sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

ALEGRIA


Por Antón Pávlovitch TCHÉKHOV
Traduzido do russo e comentado por Francisco José dos Santos Braga

"Alegria" é um conto humorístico de Antón Tchékhov publicado originalmente no jornal Espectador na edição número 3 de 08/01/1883 p. 7, com o título "Grande Honra!" literalmente, assinado pelo pseudônimo Antocha Tchekhonté.

 
Era meia noite. 
Mítya ¹ Kuldárov, excitado e despenteado, penetrou no apartamento de seus pais e rapidamente correu por todos os cômodos. Seus pais já tinham ido dormir. Sua irmã estava na cama e se entretinha com a leitura da última página de um romance. Seus irmãos colegiais dormiam. 
Donde vens?  surpreenderam-se os pais.  O que há contigo? 
Ah, não perguntem! Eu nunca esperava por isso. É... é incrível. 
Mítya caiu na gargalhada e sentou-se numa poltrona, incapaz de ficar de pé de tanta felicidade. 
É incrível! Vocês nem imaginam! Olhem só! 
A irmã pulou da cama e, cobrindo-se com um cobertor, achegou-se ao irmão. Os colegiais acordaram. 
O que há contigo? Tua cara não é esta! 
Estou assim de tanta alegria, mamãe! Afinal, agora toda a Rússia me conhece! Toda ela! Antes, só vocês sabiam que havia no mundo o escriturário Dmitry Kuldárov, e agora toda a Rússia sabe disso! Mamãe! Oh, meu Deus! 
Mítya ergueu-se de um salto, correu por todos os quartos e voltou a sentar-se. 
O que aconteceu? Fala sério! 
Vocês vivem como animais selvagens, não leem jornais, não prestam a menor atenção ao que é publicado, mas há tanta coisa maravilhosa nos jornais! Se algo acontece, tudo é conhecido agora, nada fica escondido! Como estou feliz! Oh meu Deus! Afinal, os jornais só publicam informações sobre pessoas famosas, mas aqui me tomaram como exemplo e publicaram sobre mim! 
O que dizes? Onde? 
Papai ficou pálido. Mamãe olhou para o ícone e fez o sinal da cruz. Os colegiais se ergueram de um salto e, assim como estavam, em suas camisolas curtas, se aproximaram do irmão mais velho. 
Sim, senhores! Eles publicaram algo sobre mim! Toda a Rússia me conhece agora! Mamãe, guarde esta página como lembrança! Vamos lê-la algumas vezes. Olhem! 
Mítya tirou do bolso a página do jornal, entregou-a ao pai e apontou com o dedo uma passagem marcada com lápis azul. 
Leiam! 
O pai pôs os óculos. 
— Continua lendo! 
A mãe olhou para o ícone e fez o sinal da cruz. Papai tossiu e começou a ler: 
 
 
“No dia 29 de dezembro, às onze horas da noite, o escriturário Dmitry Kuldárov...
Vocês vêem, vêem? Prossegue! 
... o escriturário Dmitry Kuldárov, saindo de um bar, na Pequena Bronnaya, na casa Kosikhin, e estando em estado de embriaguez...
Éramos Semyon Petróvitch e eu... Tudo é descrito em detalhes! Continua! Prossegue! Ouçam! 
... e encontrando-se bêbado, escorregou e caiu debaixo do cavalo do cocheiro que estava ali, Ivan Drótov, um camponês da aldeia Durykan, distrito de Yukhnovsky. O cavalo assustado, tendo pisoteado em cima de Kuldárov e tendo arrastado o trenó em que se encontrava Stepan Lukov, o comerciante de segundo grau da associação de Moscou, correu pela rua e foi detido pelos porteiros. Kuldárov, achando-se sem sentido no primeiro momento, foi levado para a delegacia e examinado por um médico. O golpe que ele recebeu na nuca...
Está falando de mim sobre o eixo (do trenó), papai. Prossegue! Continua lendo! 
... que ele recebeu na nuca, é considerado como leve. Sobre o ocorrido foi lavrado um boletim de ocorrência. A vítima recebeu assistência médica...
— Me mandaram molhar a nuca com água fria. Já leu? Hum? Eis aí! Agora (a notícia) está se espalhando por toda a Rússia! Me deixa ficar com a página! Mítya pegou o jornal, dobrou-o e colocou-o no bolso. 
Vou correr até os Makárov, vou mostrar a eles... Ainda preciso mostrar aos Ivanítskys, Natálya Ivánovna, Anísim Vasílyevitch... Vou correr. Adeus! 
Mítya colocou seu boné com um distintivo e, triunfante, alegre, correu para a rua.
 
 
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II. BREVE ANÁLISE LITERÁRIA DE "ALEGRIA" por Francisco José dos Santos Braga
 
Considero que o conto “Alegria” pode servir de exemplo para se aplicar a expressão atual de 15 minutos de fama, ou seja, a busca por visibilidade midiática de curta duração de determinado indivíduo ou fenômeno. A expressão 15 minutos de fama é mais usada em referência a celebridades da indústria do entretenimento, como reality shows, e das redes sociais (Facebook, YouTube, WhatsApp, Instagram, Twitter, etc.). Ela teve origem numa citação atribuída a Andy Warhol em 1968. Observe que esse termo muito expressivo se aplica ao enredo do nosso conto e é simplesmente surpreendente que o autor russo tenha tido a sensibilidade e o dom de abordar, de forma irônica, a estupidez de seu herói no conto, com características atuais e, provavelmente, de todas as épocas, tendo em vista que foi escrito em 1883, quase um século antes do seu uso mais recente nas redes sociais. O fato de existir um tipo de pessoas que querem se tornar famosas a qualquer custo é um fenômeno comum. Mas se uma pessoa tem sede de fama por qualquer meio, isso já é estupidez.
 
O personagem principal do conto “Alegria”, Mítya Kuldárov, também parecia engraçado quando adentrou os cômodos da casa dos pais com visível agitação.
A princípio, os pais não entenderam e ficaram surpresos por que o filho estava tão feliz. Quando lhe indagaram o motivo de tanta alegria, Mítya lhes explica que era por ver seu nome estampado em um jornal, que mereceu uma reportagem inteira sobre o seu feito.
Estavam desconfiados e incrédulos. Afinal, os jornais só publicam sobre celebridades e, de repente, voltam sua atenção para ele, uma pessoa simples e desconhecida.
A verdade é que o artigo era sobre como ele foi atropelado por um cavalo enquanto estava bêbado.
É claro que essa alegria poderia ser compreendida se houvesse uma razão real para uma pulsão tão violenta de emoções. Mas então o pai começou a ler o conteúdo da reportagem: “... estando embriagado, ele escorregou e caiu sob o cavalo de um cocheiro que estava ali, um camponês da aldeia. O cavalo assustado, tendo pisoteado Kuldárov e arrastado o trenó com um importante comerciante de Moscou "a bordo", correu pela rua e foi detido pelos porteiros...” Neste ponto, tudo mudou de figura.
No final, o autor observa que, triunfante e alegre, o herói correu a mostrar a reportagem jornalística a outros amigos e vizinhos.
 
Enquanto ri do herói, o autor faz um alerta: Tchékhov quer que o leitor se reconheça através do herói, pense em si mesmo e tente se tornar uma pessoa diferente – de bom senso, inteligente, com senso de autoestima verdadeira.
 
Tchékhov, ao criar a história “Alegria”, abordou um problema muito relevante.

Infelizmente, em nossa época,  a situação dos "15 minutos de fama" recrudesceu muito. Hoje em dia, para se tornar famoso, alguém não precisa ser o herói de alguma façanha admirável. Basta postar na internet ou, por exemplo, participar de algum reality show. Afinal, jovens estúpidos se gabam de suas piores qualidades para todo mundo, algo que deveriam esconder cuidadosamente e procurar exibir suas melhores qualidades. E nisso eles são semelhantes ao personagem principal do conto de Tchékhov.

Eu me pergunto o que os pais de Dmitry Kuldárov pensaram quando ele os acordou à meia-noite e os chocou com uma notícia tão incomum. Como um contista primoroso, Tchékhov evita falar da reação dos pais. Embora o autor não tenha mencionado a possível decepção deles com o filho, é exatamente isso que se pode deduzir pelas entrelinhas. Especialmente, a mãe é mencionada duas vezes, virando-se em direção ao ícone e persignando-se. Pode-se imaginar a sua decepção quando ficou sabendo do verdadeiro motivo da alegria de Dmitry. Houve claramente a percepção de que seu filho tinha perdido sua dignidade, ao gabar-se, não do bem, mas do mal que praticou. Em russo há um provérbio que diz: "A boa fama é a melhor riqueza."
²
 
DESCRIÇÃO

Escola literária: realismo
Gênero: narrativo em prosa
Foco narrativo: centrado na 3ª pessoa discursiva. O narrador é onisciente.
Característica: conto humorístico
Local de ação: Rússia
Época de ação: Tempos modernos (fins do século XIX)
Enredo: Linear


 
III. NOTAS EXPLICATIVAS

¹  Diminutivo de Dmitry.

²  Em russo: «Добрая слава – лучшее богатство».

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

PALESTINA: APONTAMENTOS MANUSCRITOS DE EÇA DE QUEIROZ

Por FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA 
Dedico este post a ANTÓNIO VALDEMAR, jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras-cadeira nº 3, por sua dedicação diuturna, provas de amizade permanente e colaboração efetiva ao Blog de São João del-Rei.
 
Folhas Soltas: Palestina, Alta Síria, Sir Galahad, Os Santos (1966)

Eça empreendeu uma viagem ao Oriente Próximo 
¹, especificamente ao Egito, Palestina, Síria e Líbano, graças à sua peregrinação turística de 23 de outubro de 1869 a 3 de janeiro de 1870, a convite de seu amigo e futuro cunhado D. Luís de Castro Pamplona, conde de Resende, com o pretexto de assistir à inauguração do Canal de Suez marcada para o dia 17 de novembro. Foram eles dos poucos portugueses que tiveram oportunidade de comparecerem à abertura daquele canal artificial que ligaria o mar Mediterrâneo ao mar Vermelho e este ao Oceano Índico, um dos grandes exemplos de engenharia daquela época. Entre os dias 19 e 21 de janeiro de 1870, o autor publicou na coluna Folhetins do Diário de Notícias quatro crônicas de viagem, em forma de carta, com o título "De Port Said a Suez". Segundo escreveu o então jovem escritor de 23 anos, foram "dias confusos e cheios de factos". Os apontamentos dessa peregrinação não foram publicados nessas crônicas. Na correspondência de Eça, ele revelou a intenção de escrever um livro sobre essa viagem ao Oriente Médio, mas nunca o fez. Entretanto, foi essa experiência a de que se valeria, anos mais tarde, para inspirar as aventuras do personagem Teodorico, ao compor um dos seus melhores e mais originais romances, A Relíquia (1887). 
 
Ilustração dos primeiros navios a atravessar o canal  do Suez, entre Kantara e El-Fedane. Digitalização a partir de uma gravura no Appleton's Journal of Popular Literature, Science, and Art, 1869. 
 
O canal de Suez

 
De posse dessas crônicas e de suas anotações manuscritas, mais tarde, dois de seus filhos organizariam duas obras póstumas queirozianas: O Egipto: Notas de Viagem  obra coligida no Diário de Notícias e publicada, a partir das crônicas jornalísticas, pelo filho de Eça, José Maria D’Eça, em 1926, e Folhas Soltas (1966), obra desenvolvida pela filha de Eça, Maria Eça de Queiroz de Castro, contendo apontamentos manuscritos durante o circuito palestiniano-hebraico. Na sua viagem, que tanto contribuiria para a sua formação, Eça embarca de Lisboa em navio com destino ao Cairo depois de paragens em Cádis, Gibraltar e Malta. 
 
O jovem Eça, aos 23 anos de idade, realizou tudo isso numa fase histórica na qual o povo da Aliança ainda não aderira ao sionismo que Theodor Herzl ² lançaria como ideal do regresso dos judeus à sua terra de origem, a Eretz Israel, e que culminaria, em 1948, na fundação do Estado de Israel.
 
Preliminarmente, sobre a montagem dos livros póstumos pelos dois filhos, alguns vêem uma postura equivocada, portanto criticável, na forma como foram coligidos os apontamentos de Eça. Por exemplo, Rui Lopo, membro do Movimento Internacional Lusófono e da comissão organizadora do Congresso “Eça de Queiroz, nos 150 anos do Canal do Suez”, realizado no período de 15 a 18 de novembro de 2019, critica os textos póstumos (montados pelos filhos):
Acho que eles fizeram o melhor que sabiam e podiam: o filho coligiu e montou O Egipto – Notas de Viagem em 1926 e a filha transcreveu a Alta Síria e a Palestina nas Páginas Soltas que edita nos anos 40. Grande mérito! O que eu estava mesmo a pensar era no Carlos Reis e sua equipa que ainda não fizeram a edição crítica a partir dos manuscritos. Quanto mais tempo teremos de esperar por eles? Isto é, o filho assume, no prefácio ao Egypto”, que cortou repetições, frases soltas, apontamentos, omissões, hesitações... isto é, aquilo que chamamos hoje "material em bruto". Eu acho que hoje em dia, para autores como o Pessoa, o Eça ou outros gigantes, tudo isto deve ser conhecido. Até para percebermos e aprendermos com a sua laboriosa oficina. E a Net pode ajudar a divulgar estas edições críticas – feitas com escrúpulo filológico – que naturalmente se dirigem a um público especializado. Para o grande público essa edição já disponível é óptima. Percebo que em papel seja difícil e oneroso publicar este tipo de projectos. A própria (grande queiroziana) Beatriz Berrini tentou cotejar o que o filho fez com o que o Eça escreveu e infelizmente desistiu, pela dificuldade da decifração caligráfica de textos que podem ter sido apontamentos no café, em cima de um camelo, e suas reescritas e reelaborações mais tarde da noite, no hotel Shepherd's. Uma futura edição crítica "ideal", num momento em que há muito tempo passou o prazo legal que oferece o Eça ao domínio público, devia conter: fotografias de todos os manuscritos; transcrição sistemática de tudo  apontamentos soltos, tópicos, textos compostos, textos fragmentários, repetições, passagens a limpo; proposta de edição dos filhos com devida vénia histórico-crítica; nova proposta de edição dando conta de toda a fortuna crítica destes textos, cotejando todas as variantes e confrontando com os outros textos de temática conexa.” (grifo nosso)
Enquanto essa autêntica edição crítica não é realizada, Lopo recomenda a edição, lançada pela Relógio d'Água com a supervisão de Maria Filomena Mónica, que é por enquanto talvez a melhor aproximação disponível. E beneficia ainda do fato de, ao contrário de livros posteriores publicados por aquela editora, não estar inquinada pelo dito «acordo ortográfico de 1990». ³
 
Comungando com a ressalva feita por Rui Lopo e endossando os argumentos sobre a necessidade de se efetuar uma edição crítica” principalmente de O Egipto e Folhas Soltas, vou focalizar o conteúdo do livro "Folhas Soltas" nos moldes atuais e, mais especificamente, a seção dedicada à Palestina, por limitação de espaço de uma matéria típica de blog. Seja como for, os excertos selecionados estão acompanhados de muitas reticências (o livro está repleto delas),  não de três pontos que indica algo implícito com a interrupção da frase, mas de uma dezena deles que denota a omissão de um trecho inteiro, deixando claro que houve uma interrupção do pensamento do autor , o que possivelmente indique que a filha de Eça tenha feito alguma espécie de censura ao que vinha a seguir ou que ela não tenha sido capaz de decifrar o conteúdo do texto omitido, sem fazer qualquer referência ao motivo da omissão. Teria sido apagado por ação do tempo ou de cupins? Não se sabe. O que o leitor percebe é que praticamente não há página do livro sem essas alongadas reticências esquisitas”.
 
[LIMA, 1997] descreve a impressão de Eça ao por o pé no solo egípcio: "Esta jornada à terra do Egipto e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira", que ele coloca na boca de Teodorico, n'A Relíquia. Segundo a autora, Eça tinha feito leituras preparatórias da sua viagem ao Oriente Médio. Jean Girodon  detectou em Maxime Du Camp, Nerval, Edmond About e Gautier, suas fontes mais importantes. Por isso, o Oriente terá por vezes, para ele, o aspecto de déjà vu.
Quando a realidade não corresponde ao mito, o tédio o invade diante da situação desapontante. Embora, quanto ao Egito, a atitude de desapontamento seja bem rara em Eça, foi assim que se sentiu
— desapontado ao por o pé em Alexandria e no porto de Jaffa e Jerusalém na Palestina, o que é uma característica dos seguidores do Orientalismo do século XIX .

Eça estava ainda impregnado de alguns estereótipos negativos sobre os judeus, como se pode constatar folheando o referido apanhado de notas de viagem intitulado Folhas Soltas (1966), no qual evoca, não a esplêndida cidade do longínquo passado judeu, mas a degradada e miserável cidade de então, tão suja e indigente como a viu o próprio Theodor Herzl, em 1898, autor d'O Estado Judeu (1896), onde propôs ao povo errante o fim da Diáspora e o regresso ao seu território inicial, restaurando o estado milenarmente perdido. Também ele lançou em Basileia, em 1897, o seu primeiro congresso sionista. Vejamos alguns trechos da má impressão que causaram em Eça as cidades de Jaffa e Jerusalém. Neste trabalho vou me cingir a apresentar trechos de Folhas Soltas, com explicações, quando necessárias.

Nas primeiras 20 páginas, a organizadora Maria D'Eça de Queiroz faz a Apresentação da obra, não na sua posição usual, mas estranhamente dentro da seção PALESTINA.
Na página seguinte há um esboço de mapa da Palestina desenhado por Eça, o qual é reproduzido abaixo:
Esboço de mapa da Palestina desenhado por Eça

A impressão que o desembarque em Jaffa causa em Eça não foi das melhores, conforme registra a p. 22:
(...) Quando os árabes que nos trouxeram às costas, do barco às pedras molhadas do cais, nos pousaram pesadamente no chão, a cidade apareceu-nos na sua triste realidade.
As casas parecem edificadas com restos de velhos castelos.
Esta aparência é constante.
As paredes têm o aspecto de muralhas altas abertas de pequenas janelas...... 
fragmentos de ameias cercam as casas......
As ruas são escadarias estreitas, escorregadias, húmidas, em declives poderosos e violentos.
Passa-se infinitas vezes sob arcos por meio de largas portas ogivais que cerram as duas orlas do casario. Há um cheiro infecto, um silêncio e uma solidão tristes. O que vale é a luz, a doce luz que tudo aclara, pinta, alegra. (...)

Eis como Eça descreve Jerusalém nos seus apontamentos manuscritos de 1869 reproduzidos nas pp. 33-37:
“(...) As ruas são estreitas, lajeadas de pedras, cheias de lama, escorregadias, inclinadas, sujas, miseráveis.
É a miséria da população, o desleixo oriental, as contradições violentas do clima. Daí a melancolia de Jerusalém. (...)
Tudo o que se vende ali está numa promiscuidade miserável. Essas ruas são as mais povoadas, ordinariamente. Nas grandes ruas abertas, há um silêncio, uma solidão de cidade saqueada. (...)
O bairro judeu é o mais miserável. Nada tão imundo, tão devastado, tão cheio de negrura. Parece incrível que homens com sensações e princípios possam voluntariamente viver naquela imundície.
É todavia o bairro mais curioso, mais vivo, mais cheio de multidão. Mas só nalgumas ruas principais onde se encontra a verdadeira confusão das raças. É primeiramente o Judeu. São belas pela energia e pureza das linhas aquelas fisionomias. Pálidos, direitos, de traços duramente aquilinos, expressão sombria, concentrada, grandes barbas. Aquelas figuras altas, caminham devagar, curvadas, com ódio nos seus agudos olhos negros. (...)
Avareza, ódio, astúcia, fanatismo, orgulho, as figuras têm alguns destes poderosos e ativos elementos da vida moral.
Depois dos Judeus, a raça mais espalhada é a dos Árabes. Com o seu turbante branco ou verde, quando são da família do profeta, a sua fisionomia viva, aberta, poética, com os belos, os profundos, os luminosos olhos sírios.
São os padres Arménios com as suas túnicas pretas e o capuz negro, na sombra do qual aparece todo o vigor das suas enérgicas cabeças do Jerusalém sacerdotal. 
Os Beduínos passam a cavalo com as compridas lanças, os albornozes brancos listrados de preto, os keffiehs”...... pendentes sobre as costas, elegantes, queimados, enrugados, chupados pelo sol.
Vão os padres gregos, sérios, com os barretes quadrados, largas cabeças, grandes barbas, traçando majestosamente a enorme aba da sua túnica negra.
São, enfim, os Coptas vestidos à oriental, todos de negro.
As mulheres são ainda umas escravas sujas, doentes, esmagadas pelo trabalho, fatigadas do casamento, têm ainda a beleza do traço e o profundo olhar que deviam ter as antigas companheiras de Ester. (...)
Acho que são suficientes esses trechos extraídos da seção Palestina” do livro Folhas Soltas, embora dela constem ainda no seu índice: o Santo Sepulcro, a Mesquita de Omar, a Mesquita de El-Aksa, depois o Getsêmani, o vale do Cédron, a piscina de Siloé, os conventos abissínio e armênio, as cidades próximas de Betânia e Belém, e, através do deserto de Judá, o Mar Morto, em seguida Jericó, a cidade mais antiga do mundo ainda habitada, e a colina de Galgala, "onde Josué acampou" e que agora "é assim o lugar de danças". E a filha de Eça comenta com tristeza: "Agora, ali, dança-se  e o jovem peregrino, mais uma vez, com surda amargura, nota a indiferença como é tratado o solo sagrado, esquecida a antiquíssima tradição".
É importante observar-se que esses locais sagrados os dois amigos conheceram a cavalo, e "sempre a cavalo  até chegarem a Jaffa onde deviam embarcar para a velha Síria".

 
II. NOTAS EXPLICATIVAS

¹ O Oriente Próximo, ou Próximo Oriente, compreende a região da Ásia próxima ao mar Mediterrâneo, a oeste do rio Eufrates, incluindo: Síria, Líbano, Israel, Palestina e Iraque.  Nos contextos políticos e jornalísticos modernos, esta região é normalmente considerada como compreendida no Médio Oriente ou Oriente Médio.
 
² Theodor Herzl visita a Palestina em outubro de 1898, encontrando-se com Guilherme II perto de Jaffa e, depois, em Jerusalém, procurando convencer o imperador alemão a criar um protetorado alemão judaico na Palestina, em território otomano, ideia com a qual o Kaiser simpatizava.
Der Judenstaat (O Estado Judeu) é um livro escrito em alemão pelo jornalista judeu austro- húngaro Theodor Herzl, e publicado em fevereiro de 1896 em Leipzig e Viena. Esse livro é considerado o ponto de partida do movimento sionista mundial, pelo qual pregava que o problema do antissemitismo só seria resolvido quando os judeus dispersos pelo mundo pudessem se reunir e se estabelecer num Estado nacional independente. O jornalista Herzl havia coberto julgamento do caso de Dreyfus para o jornal austro-húngaro e também foi testemunha das manifestações em Paris após o julgamento em que muitos entoaram pelas ruas palavras de ordem de "Morte aos Judeus"; isto convenceu-o da possibilidade de as manifestações anti-judaicas atravessarem as fronteiras e repercutirem até a Polônia ou Alemanha, países que reconheciam sua influência.
No seu livro defendeu que a melhor maneira de construir um estado judeu era formar um Congresso Sionista composto apenas por judeus. Das suas ideias à prática, não demorou muito para que ele formasse o “Sionismo Político”. Em 29 de agosto de 1897, o primeiro Congresso Sionista desde a diáspora foi realizado em Basileia. Durante o congresso foi criada a Organização Sionista Mundial, e Herzl foi eleito presidente.
O que Herzl escreveria, em 1898, no seu diário, sobre a miséria e sujidade da degradada cidade quase nada difere do retrato que Eça deixou no seu diário de bordo:
“Quando eu me lembrar de ti nos dias a virem, ó Jerusalém, não será com prazer. O escuro sedimento de dois milénios cheios de intolerância desumana e sujidade infesta as avenidas com o desagradável mau cheiro dos seus casebres.(...) Se alguma vez obtivermos Jerusalém e se na altura eu ainda for capaz de fazer alguma coisa por isso, a primeira coisa que faria seria limpá-la. Eu limparia tudo o que não se possa qualificar de sagrado, construiria casa para os trabalhadores fora da cidade, eliminando os casebres, arrasando-os, queimando todas as ruínas não-sagradas e transferindo para outro local os seus bazares. Então, retendo embora o velho estilo arquitectónico na medida do possível, erigiria uma cidade confortável, arejada com esgotos próprios em redor dos locais sacros.(...) Estou convencido de que uma magnífica Nova Jerusalém podia ser criada fora das velhas muralhas da cidade. A velha Jerusalém ficaria Lourdes e Meca e Yerushalayim. Uma cidade muito bela e elegante seria então uma possibilidade real.”
Quem conhece a atual cidade de Jerusalém, sobretudo depois da sua israelização integral em 1967, sabe que esta fervorosa profecia do fundador do sionismo se havia de realizar, tornando-se, de fato, a cidade de Salomão: uma urbe airosa, belíssima e de uma extrema limpeza.
 
 
Jean Girodon era então "leitor" da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, nomeado pelo Governo Francês para ser agente dinâmico do ensino e da difusão da língua e da cultura francesas, responsável pela cadeira de Filologia Românica e figura nuclear da vida do Instituto de Estudos Franceses (criado por Eugénio de Castro na década de 30). Como se vê, "leitor", nesta acepção, não tem nada a ver com o sentido daquele que lê. Em Portugal, o termo é usado para designar o professor de Língua e Cultura de seu país numa universidade estrangeira. 
 
No livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente de 1978, um clássico dos estudos culturais, Edward W. Said mostra que o "Oriente" não é um nome geográfico entre outros, mas uma invenção cultural e política do "Ocidente" que reúne as várias civilizações a leste da Europa sob o mesmo signo do exotismo e da inferioridade. Recorrendo a fontes e textos diversos  descrições de viagens, tratados filológicos, poemas e peças, teses e gramáticas , Said mostra os vínculos estreitos que uniram a construção dos impérios e a acumulação de um fantástico e problemático acervo de saberes e certezas europeias.
 

III. AGRADECIMENTO

O gerente do Blog agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação do registro fotográfico utilizado neste trabalho. 

 
 
IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
 
GHIGNATTI, Rosana Carvalho da Silva: Eça de Queirós e a percepção da paisagem no Médio Oriente, tese apresentada ao Programa de Pós-graduação stricto sensu em Literatura e Cultura da UFBA, como requisito para obtenção do título de Doutora em Literatura e Cultura, Salvador, 2023, 162 p.

LIMA, Isabel Pires. Os orientes de Eça de Queirós, in Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses. Revista Semear, nº 1. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1997,  p. 81-95

MEDINA, João: Eça e os Judeus (1), post no Blog Malomil de 04/05/2016
 
QUEIROZ, Eça de. Folhas soltas. Palestina, Alta Síria, Sir Galahad, Os Santos, Porto, Lello & Irmão Editores, 1966, 204 p. 

SANTOS, Octávio dos. «O Egipto», criticamente?, post do Blog Eça de Queiroz, 150 anos...