quarta-feira, 19 de julho de 2023

SHANGRI-LA: Um paraíso terrestre ou uma prisão mascarada?

Resenha crítica por Nektaría Tcholákou *

Tradução do grego, comentários e bibliografia por Francisco José dos Santos Braga 

Horizonte Perdido (1933), traduzido para o grego por Natássa Varsáki, Atenas: Ed. Jâmblico, 2001

 

No livro de James Hilton, "Horizonte Perdido", que foi escrito em 1933, é apresentada uma comunidade ideal de pessoas localizada em um vale idílico isolado no Tibete. 

Este romance em particular foi transformado em filme duas vezes, primeiro em 1937 e depois em 1973, com a atriz Olivia Hussey, conhecida por seu papel na premiada série de Franco Zeffirelli, Jesus de Nazaré, interpretando a Virgem Maria. ¹

Enquanto os companheiros permanecem no mosteiro ², eles descobrem as belezas do lugar e visitam a pitoresca aldeia do Vale da Lua Azul, como eles o chamam, impressionados com a encantadora paisagem natural que o envolve. O modo de vida das pessoas causa um impacto emocional em Conway, que, tendo experimentado os horrores da Primeira Guerra Mundial em sua juventude, deseja passar o resto de seus dias na paz e tranquilidade do mosteiro. Isso, no entanto, não se aplica a seu jovem colega e amigo, Mallinson ³, que insiste desde o início em que deixem o mosteiro e voltem o mais rápido possível para seus entes queridos que os aguardam ansiosamente. 

Depois de algumas semanas, é combinado o encontro de Conway com o homem no topo da hierarquia em Shangri-La , o Grande Lama. O ex-monge capuchinho, padre Perrault, conta a ele a história de sua chegada ao mosteiro, bem como o modo de vida dos monges e dos habitantes do vale. Em seguida, revela a ele que, graças ao estudo duradouro de exercícios místicos de ioga e uma erva medicinal que cresce exclusivamente na área, eles conseguiram desacelerar o fluxo do tempo e alcançar uma longevidade extraordinária de séculos, com juventude e vigor perpétuos.

Os habitantes de Shangri-La, sob a supervisão e governo do grande Lama, a quem atribuíram poderes divinos, estão completamente isolados do mundo exterior e não têm permissão de deixar a segurança de seu vale. Mesmo no caso de que alguém ousasse uma tentativa de fuga, o mais provável seria que não sobrevivesse, pois além da periculosidade da área, que é isolada e inacessível, os sinais do desgaste do tempo seriam imediatamente visíveis em seu frágil corpo mortal. 

Depois de várias reuniões, Perrault encontra coragem para pedir um grande favor a Conway. Acreditando que o mundo exterior em algum momento será inevitavelmente destruído devido a sucessivas guerras e sofrimento humano, ele implora a ele, quando ele próprio falecer, que continue sua visão de fazer de Shangri-La o berço remanescente da cultura e do espírito humanos. 

Conway, terrivelmente perturbado, decide compartilhar essas revelações extremamente importantes com seu amigo Mallinson. Mas este último, depois de tudo o que lhe é contado, se exaspera, dizendo o seguinte:

Quantas coisas você realmente sabe sobre este lugar além das que lhe disseram? Você viu alguns velhos, nada mais. Fora isso, no entanto, tudo o que podemos dizer com certeza é que tem instalações muito boas e parece ser administrado por pessoas instruídas. Como e por que foi fundado, porém, não fazemos ideia e por que querem nos manter aqui, se é que querem, também é um mistério. Tudo isso, porém, não é desculpa para acreditar no primeiro conto de fadas que você ouviu! Afinal, você é uma pessoa em crise. Você hesitaria em acreditar em tudo o que eles diriam, mesmo em um mosteiro inglês. Portanto, não consigo entender por que você se tornou tão crédulo, simplesmente por estar no Tibete! 
Conway, concordando com o argumento lógico de seu amigo, dá a seguinte resposta:
Observação muito inteligente, Mallinson. A verdade é que, quando somos forçados a acreditar em algo sem evidências tangíveis, tendemos para aquilo que mais nos atrai”. 
Nos últimos anos, tem-se falado cada vez mais em "cidades inteligentes", que vão oferecer a quem para aí se mudar uma vida confortável, repleta de comodidades e segurança. Com a ajuda de tecnologia cada vez mais avançada e em conjunto com a promoção da agenda de mudanças climáticas, está sendo feito um esforço para convencer a opinião pública dos benefícios incomparáveis que esse modelo vivo tem a oferecer. Não é por acaso que na Arábia Saudita já se iniciou a construção de uma tal cidade no deserto, chamada NEOM, baseada no modelo de "crescimento sustentável", que de fora terá a aparência de uma linha de 170 km de extensão. Outro exemplo de tal cidade é TELOSA (da palavra grega τέλος que significa "fim"), que será construída em um futuro próximo pelo bilionário Marc Lore, provavelmente em algum lugar do deserto de Nevada, nos Estados Unidos. 

Considerando a escolha da localização onde as cidades acima serão construídas (ou seja, em algum lugar no meio do nada), pode-se perguntar não apenas se alguém será capaz de sair de tal lugar, mas também por quais meios. Se considerarmos o esforço de Mallinson, que, para deixar o mosteiro, desafiou os perigos da viagem e, como resultado, não sobreviveu, parece um empreendimento condenado antecipadamente. 

Além disso, o cultivo de um clima de medo dos últimos anos, via fenômenos naturais extremos, o novo surto de pandemias e todo tipo de “inimigos invisíveis”, bem como a restrição da livre circulação de pessoas, nos fazem perceber com mais facilidade que a escolha do slogan usado durante a pandemia “Fique em casa, fique seguro” não aconteceu por acaso. Portanto, é importante que qualquer nova avaliação de risco seja tratada com cautela e ceticismo. 

Será que as cidades "inteligentes" serão um lugar de felicidade, como Shangri-La, ou simplesmente uma prisão tecnocrática distópica da qual não haverá saída de emergência?
 

A PRISÃO 

Pelo poeta cipriota Cóstas Móntis


 

O pior não é 
que me trancaram nesta prisão
e tiraram as chaves e foram embora, 
mas que não sei até onde vai a minha prisão, 
cujo contorno ignoro, 
para empreender enfim 
como pessoa também eu
uma tentativa de fuga.
 
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS DO TRADUTOR
 
 
¹  O filme é baseado no livro homônimo de James Hilton.
O diretor do filme de 1937 foi Frank Kapra. 
 

 
O exuberante remake do filme de 1937 saiu em versão musical em 1973 com a produção de Ross Hunter, direção de Charles Jarrott e trilha sonora de Burt Bacharach e Hal David. Apesar de seu excelente elenco (Peter Finch no papel de Richard Conway, Michael York como George Conway, repórter do London Express e irmão mais novo de Richard Conway,  Charles Boyer como Grande Lama, Sally Kellerman como Sally Hughes, Liv Ullmann como Catherine e Olivia Hussey como Maria, etc.), a refilmagem foi um fracasso de bilheteria e crítica.
 

 
Segundo a crítica de roteiros de filmes, Marg Baskin,
Ao escapar da China devastada pela guerra, o avião de um grupo de europeus é sequestrado, sofre uma pane num dos motores e cai no Himalaia, donde são resgatados e levados para o misterioso Vale da Lua Azul, Shangri-La. Escondido do resto do mundo, Shangri-La é um refúgio de paz e tranquilidade para o diplomata cansado do mundo, Richard Conway. Seu ambicioso irmão, George, vê isso como uma prisão da qual ele deve escapar, mesmo que isso signifique arriscar sua vida e destruir a antiga cultura de Shangri-La.
 
²  Mosteiro de lamas (em inglês, lamasery).
 
³  Conway é um cônsul britânico, e Mallinson, seu jovem vice-cônsul.
 
  Embora o autor não explique o significado de Shang, verifiquei que se trata do nome de uma região no oeste do Tibete. Em tibetano, ri significa "montanha" e la quer dizer "passagem". Logo, Shangri-La significaria algo como "passagem da montanha na região de Shang". 
 
Conway fica sabendo que o mosteiro de lamas foi construído na sua forma atual por padre Perrault, natural de Luxemburgo, no início do século XVIII, razão por que imagina corretamente que de fato o Grande Lama já teria completado 250 anos de idade.
 
Costas Montis (1914-2004) foi um autor emblemático do Chipre, nominado para o Prêmio Nobel de literatura em 1984 e nomeado Membro Correspondente da Academia de Atenas, a mais alta honra que a Academia pode conferir a Gregos estrangeiros. 
É muito conhecido não só por sua prosa (coletâneas de novelas, Camelos e outras contos em 1939, Vida Humilde (contos) em 1944, Contos em 1970, Portas Fechadas, romance de 1964, e Afentis Batistas e as outras coisas, romance de 1980, mas igualmente por sua poesia rica de uma dezena de coletâneas). 
Igualmente lindo é seu poema "Os Poetas Gregos":
 
Ελάχιστοι μας διαβάζουν
Ελάχιστοι ξέρουν τη γλώσσα μας 
Μένουμε αδικαίωτοι και αχειροκρότητοι 
Σ’αυτή τη μακρυνή γωνιά 
Όμως αντισταθμίζει που γράφουμε Ελληνικά. 
 
Em minha tradução:
 
Pouco numerosos são os que sabem nossa língua 
Pouquíssimos os que nos lêem 
Vivemos sem que nos tenham feito justiça, sem 
 [aplausos 
Neste recanto afastado, 
Mas isso é compensado por escrevermos em Grego.
 
Fonte: MONTIS, Costas. Obras Completas, tomo 1, Atenas: Apanta, p. 456.
 
 
III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
 
MONTIS, Costas - The official website
 
WIKIPEDIA: verbete Lost Horizon

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Tenho o prazer de lhe enviar uma resenha crítica por NEKTARÍA TCHOLÁKOU para o romance do inglês JAMES HILTON, intitulado HORIZONTE PERDIDO, lançado como um fenômeno em 1933. A autora utilizou uma tradução para o grego de 2001, embora tenha tido traduções bem anteriores a esta na Grécia.

Na sua resenha, a autora questiona se as "cidades inteligentes" são um benefício planejado para a população residente ou se seriam a sua prisão. A própria localização de onde essas cidades (por exemplo, Neom e Telosa) estão sendo construídas já são uma indicação de que seus planejadores pretendem controlar sua população. Parece concordar com um dos personagens do romance, George Conway (ou Mallinson), que desde o início insiste em que devam abandonar Shangri-La que nem fugir de uma prisão, mesmo que isso signifique arriscar sua vida, e destruir Shangri-La, "o berço remanescente da cultura e do espírito humanos."

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/07/shangri-la-um-paraiso-terrestre-ou-uma.html  👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Caro Francisco Braga,
Há muito tempo escrevi sobre Shangrilá.
Espero que goste.
Abraço grande,
Raquel Naveira

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Olá, Francisco e Rute. Obrigado pelo seu artigo sobre Shangri-LA, paraíso ou prisão? Nesse meio tempo tivemos aqui visita de dois frades, que vieram matar saudades do tempo que viveram aqui no Brasil. Foi bom que gostaram!. Grande abraço do irmão f. Joel.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Assisti ao belo filme
Abs

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Caramba, muito citado e pouco lido o romance merece divulgação. Mas a literatura tem dessas coisas, a vida tem dessas coisas.
Um abraço acadêmico de GR.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Interessante debate. Noto porém um tanto forçada a adoção desses parâmetros de comparação feita pela autora. Descabida e paranóica a crítica feita aos chamados "lockdowns" feitas durante a Pandemia.
Grato pela oportunidade da leitura. Saudações,
Cupertino

Pe. Sílvio Firmo do Nascimento (professor, escritor e editor da Revista Saberes Interdisciplinares da UNIPTAN e membro da Academia de Letras de SJDR) disse...

Meu caro Confrade Francisco Braga, agradeço-lhe a remessa do link.