quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Filósofo grego Stelios Ramfos: "A CRISE GREGA NÃO É ECONÔMICA, MAS CULTURAL"



O filósofo grego Stelios Ramfos é entrevistado pelo jornal Le Temps, de Genebra. Texto coligido por Richard Werly.

Tradução por Francisco José dos Santos Braga



I.  INTRODUÇÃO



Stelios Ramfos julga com severidade seu país, enquanto as reformas europeias patinam. Às vésperas das novas eleições legislativas de 17 de junho (de 2012), ele decodifica as mentalidades helênicas resistentes ao choque sócio-econômico. Aqui se apresenta a ocasião de denunciar a cegueira da Europa, revelada, segundo ele, pela crise. 

Lembre-se de que a situação descrita aqui é de uma Grécia por ocasião das eleições legislativas de 17 de junho de 2012.


II.  TEXTO COLIGIDO POR RICHARD WERLY


Um Sócrates moderno? No seu café preferido de Atenas, não longe dum parlamento grego paralisado diante das eleições de 17 de junho, o filósofo Stelios Ramfos, com idade de 73 anos, se diverte com a audaciosa comparação com o pensador da Antiguidade, que um novo processo fictício vem justamente inocentar ¹. E por tudo isso. Os debates que ele suscita na Grécia, e a singularidade de suas críticas sobre a Europa, na tempestade político-financeira atual, sacodem as verdades helênicas estabelecidas e questiona inúmeros "valores tradicionais". Tudo como há dois milênios...

Le Temps: Uma nova Grécia está para emergir?
Stelios Ramfos: De qual Grécia se fala? A Grécia das relações comunitárias, ou a Grécia real? Minha resposta é que a crise, por mais dolorosa que seja, não mudou ainda as mentalidades. Os que acreditam nisso enganam-se. Uma das razões da implantação das reformas é que a população não está convencida de sua legitimidade. Vocês me dirão que as estatísticas são incontestáveis, que nossa falência está consumada... Talvez. Mas os Gregos continuam sentimentais. Para eles, a percepção perdura mais importante que os fatos e os números.

Le Temps: Falar de mentalidade grega não é simplista? 
Stelios Ramfos: Percorram esse país, falem com as pessoas, ouçam-nas... Os Gregos não são racionais de forma nenhuma. Eles não raciocinam como os Europeus do Oeste. Nós não conhecemos a Renascença. Nossa história não forjou as consciências individuais. Nossa estrutura mental ficou de uma certa maneira atrofiada, focalizada nos problemas do momento. A Grécia se reencontrou, após sua independência, impelida à fileira dos Estados "modernos", sem ter forjado real contrato social. Diz-se muitas vezes, mas é verdadeiro: o núcleo central de nossa sociedade continua a família em sentido amplo. Tudo passa pelo prisma das relações pessoais. Não tem sentido construir algo com o outro, com o cidadão distante. O clientelismo do Estado grego e dos partidos tem um fundamento muito cultural. Os Europeus fizeram a aposta de que o euro nos transformaria. Ora, é o contrário que se produziu. O crédito barato permitia satisfazer as necessidades da família, dos clãs... As mentalidades se serviram das finanças.

Le Temps: As mentalidades podem evoluir, apesar disso!
Stelios Ramfos: É preciso compreender com qual país se mantém negócio. Nossa modernização permanece algemada pelo nosso fundo cultural medieval que rechaça a novidade e a organização, mesmo quando supõem um futuro melhor. A referência ao tempo é essencial. Os Gregos não vivem na mesma temporalidade que os Alemães que, contrariamente a nós, separam bem distintamente o passado, o presente e o futuro. Aqui, só conta o presente! Ora, sem perspectiva, tudo se torna preto e branco... Tudo se polariza. As reformas europeias só são aceitáveis se a gente se projeta no futuro. Os Gregos pensam, sem o saberem ou sem o confessarem, à maneira do século XVIII. Pensam sempre em termos de luta das classes. Em termos de bem e de mal. Uma união nacional a serviço de um projeto de futuro é consequentemente muito difícil. Particularmente porque a confiança não existe. O Grego não tem confiança nem em seu vizinho, nem em seu Estado. Crê em sua família, seu partido, aquele com o qual tem, de nascença ou por sua vida social, um vínculo de parentesco. É a base da catástrofe.

Le Temps: Fazer o inventário desses comportamentos é fácil. O desafio é de compreendê-los, de levá-los em conta no processo de reforma. Como?
Stelios Ramfos: A União Europeia confunde geografia e cultura. A expansão não significa que nos tornamos mais parecidos. A problemática grega, intimamente ligada à religião ortodoxa, é a de uma boa parte do Leste europeu, e sobretudo a da imensa Rússia. Os traços de caráter que evoco são encontrados de Chipre a Vladivostok! Nossa cristandade é a da Idade Média. Fazemos parte da civilização europeia, sem partilhar os valores culturais da Europa moderna. Sei que isso vai chocar, mas os valores europeus ainda não tiveram penetração. Trinta anos de pertença à União Europeia é muito pouco. Não houve neste País nenhuma reforma da educação, somente mudanças superficiais.  Tornaram o Estado grego compatível com a União Europeia. Não foi transformado.


Os Europeus deduziram que o berço deste País era a Atenas de Sócrates,
enquanto nós somos igualmente, até mais, os filhos dos pais da Igreja ortodoxa.
Le Temps: A transformação de uma sociedade não é o papel de suas elites?
Stelios Ramfos: O que fizeram as elites gregas de trinta anos a esta parte? Ocuparam-se de sua integração na Europa. Penetraram nas redes de poder, as universidades... Mas elas não procuraram modernizar a sociedade grega. Pior: nossas elites gregas têm orgulho de seu desinteresse pelo Estado. Os armadores, para tomar essa categoria modelo de empreendedores globalizados, são uma caricatura. Fazem seus negócios, mantêm-se o mais possível distantes do Estado grego, que não os tributa, e eles redistribuem, via suas fundações privadas. Como vocês querem que os Gregos não raciocinem em termos marxistas?

Le Temps: Isso não é culpa da Europa...
Stelios Ramfos: É sim, porque os Europeus construíram seus planos de reformas sobre certezas estatísticas. Raciocinaram em termos de verdade absoluta desta forma: a austeridade orçamentária é a condição da viabilidade do Estado. Então se corta nas despesas públicas e são diminuídos os salários de forma horizontal, sem equidade. Mas o que fazer se a população não se reconhece nessas verdades absolutas? É o que se passa na Grécia. Os Alemães teriam feito melhor relendo Kant e inspirando-se nas suas "ideias reguladoras" ². Releia Kant, Sra. Merkel! É preciso achar uma síntese entre o grande plano europeu, as exigências econômicas e as tradições. Tentemos compreender porque o Sul europeu é afetado por essa crise. O peso do catolicismo muito tradicional — aquele que eu chamo de paleocatolicismo — desta periferia meridional desempenha, como a ortodoxia na Grécia, um papel considerável. A "grecidade" não é folclore. Isso não tem nada de fútil. Vocês falam aos Gregos sobre a saúde de seu Estado, enquanto que eles estão preocupados com a saúde da alma. Como fazer vocês entenderem?

Le Temps: Não se deve, às vezes, ignorar as tradições?
Stelios Ramfos: Elas constituem a base da Europa. Ignorá-las é impossível, algo suicida. Não se pode dissociar a rejeição das reformas na Grécia de nossa propensão ao niilismo. É o famoso mote: "nós não temos mais nada a perder", que vocês ouvem por toda a parte. A teologia ortodoxa raciocina em termos de sentimentalismo. Nosso sentimentalismo é apocalíptico. Favorece as grandes catástrofes, o impasse. A troika [missão de especialistas europeus encarregados de supervisionar as reformas] teria feito melhor se se cercasse de antropólogos ou de filósofos, em vez de se fechar nos ministérios. A Europa não é homogênea. Questões tão essenciais quanto o intrínseco valor do trabalho não são partilhadas nos mesmos termos. Os Gregos — isso é também o peso da ortodoxia — privilegiam a tradição ascética. Têm uma relação diferente com a eternidade. Nós não conhecemos Tomás de Aquino ³ . O trabalho é, de certa forma, um pecado. A razão... nós a ignoramos.

Le Temps: E a democracia? A União Europeia negocia com governos eleitos. Cabe a estes mudarem seu próprio país...
Stelios Ramfos: Não se pode parar nas eleições e crer que elas vão resolver tudo. A riqueza de Kant e de suas ideias reguladoras é justamente a busca da síntese. Na Grécia, nossas necessidades financeiras excedem seguramente a capacidade de nossos políticos de assumir suas responsabilidades. É preciso consequentemente forjar soluções adaptadas. Eis o problema estrutural! Esta crise só é um negócio de economistas. Por que os funcionários de Bruxelas nunca pedem conselho aos filósofos, aos antropólogos? Nós lhes teríamos explicado a razão por que o processo das reformas fracassará, enquanto os Gregos pensarão que eles podem reservar exatamente uma parte disso para si: a que lhes convém...

Le Temps: Os Europeus são ingênuos?
Stelios Ramfos: São. Sou sempre impactado pelas referências à Grécia antiga. Ora quem são os grandes especialistas em Antiguidade e em arqueologia? Europeus, não Gregos. Entre aqueles, muitos grandes pesquisadores alemães. Ora, o que eles deduziram daí? Que o berço deste País era a Atenas de Sócrates, enquanto nós somos igualmente, até mais, os filhos dos pais da Igreja ortodoxa. Eu vou ser provocador, mas a herança de Aristóteles ou de Platão é um assunto alemão, não grego. Os Europeus modelaram nossa herança à sua imagem.

Le Temps: O que fazer, nessas condições? Abandonar a Grécia?
Stelios Ramfos: Não, ao contrário. A União Europeia deve continuar clemente e repetir aos Gregos uma única mensagem antes e depois do 17 de junho: tudo depende de vocês. Não é preciso fechar a porta, pois a União Europeia tem necessidade de seu flanco sul para ser a Europa. A sociedade europeia não pode existir senão se ela assume e administra suas contradições. Eu o digo de novo, alto e bom som: esta crise não é econômica. Ela é cultural. É preciso falar de educação. É preciso colocar as questões essenciais e responder a elas. É preciso ir além do niilismo com o qual flerta uma parte cada vez maior da população grega. Esta crise deve servir de psicoterapia. Na Grécia, a troika deve mudar interlocutores, encontrar os que escrevem, que fazem vibrar a alma grega. É necessário que saiba provocar nosso philótimo , nosso renovado fervor de honra. É preciso estimular nosso amor pela União Europeia. Paremos de desenrolar um tapete vermelho aos políticos medíocres. Eles só representam uma parte da solução. Pensam em termos de partidos. É preciso recriar formas, reinventar uma dinâmica. O que mata a Europa é a indiferença dos funcionários. A Grécia das tradições populares talvez nutra os clichês, mas é a Grécia real.



III.  NOTAS  EXPLICATIVAS



¹  Um processo fictício inocentou em maio de 2012 o filósofo que os juízes atenienses, em 399 a.C., tinham obrigado a se envenenar com cicuta.

²  Kant (1724-1804) defende como "ideia reguladora" um "conceito deduzido de noções e vai além da possibilidade da experiência". E um uso regulador da razão.

³  Tomás de Aquino (1224-1274), dominicano, sustenta que a fé cristã não é nem incompatível, nem contraditória com o exercício da razão.

De Stelios Ramfos, é preciso ler: "Like a Pelican in the Wilderness" (Holy Cross Orthodox Press, em inglês)

Fonte: LE TEMPS: "La crise grecque n’est pas économique, elle est culturelle", edição de 14 de junho de 2012


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IV.  NOTA EXPLICATIVA DO TRADUTOR



 No verbete philótimo (φιλότιμο, em grego), a Wikipedia explica que é um substantivo grego que traduz o "amor à honra". Contudo, philótimo é quase impossível de ser traduzido suficientemente, visto que descreve uma complexa gama de virtudes. Philótimo é considerado a mais elevada de todas as virtudes gregas que determina e regula como alguém deve comportar-se na sua família e nos grupos sociais. Refere-se especialmente a respeito e a fazer a coisa certa. (...) Philótimo para um Grego é essencialmente um estilo de vida.
Considera-se que as crianças possuem philótimo quando mostram amor incondicional e respeito para com seus pais, avós e amigos. Ou quando mostram  gratidão por um pequeno presente ou por um pequeno gesto de gentileza que alguém possa ter-lhes dispensado. (...)
Philótimo é o sentimento de não ser capaz de fazer o suficiente por sua família, pela sociedade e por sua comunidade; manifesta-se através de atos de generosidade e sacrifício sem esperar nada em troca. Philótimo é ter mais satisfação de dar do que de receber.
Cf. in https://en.wikipedia.org/wiki/Philotimo


The Washington Oxi Day Foundation, em sua autodeclarada missão de educar os responsáveis por decisões políticas nos Estados Unidos e o público em geral sobre o papel desempenhado pela Grécia  para o desfecho da II Guerra Mundial, chama o conceito de philótimo como “o segredo grego”. Cf. in https://www.youtube.com/watch?v=aXPJNDVfBgU


6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (escritor, pianista e compositor, gerente do Blog de São João del-Rei e do Blog do Braga) disse...

Tenho o prazer de enviar-lhe minha tradução de uma entrevista dada pelo filósofo grego Stelios Ramfos, três dias antes das eleições legislativas de 2012, analisando a crise grega (já naquela ocasião).
Fica evidente o fosso existente entre o plano da União Europeia (supervisionado pela troika) para os Gregos e a Grécia real, das tradições populares, dos valores tradicionais e da ortodoxia.

Link: http://bragamusician.blogspot.com.br/2015/08/filosofo-grego-stelios-ramfos-crise.html

Com meu abraço cordial,
Francisco Braga

Gilberto Mendonça Teles (poeta e crítico literário, autor de muitos livros, membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Meu caro Francisco Braga,
li a sua clara tradução, gostei de conhecer o novo filósofo, mas sinto, como ocidental, que ele está louco por participar da troika... Acabei de ler o Relatório ao Greco, de Níkos Kazantzákis (Rio de Janeiro: Cassará, 2014), traduzido por Lucília Soares Brandão. O livro foi publicado postumamente em 1961, mas tem muito a ver com a visão de Stelios Ramfos, que com certeza o conhece.
Abraço cordial do Gilberto Mendonça Teles

Prof. Fernando Teixeira (professor universitário, escritor e Secretário Geral da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Realmente, análise de quem conhece. Abraço do Fernando Teixeira

José Passos de Carvalho (jornalista, escritor e presidente da Academia Lavrense de Letras) disse...

Agradeço a gentileza do envio de seus artigos e pesquisas, que merecem minha atenção, ricas de informações e conteúdo raro.

Muito obrigado.

Marlene Santos disse...

Prezado Francisco Braga,

Como havia dito anteriormente, eu guardo como uma preciosidade essa entrevista do filósofo grego Stelios Ramfos, bastante esclarecedora para que podemos melhor entender à Grécia de nossos dias, motivo pelo qual citei em meu livro. Nos últimos anos, viajei pelo país e fiz belíssimas descobertas... Sou fascinada pela História da Grécia antiga, um mundo mágico e encantador.

Mas, no entanto, gostar da Grécia não me deixa indiferente diante dos fatos e de uma realidade, por vezes assustadora. Após anos de corrupção endêmica e clientelismo, instalaram-se no comando do país, amadores disfarçados de políticos com a falsa pretensão de impor sua condição de bancarrota num como a Alemanha, que há anos, implantou em seu próprio país uma política de rigor e seriedade em busca do equilíbrio das contas. Ou seja, numa mensagem clara e sem equívocos para toda classe política responsável: não podemos gastar o dinheiro que não temos. E, como dizia sabiamente, Mustafá Kemal: “O modo mais seguro de perder a própria independência é gastar o dinheiro que não tem”. Enfim!

Um abraço cordial,
Marlene Santos

Pe. Wolfgang Gruen, SDB (professor de Cultura Religiosa e Língua e Literatura Inglesa na FDB-Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras) disse...

Primeiramente, devo agradecer as excelentes pesquisas que me tem enviado, e que sempre leio com interesse, especialmente quando abordam temas ligados a S. João del-Rei e à Grécia Antiga, sua língua, literatura e cultura. Estudei um pouco de romaico quando de meu curso de Teologia (1950-1953): entre os pedreiros que trabalhavam na construção de um novo prédio, havia dois gregos analfabetos – em grego e em português (de grego só sabiam o alfabeto e escrever o próprio nome). Como eles moravam na área da construção, todas as noites eu ia lá para alfabetizá-los, em romaico e em português; e eles me ensinavam um pouco de romaico: meia hora cada. Claro que saí perdendo, pois eu dedicava mais tempo a eles; mas valeu para eu ter ao menos uma ideia das mudanças. Depois, consegui um livrinho de conversação (romaico-italiano).
Um forte abraço do amigo
Gruen