sexta-feira, 21 de julho de 2023

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 17: “TUDO MEU CARREGO COMIGO”

Por Francisco José dos Santos Braga

 
O pensamento estóico, como o de todas as escolas filosóficas gregas, ultrapassa amplamente o quadro daquilo que entendemos hoje por filosofia. Seu objeto é permitir que o homem atinja a felicidade por meio de uma ascese fundada no conhecimento. O estoicismo não é uma religião. Desprovido de ritos, de culto, de mitos e de revelação, ele se constrói sobre a razão. (...) A filosofia é, para nós, um sistema teórico, uma grade interpretativa. Os Antigos esperavam dela outra coisa, totalmente diferente. Não se tratava, para eles, de fornecer ferramentas de análise para o simples prazer de compreender, mas, antes de tudo, de, por meio dela, chegar a construir um modelo de vida e, portanto, de propor um caminho para a felicidade. Essa felicidade, que desde muito tempo desertou o campo de filosofia, constituía o seu ponto central para os Gregos. Em seu percurso ocidental, a filosofia é encontrada, seja investida, seja limitada pela religião, por tudo o que se refere à prática ou aos fins últimos. Sua laicização contemporânea a deixou um pouco desarmada. Depois de séculos de simbiose, de liberdade vigiada ou de hostilidade disfarçada em sua relação com a religião, a filosofia tem dificuldade para conceber a possibilidade de uma palavra autônoma sobre o homem que lhe permita pensar a si mesmo sem se reduzir, abrindo-lhe uma via ao mesmo tempo prática e racional para a liberdade. (...)
DUHOT, Jean-Joël: Epicteto e a Sabedoria Estóica, São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp. 55-6. 

Filósofo Bias, de Priene

 

Três anedotas ensinam que a riqueza interior é a única que não pode ser tirada de nós, enquanto o que parece ser um grande poder é uma fonte de preocupação e infelicidade. Vejamos o que relatam dois filósofos estóicos e um historiador, todos latinos:

1) Marco Túlio CÍCERO: Paradoxos dos Estóicos, Paradoxo I, cap. I, 8-10

Quamobrem irrideat si quis vult: plus apud me vera ratio valebit quam vulgi opinio: neque ego umquam bona perdidisse dicam, si qui pecus aut supellectilem amiserit, nec non saepe laudabo sapientem illum, Biantem, ut opinor, qui numeratur in septem; cuius quom patriam Prienam cepisset hostis ceterique ita fugerent, ut multa de suis rebus asportarent, cum esset admonitus a quodam, ut idem ipse faceret, 'Ego vero', inquit, 'facio; nam omnia mecum porto mea.' Ille haec ludibria fortunae ne sua quidem putavit, quae nos appellamus etiam bona. Quid est igitur, quaeret aliquis, bonum? Si, quod recte fit et honeste et cum virtute, id bene fieri vere dicitur, quod rectum et honestum et cum virtute est, id solum opinor bonum.
 
Minha tradução: E assim, mesmo que alguém queira zombar disso, contudo a razão certa valerá mais para mim do que a opinião da plebe: nem eu jamais direi que terá perdido bens, aquele que tiver perdido o rebanho ou a mobília; nem deixarei de louvar, muitas vezes, aquele sábio, Bias, que, como penso, conta-se entre os sete. Quando o inimigo tomou Priene, a sua pátria, e os demais fugiram carregando muito das suas coisas, ao ser exortado por alguém a ele próprio fazer o mesmo, dizia: “Eu, de fato, estou fazendo-o: pois todas as minhas posses carrego comigo”. [9] Decerto, ele não considerava como sua propriedade esses joguetes da fortuna, os quais nós ainda chamamos de “bens”. Alguém perguntará: o que é, então, o bem? Se dizemos, com razão, ser bem feito algo que se faça de forma correta, honesta e com virtude, sou de opinião que somente o que é correto, honesto e com virtude é um bem.

Comentários
1) "Os sete sábios” (οἱ ἑπτὰ σοφοί) é o epíteto dado a algumas figuras gregas lendárias, que teriam vivido entre 620 e 550 a.C, e que se destacaram não somente pela excelência do caráter e pela agudeza da mente. A lista dos sete varia de acordo com os diferentes autores, mas todos incluem Sólon, Tales, Pítaco de Mitilene e Bias de Priene. Algumas das máximas a eles atribuídas, como “nada em excesso”, “conhece-te a ti mesmo” parece terem inculcado na cultura grega (e depois romana) as noções de submissão, piedade e virtude. Algumas dessas máximas foram inscritas no templo de Apolo em Delfos. 
2) Paradoxa Stoicorum, primeira obra propriamente filosófica de Cícero (ca. 46 a.C.). O texto revela um exame dos princípios da filosofia helenística – especialmente do Estoicismo –, corrente em Roma em meados do século I a.C.; quanto à forma, o texto parece seguir os princípios gerais da dispositio oratoria; daí, os Paradoxos dos Estóicos aparecerem em meio à Oratória de Cícero.
 
Priene foi uma cidade da Jônia localizada no vale do rio Meandro em frente a Mileto, atualmente em território turco na Anatólia Ocidental.

Templo de Atena em Priene - Crédito: Wikipedia

  
2) VALÉRIO MÁXIMO: Memorabília de Fatos e Ditos, Livro VII, 7.2ext3 não só valida, mas também a reelabora a versão de Cícero:
 
Bias autem, cum patriam eius Prienen hostes invasissent, omnibus, quos modo saevitia belli incolumes abire passa fuerat, pretiosarum rerum pondere onustis fugientibus interrogatus quid ita nihil ex bonis suis secum ferret 'ego vero' inquit 'bona omnia mea mecum porto': pectore enim illa gestabat, non humeris, nec oculis visenda, sed aestimanda animo. Nam si bona tua domicilio mentis inclusa habes, quae nec mortalium nec deorum manibus labefactari queunt, ea ut tibi manenti praesto sunt, ita fugienti non deserunt.  
 
Minha tradução: Depois que os inimigos tinham invadido sua pátria Priene, enquanto todos (pelo menos os que a selvageria da guerra tinha permitido escaparem ilesos) estavam fugindo equipados com o peso de seus bens preciosos, Bias, indagado sobre a razão por que não estava carregando nenhum de seus bens consigo, disse: "De fato, os meus bens eu carrego todos comigo", pois ele estava levando-os em seu coração, não sobre os ombros, não para serem vistos pelos olhos, mas para serem estimados pelo espírito. Pois, se teus bens manténs fechados na morada do pensamento, esses não podem ser danificados nem pelas mãos dos mortais nem pelas dos deuses e como estão sempre à disposição de quem fica parado, da mesma forma não abandonam o que foge.
 
Comentário
1) Valério Máximo foi um historiador latino do século I a.C. e d.C., autor de nove livros intitulados Memorabília de Fatos e Ditos, compêndio de relatos extraídos de diversos autores. Essa compilação conheceu enorme sucesso tanto na Antiguidade quanto na Idade Média.
  
3) SÊNECA: Epístolas Morais 9.18-19 coloca o célebre dito em boca de outro personagem, o filósofo Stilpon (380-300 a.C.), cuja autossuficiência e firmeza são marcantes:
 
Hic enim capta patria, amissis liberis, amissa uxore, cum ex incendio publico solus et tamen beatus exiret, interroganti Demetrio, cui cognomen ab exitio urbium Poliorcetes fuit, num quid perdidisset, 'omnia' inquit 'bona mea mecum sunt'. Ecce vir fortis ac strenuus! ipsam hostis sui victoriam vicit. 'Nihil' inquit 'perdidi': dubitare illum coegit an vicisset. 'Omnia mea mecum sunt': iustitia, virtus, prudentia, hoc ipsum, nihil bonum putare quod eripi possit. 
 
Minha tradução: Pois quando sua pátria foi capturada, seus filhos e esposa perdidos, e Stilpon estava se afastando da calamidade pública sozinho e ainda transmitindo felicidade, Demétrio (cujo apelido era Poliorcetes, depois de sua destruição de cidades) perguntou-lhe se ele havia perdido alguma coisa. Ele disse: "Todos os meus bens estão comigo." Eis um homem forte e valoroso! Ele foi vitorioso sobre a vitória de seu inimigo. "Não perdi nada", disse ele: isso fez Demétrio duvidar se realmente havia conquistado. "Todos os meus bens estão comigo": a justiça, a virtude, a prudência, o próprio fato de não considerar nada um bem que pudesse ser arrebatado.
 
Comentários:
1) Stilpon, discípulo do cínico Diógenes.
2) Demétrio I da Macedônia (falecido em 283 a.C.), filho de um general de Alexandre, o Grande, travou várias guerras no decadente império de Alexandre; daí, Poliorcetes ou "sitiante de cidades" foi o epíteto que Demétrio recebeu, por ser um rei muito violento e muito hábio na guerra de sítio.

7 comentários:

José Luiz Celeste disse...

Bela empresa! So agora vim saber. Um comentário... "ea ut tibi manenti praesto sunt, ita fugienti non deserunt." ... as coisas que te são úteis enquanto parado, da mesma forma não te abandonam qdo fugires"

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Olá, Francisco! O Latim , afinal. é mãe de muitas filhas! Bom domingo, naturalmente , também, para Rute! fr. Joel.

João Alvécio Sossai (escritor, autor de "Um homem chamado Ângelo e outras histórias, ex-salesiano da Faculdade Dom Bosco e ex-professor da UFES (1986-1996)) disse...

Realmente, muito interessante e verdadeiro.

Prof. José Luiz Celeste (ex-professor do Departamento de Métodos Quantitativos da EAESP-Fundação Getúlio Vargas) disse...

SVBEEV


Ave, amice!
Ex prima lectione legere haec omnia vellem. Ubinam eam invenire possum?

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Muito legal! Vamos à leitura!
E muito obrigado por compartilhar essas raridades. (GR)

Geraldo Reis (idem) disse...

Parabéns! Vamos nessa. Muito obrigado!

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Sinceros parabéns pelas traduções. Excelente conteúdo sobre o Estoicismo. O prólogo de Duhot foi muito bem selecionado para esta sua publicação.
Saudações.
Cupertino