aproveitando seus trechos mais importantes e convertendo-os num grande poema, transformam-nos em libretos extremamente apreciados e de elevado valor literário. Foi o caso do libretista Piave. La Traviata estreou a 6 de março de 1853 no Teatro La Fenice, em Veneza. 
 
"Addio, del passato" é a comovente e trágica ária do IV Ato de La Traviata, na qual Violetta reflete sobre a vida e o amor. Aqui será vista a última cena do IV Ato, mas de forma bastante resumida. Violetta está sendo consumida pela tuberculose e o médico, embora já não tenha esperanças para ela, hesita em dizer-lhe a verdade. Suas mais caras esperanças estão perdidas, sem amigos e inteiramente só, com exceção de Annina, sua secretária, que a acompanha nos momentos derradeiros. Esta pede à patroa, com alegria forçada, que tenha coragem. 
Violetta diz que ouviu sons de festa nas ruas, enquanto Annina lembra-lhe que é carnaval. 
Violetta pede-lhe que saia com o pouco dinheiro que lhe resta, autorizando-a a gastar metade consigo e a outra metade com mendigos, pedindo-lhe ainda que vá certificar-se se não chegou alguma correspondência. De posse da carta que o velho Germont, pai de seu amado Alfredo, lhe escreveu, percebe que as notícias são alvissareiras, significando que ela finalmente pode ter fé em um futuro feliz, o que pode ser interpretado como a alusão ao consentimento dele com o casamento dela com Alfredo, superando o seu preconceito inicial.
 

II. NOVA ÓTICA DO PRESENTE VÍDEO

 

Rute Pardini, no papel de Violetta, acompanhada por Vânia Marise ao piano (portanto, em redução da orquestra, para a qual foi originalmente composto por Verdi), em seu concerto em 10/07/2008, no Teatro da Anatel em Brasília, teve uma inovadora iniciativa teatral, ao pinçar trechos da cena final do IV Ato de La Traviata, para encerramento de sua apresentação, que cobriu peças do Barroco, do Romantismo, do Modernismo e do pós-Modernismo mundial, que já foram disponibilizadas em outros vídeos no YouTube. 
Introduziu alguma alteração nos materiais que utilizou para obter maior força de expressão. Por exemplo, levou ao palco uma roseira, da qual retirou uma rosa murcha identificada com a aparência envelhecida de Violetta, em vez de olhar-se no espelho, como sugeria o libreto. 
A apresentação de Rute Pardini se inicia com a leitura da carta de Germont.
Assim descreve o libretista Piave: 
Trae dal seno una lettera.
"Teneste la promessa... la disfida 
Ebbe luogo! il barone fu ferito, 
Però migliora Alfredo 
È in stranio suolo; il vostro sacrifizio 
Io stesso gli ho svelato; 
Egli a voi tornerà pel suo perdono; 
Io pur verrò. Curatevi... meritate 
Un avvenir migliore. - 
Giorgio Germont". 
desolata 
È tardi! 
Si alza 
Attendo, attendo né a me giungon mai! . . . 
Si guarda allo specchio 
Oh, come son mutata! 
Ma il dottore a sperar pure m'esorta! 
Ah, con tal morbo ogni speranza è morta. 
Addio, del passato bei sogni ridenti, 
Le rose del volto già son pallenti; 
L'amore d'Alfredo pur esso mi manca, 
Conforto, sostegno dell'anima 
stanca 
Ah, della traviata sorridi al desio; 
A lei, deh, perdona; tu accoglila, o Dio, 
Or tutto finì. 
 
Cabe aqui recordar que no início da ópera a voz da protagonista tinha características diferentes: seu timbre era brilhante e alegre, com belos ornamentos. A alegre jovem, tão segura de suas atitudes e desprendida do amor e do julgamento da sociedade, que se apresentava como "Sempre Libera" (Sempre livre), agora se mostra fragilizada. Principalmente, na última cena da ópera, a voz da cantora ganha uma nova expressão de angústia, dando margem ao aparecimento de uma Violetta introspectiva com a voz quase sufocada. 
Na minha tradução livre, vejamos essa cena da leitura da carta: 
Violetta lê na carta que tira de seu regaço: 
"Você cumpriu a promessa... o desafio (ao duelo) 
Aconteceu! o barão foi ferido, 
Mas Alfredo melhora; 
Está em terra estrangeira; seu sacrifício 
Eu mesmo revelei a ele; 
Ele retornará a você pelo seu perdão; 
Eu também irei. Se cuida ... você merece 
Um futuro melhor." 
Ass. Giorgio Germont 
 
Mas Violetta suspira e desolada exclama
"É tarde!" 
Ela se levanta e continua: 
"Eu espero, espero e eles nunca vêm a mim!..." 
Ela se olha no espelho
"Oh! como estou mudada! 
Mas o médico me incentiva a ter esperança! 
Ah! com esta doença está morta toda esperança. 
Adeus, sonhos felizes do passado, 
As cores do rosto já murcharam; 
Me faz falta o amor de Alfredo também, 
Conforto, apoio da alma 
cansada 
Ah, dos sorrisos ao desejo da transviada; 
Concedei a ela (alma) o perdão; 
Acolhei-a, ó Deus! 
Agora tudo está acabado! 
 
De súbito, o pensamento da própria morte provoca em Violetta um angustioso protesto contra seu destino. Aterroriza-a a visão do que a espera: uma sepultura sem cruz e sem flores. Por que morrer quando o universo conspira a favor dela? Subitamente retorna Annina, portando a notícia de que uma surpresa maravilhosa está para acontecer. Violetta fica sabendo que Alfredo, seu amado, está chegando. Um minuto depois os dois estão nos braços um do outro na cama, cantando um dueto. Mas como o Amor é ideal de acordo com o manual do romântico, isto é, não se realiza neste mundo, Violetta ainda canta como num último ímpeto de vida. Com um grito final de êxtase, Violetta cai para trás, morta, enquanto Alfredo ainda a abraça e os outros que vão chegando expressam sua profunda dor pelo seu trespasse. 
 
De acordo com a visão romântica, o Amor do casal só se realizará num outro mundo, já que neste mundo o Amor é inatingível. Por isso, só com a morte da heroína é possível a concretização do Amor. Numa outra dimensão, talvez... Por isso, especialmente na ópera romântica é muito comum a morte da heroína nas suas diversas modalidades. 
 
Rute Pardini, numa atitude criativa de grande efeito, tomou trechos vistos neste enredo comentado e imaginou uma adaptação do IV Ato de La Traviata, para concluir o seu recital no ano de 2008, quando se fez acompanhar por Vânia Marise ao piano, isto é, sem acompanhamento orquestral. Ela tomou a última fala de Violetta e adaptou-a para um contexto diferente, como se ela falasse consigo mesma após a leitura da carta: 
 
È strano! 
Cessarono gli spasimi del dolore. 
In me rinasce m'agita insolito vigore! 
Ah! ma io ritorno a vivere! 
Oh gioia! 
 
Minha tradução livre: 
É estranho! 
Cessaram os espasmos de dor. 
Em mim renasce me agita insólito vigor! 
Ah! mas eu retorno à vida! 
Ó alegria!
 
Link do vídeo da cantora Rute Pardini na última cena do IV Ato da ópera La Traviata de Giuseppe Verdi:

Na última cena do espetáculo, pela primeira vez, Violetta aparece desnuda de sua máscara de cortesã, ela se reconhece "a transviada", e finalmente é por toda a plateia vista como uma mulher com sentimentos nobres: aquela que amou e, principalmente, sofreu pelas convenções sociais. 
Na sua montagem da última cena, Rute Pardini dispensou o inesperado e surpreendente momento de reconciliação entre o velho Germont e Violetta. Também, entendeu que eram dispensáveis as últimas palavras de Violetta a Alfredo, aconselhando-o a encontrar um novo amor numa jovem pudica, virgem. A sua decisão se aproxima mais da obra original de Alexandre Dumas Filho, A Dama das Camélias, em que não existe nenhuma reconciliação entre Margarida (Violetta, na ópera) e o pai de seu amado, Armando (Germont, na ópera), no caso do célebre romance de 1848. 
Conforme foi dito anteriormente, como não haveria no palco nem Alfredo (que na ópera acompanhou Violetta até sua morte), nem Germont, muito menos uma reconciliação plausível, Rute Pardini entendeu mais conveniente mostrar um elemento introspectivo da protagonista, valorizando suas últimas energias e atitudes em face da sensação da proximidade da morte. Parece que Giuseppe Verdi e Francesco Maria Piave alteraram o desfecho da obra original e até a sua intencionalidade, direcionando a maneira como ela foi percebida pela Europa do século XIX. 
 
 
Voo para a Liberdade


 
Violetta tem um breve espasmo de consciência e suas forças reaparecem, em seu leito de morte. Ela vivencia o que se chama "melhora da morte". Rute Pardini julgou que devia tirar proveito desse "renascer" e concebeu, com as asas da imaginação, um adeus ao mundo de Violetta como um voo para a Liberdade. Para a cantora Pardini, o ato de precipitar-se sobre a plateia desvairadamente significaria conseguir um feedback mais natural pelo contato direto (com a plateia) do que poderia captar, de uma forma estática, estando parada no palco. Também é possível interpretar que o ato de ir ao encontro da plateia tem um apelo de comunicação, representa um desejo de a protagonista Violetta desnudar-se (de despojar-se de sua máscara), fazendo aproveitamento pleno desta última oportunidade que possibilitou uma valorização da cena de despedida da vida.

15 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

A edição do vídeo que a soprano RUTE PARDINI intitulou "Um Passeio pelo Romantismo" possibilitou que eu fizesse uma análise mais detida e compreensiva sobre a ária "Addio, del passato" e outros trechos do IV Ato de La Traviata de Giuseppe Verdi e me incentivou a fazer alguns comentários que acho indispensáveis para a compreensão do ideal romântico na Ópera.
Embora com 13 anos de atraso, a presença de cena e musical de Rute Pardini pode ser apreciada no novo vídeo, que vem se juntar aos outros já lançados para deleite de seus admiradores e seguidores.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2021/10/rute-pardini-interpreta-cena-final-do.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Prof. Mário Bruno Gonçalves Carezzato (professor de canto lírico e colaborador do Blog de São João del-Rei) disse...

Gostei muito de ouvi-la.

Jorge Antunes (professor e maestro, atualmente compositor convidado pela Cité Internationale des Arts para compor uma ópera a ser dedicada à memória da Imperatriz Leopoldina) disse...

Oi,

Parabéns, mais uma vez, para Rute e para você.
Abraços,
Jorge Antunes

Lúcio Teixeira (jornalista são-joanense, idealizador e organizador do FELIT-Festival de Literatura de São João del-Rei) disse...

Parabéns, Braga.

Li atentamente e me emocionei ao lembrar da cena final que há muito pude assistir.

Grato

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Fantástica... RUTE PARDINI Virtuosa!!!

Vou repassar para alguns amantes...

OOPS! digo,
amantes da boa música!
Podem guardar sua escopeta!!!
Heitor

Alan Elias da Silva (ex-comandante do 38º Batalhão da Polícia Militar em São João del-Rei) disse...

Boa noite amigos.
Que maravilha de enredo!
O texto prende nossa atenção até seu desfecho.
Bela estória.
A interpretação da Rute foi esplendorosa.
Como sempre!

Parabéns 👏

Daniela Pardini disse...

Bom dia Rute!!! Que linda!!! Uma história que nos prende!!! Parabéns pra vocês! Rute e Francisco!

Tida, irmã da Sãozinha (cantora do Coral Nossa Senhora de Fátima de Divinópolis) disse...

Que momento lindo, que interpretação emocionante! Parabéns, Rute! Você é uma pérola na arte da canção 💐💐💐🙏🏽🙏🏽🙏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽🤩🤩🤩😍😍😍😘

E ao Francisco um agradecimento pela oportunidade de nos contar fatos da história de uma canção e vida.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Bravo!!!!

Marísia disse...

Muito lindo, parabéns !!!!

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga
É preciso aliar domínio técnico e sensibilidade para poder reinterpretar uma obra clássica como "La Traviata"; parabéns à Sra. Rute pela apresentação e a você pelas explanações a respeito !
Cumprimentos
Cupertino

Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Meu caro Francisco Braga,
Gostei muito de sua apresentação de uma ária por nós (Maria e eu) apreciada. Um abraço do Gilberto M. Teles

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente reeleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2021-2023) disse...

Bravo. Como éramos jovens...
Abraços
Paulo

Anizabel Nunes Rodrigues de Lucas (flautista, professora de música e regente são-joanense) disse...

Obrigada. Belíssima ária e belíssima interpretação. Parabéns, Rute!

Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro (escritor, advogado, professor universitário e presidente da Academia Itaunense de Letras) disse...

Prezado Dr. Francisco e Rute,
Boa tarde.
Para mim é motivo de prazer e honra, tê-los entre os meus amigos. E, particularmente, reconheço, além de suas virtudes como pessoas, admiro também os dotes artísticos que lhes foram concedidos por Deus e que vocês, com esforços e trabalhos, souberam aprimorar e que fazem tanto bem àqueles que tem o privilégio de ouvi-los.
Fraternal abraço.
Arnaldo