Por REVISTA DA SEMANA *
Comentários por Francisco José dos Santos Braga
A ilustre artista lírica, que as principais plateias da Europa têm calorosamente aplaudido, no decurso de uma conversa que ultimamente teve com um cronista afamado, predisse coisas curiosas a respeito da mulher do século que vem:
“Daqui a cem anos a mulher gozará uma liberdade ilimitada, regalia que hoje não possui, e essa liberdade não a desviará do cumprimento dos seus deveres domésticos.
O lar será mais agradável ao homem, que o procurará com o mais comovido interesse. Cansado do seu dia e do esforço empregado na conquista do bem-estar, quando regressar a casa encontrará na esposa os atrativos que agora não o encantam.
A paz da família enchê-lo-á de infinita alegria.
A mulher contemporânea ainda não compreendeu bem isto.
A que viver daqui a cem anos exercerá um grande império no lar, porque será muito mais inteligente.
— E, Madame ¹, a mulher será então mais formosa?...
— Incomparavelmente mais linda, respondeu a graciosa cantora. A mulher do século XXI há de atingir a suprema beleza. Tenho a certeza de que a mulher do século futuro há de exceder a de hoje em formosura. E, no entanto, no tempo em que vivemos há lindas mulheres de estonteante e fascinante beleza.
— E com relação à inteligência?...
— Muito mais do que a que hoje possui. A mulher do século XXI será tão culta quanto bela.
Porque, verdade, verdade, salvo honrosas exceções, a Eva de hoje é pouco "espiritual". As suas maneiras são rudes e toscas. E para isso concorrem as estúpidas modas que a escravizam.”
Eis os prognósticos bem otimistas de Madame Melba.
E bem pode ser que assim seja. Na evolução dos tempos, é possível que ressurjam os dias esplêndidos da velha Grécia harmoniosa e linda. A mulher andará de túnica, e esse traje dar-lhe-á nobreza e distinção.
O vestuário faz a criatura. Com certeza que daqui a um século esta farrapada grotesca com que nos embonecamos há de ceder o lugar a outro vestuário mais conforme à dignidade humana.
Enfim... veremos se os prognósticos de Madame Melba se confirmam!
Cem anos depressa passam... E nós contaremos.
* REVISTA DA SEMANA² nº 449, edição de 20/12/1908, p. 10.
II. BREVES NOTAS BIOGRÁFICAS DE NELLIE MELBA
“É fácil cantar bem, e muito difícil cantar mal! Quantos estudantes estão realmente preparados para aceitar essa afirmação? Poucos, se algum. Eles sorriem, e dizem: "Pode ser fácil para você, mas não para mim.” E aparentemente pensam que o assunto termina ali. Porém, se eles apenas soubessem que da sua compreensão e aceitação desse axioma depende metade de seu sucesso... Deixe-me dizer o mesmo em outras palavras: “Para cantar bem, é preciso cantar facilmente.”” ³
Nellie Melba (nascida em 19 de maio de 1861, Richmond, perto de Melbourne, Austrália — falecida em 23 de fevereiro de 1931, Sydney) foi uma soprano coloratura australiana, uma cantora de grande popularidade.
Ela cantou no Richmond Public Hall aos seis anos de idade e era uma pianista e organista habilidosa, mas só estudou canto depois de seu casamento com Charles Nesbitt Armstrong em 1882. Ela apareceu em Sydney em 1885 e em Londres em 1886 e então estudou em Paris. Ela fez sua estreia operística como Gilda no Rigoletto de Verdi em 1887 em Bruxelas sob o nome Melba, derivado da contração da cidade Melbourne.
Nos primeiros anos da década de 1890, Melba se apresentou nas principais casas de ópera europeias, incluindo Milão, Berlim e Viena. Consta que, nessa mesma época, Melba embarcou em um "caso" com o príncipe Filipe, duque de Orleans. Eles eram vistos frequentemente juntos em Londres, o que gerou algumas fofocas, mas muito mais suspeitas surgiram quando Melba viajou pela Europa até São Petersburgo para cantar para o czar Nicolau II: o duque a seguiu de perto, e eles foram vistos juntos em Paris, Bruxelas, Viena e São Petersburgo. Armstrong entrou com um processo de divórcio com base no adultério de Melba, nomeando o duque como co-réu. O duque e Melba não retomaram o relacionamento. Apesar disso, o casamento de Melba com Armstrong chegou ao fim quando, tendo emigrado para os Estados Unidos com seu filho, ela finalmente obteve o divórcio dele no Texas em 1900.
Frequentemente ela voltava à Austrália durante os anos do século XX, comprando uma propriedade para si, em Coldstream, uma cidade perto de Melbourne e em 1912 ela construiu o Coombe Cottage. Também fundou uma escola de música em Richmond, que mais tarde virou o Conservatório de Melbourne, onde lecionou a arte do canto.
Durante a I Guerra Mundial, Melba começou seus trabalhos de caridade, levantando elevadas somas para o esforço de guerra dos aliados e doando 100.000 libras. Em reconhecimento, ela foi nomeada Dama Comandante da Ordem do Império Britânico em março de 1918.
Até 1926, ela cantou nas principais casas de ópera da Europa e dos Estados Unidos, particularmente Covent Garden e Metropolitan Opera, destacando-se em Lakmé de Delibes, como Marguerite em Fausto de Gounod e como Violetta em La traviata de Verdi.
Em 1925, ela publicou seu livro Melodias e Memórias. Retornou em 1926 para a Austrália, onde se tornou presidente do Conservatório de Melbourne.
Melba faleceu em Sydney, mas, conforme seu último desejo, quis ser enterrada no Cemitério de Lilydale. No seu túmulo, a lápide traz as últimas palavras de Mimi em La Bohème: "Addio, senza rancore" (Adeus, sem rancor).
Torradas Melba e Pêssegos Melba foram criados em sua homenagem.
“Pêche Melba”, como dizem os franceses, é considerado o doce da diva! A sobremesa foi criada em 1892 pelo grande chef francês Auguste Escoffier para homenagear a cantora australiana Nellie Melba, por ocasião da apresentação da ópera Lohengrin de Wagner, em Covent Garden. O duque de Orléans deu um jantar no Savoy para comemorar seu triunfo. Para a ocasião, o chef Escoffier presenteou Nellie com uma sobremesa de pêssegos frescos servidos com sorvete de baunilha em um prato de prata no topo de uma escultura de um cisne de cristal, que é apresentado na ópera. Então ele apresentou a sua criação (como mostra a foto), servida num cisne de cristal, decorada com ninhos de caramelo!
A torrada Melba tem uma história diferente. A torrada foi criada para ela em 1897 pelo seu mesmo fã, o Chef Escoffier. Consta que a cantora estava muito doente, necessitando de um alimento básico para sua dieta. O nome da torrada foi a sugestão de César Ritz numa conversa com o Chef Escoffier. Na França, costumam chamar as torradas Melba de "croûtes en dentelle".
Recomendo assistir a um trecho do filme de 1963 chamado The Incredible Journey (A Incrível Jornada) que dos 2:26 até 15:27 cobriu a fabulosa biografia de Nellie Melba, com legendas em inglês.
III. GRAVAÇÕES E TRANSMISSÕES DE NELLIE MELBA
Melba fez inúmeras gravações de sua voz em fonógrafo na Inglaterra e na América entre 1904 (quando ela estava na faixa dos 40 anos) e 1926. A baixa fidelidade de áudio das gravações de Melba reflete as limitações dos primeiros dias da gravação de som comercial. As gravações acústicas de Melba (especialmente aquelas feitas após sua sessão inicial de 1904) falham em capturar harmônicos vitais para a voz, deixando-a sem o corpo e o calor que possuía em vida. Apesar disso, elas ainda revelam que Melba tinha uma voz de soprano lírica quase perfeitamente pura com coloratura sem esforço, um legatto suave e entonação precisa. Exemplos de tais gravações em fonógrafo:
1) Home, Sweet Home
2) Jewel Song (Ah! je ris de me voir da ópera Fausto de Gounod)
3) Willow Song (Piangea cantando... O salce! Salce!... Ave Maria da ópera Otello de Verdi) - 1926
4) By the waters of Minnetonka (1923)
5) O soave fanciulla da ópera La Bohème (1907)
Caruso & Melba
6) Vissi d'arte, vissi d'amore da ópera Tosca (1907)
IV. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Junto com a atriz May Whitty, Nellie Melba foi nomeada Dama Comandante da Ordem do Império Britânico
nas Honras de Ano Novo de 1918, sendo a primeira
artista de palco a receber esta ordem, por seu trabalho de caridade
durante a Primeira Guerra Mundial, e foi elevada a Dama da Grande Cruz da Ordem do Império Britânico em 1927.
Ela foi a primeira australiana a aparecer na capa da revista Time, em abril de 1927.
Um
vitral em homenagem a Melba foi erguido em 1962 na Capela Memorial dos
Músicos da igreja de St Sepulchre-without-Newgate, em Londres. Ela é uma
das duas únicas cantoras – a outra é Adelina Patti – com um busto de
mármore na grande escadaria da Royal Opera House, Covent Garden.
² A Revista da Semana,
fundada por Álvaro de Tefé, filho do Barão de Teffé, começou a
circular a 20 de maio de 1900, com a ajuda de Medeiros e Albuquerque e
Raul Pederneiras, e surgiu no contexto da modernização da cidade do Rio
de Janeiro em 1900. A capa da primeira edição foi a comemoração do IV
centenário do descobrimento do Brasil, sendo a primeira revista nacional
a publicar uma fotografia impressa. Logo após sua criação, foi
encartada no Jornal do Brasil, ao qual pertenceu até 1915. Neste ano foi comprada pela Companhia Editora Americana, tendo recebido maquinaria moderna vinda dos Estados Unidos para sua impressão com adoção de novas cores. Tendo se desvinculado do Jornal do Brasil, a revista passou a aproveitar os avanços da fotografia, fazendo largo uso dessa forma de comunicação. Suas reportagens saíam repletas de fotos, algumas trazendo muito mais fotos do que notícia escrita.
Assim
se dava a produção da Revista da Semana: com um gênero de jornalismo
literário em seus textos e com muitas ilustrações, fotos e caricaturas,
que faziam dela um semanário elegante e de fácil leitura. O periódico
foi também um veículo importante para as charges e ilustrações de J.
Carlos, Raul Pederneiras e Orlando Mattos, entre outros.
Apesar de conquistar diferentes tipos de leitores, a Revista da Semana era de fato voltada para homens, trazendo a masculinidade na maioria de suas capas, como produtos à venda.
Em
1915, a revista foi vendida a Carlos Malheiro Dias, Aureliano Machado e
Artur Brandão. Depois disso, as edições foram muito mais voltadas para o
público feminino, mudando seu editorial. Uma seção criada em 1917, “Jornal das Famílias”,
trazia assuntos considerados do universo feminino na época, como
beleza, costura, receitas e educação das crianças. Outra coluna que fez
sucesso foi o “Consultório da Mulher”, dedicado às respostas de cartas das leitoras da revista.
Em 1948, a Revista da Semana
começou a dedicar fascículos a atrizes do cinema mundial. Foram
homenageadas as seguintes atrizes: Rita Hayworth, Jane Russel, Joan
Caulfield, Janis Carter, Ava Gardner, Adele Jergens, Marguerite Chapman,
Lana Turner, Maria Della Costa e Eva Todor.
Sua última edição saiu publicada em 1959.
Cf. Resenha: The Melba Method in The Musical Times (vol. 67, nº 999 (01/05/1926), p. 427.
8 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
No presente artigo, a primeira diva operística global da Austrália NELLIE MELBA fez uma profecia do que viria a ser a mulher do século XXI. Servi-me dessa curiosa matéria traduzida pela REVISTA DA SEMANA de dezembro de 1908 para homenageá-la com minhas breves notas biográficas e exemplos de gravações e transmissão de voz através de fonógrafos da grande soprano coloratura australiana.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/09/a-mulher-do-seculo-xxi.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...
"De la musique avant toute chose", meu caro Francisco
Braga. Obrigado.
Abraço de
Anderson
Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...
Braga, bota note!
Domingo termina com muita luta por aqui, por isso rgistro que ainda não li a matéria que, pelo que anuncia.deve ser de fato muito interessante. Tenho certeza de que, mais uma vez, vou me deliciar e vou aprender muito.
Muito obrigado.
Forte abraço poético de
Geraldo Reis (BH. 01/09/2024)
Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, atual Terceiro Vice-Presidente TJMG, escritor e membro do IHG-MG e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...
Que beleza!
Abs
Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga
Fascinante personalidade ! Muitíssimo bem lembrada, inclusive porque estamos afinal no século XXI, ou pelo menos ainda no seu primeiro quartel, e as previsões otimistas de Nellie Melba vieram a se concretizar, a despeito delas não tratarem das suas contradições.
Saudações,
Cupertino
Manuela Ferrari (jornalista, redatora e colunista do Jornal de Letras; assessora de projetos culturais no Instituto Antares de Cultura e conselheira do CIEE-Rio) disse...
Prezado Franscisco,
Que belo texto, poderia nos enviar para publicação no Jornal de Letras, em novembro?
Obrigada,
Manoela Ferrari
Pe. Sílvio Firmo do Nascimento (membro da Academia de São João del-Rei e da Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos) disse...
Gratidão pela remessa do link.
Fernando de Oliveira Teixeira (advogado, professor universitário e poeta, decano da Academia Divinopolitana de Letras) disse...
Um texto que evidencia sólida visão do universo feminino. Meu grande abraço para você e Rute.
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