domingo, 30 de agosto de 2015

Filósofo grego Stelios Ramfos: "A QUESTÃO CULTURAL ESTÁ NA RAIZ DA CRISE GREGA"


O filósofo grego Stelios Ramfos é entrevistado pelo jornal La Croix. Texto coligido por Marie Verdier.

Tradução por Francisco José dos Santos Braga





I.  INTRODUÇÃO


Para Stelios Ramfos, os Gregos são pré-modernos que privilegiam a família em detrimento do bem comum. Fortemente marcados pela ortodoxia, não se relacionam com o tempo da mesma forma que os outros Europeus. Prevê, para daí a três dias, eleições legislativas em que prevalecerá a irreflexão, resultado da fúria diante dos problemas sociais enfrentados.

Lembre-se de que a situação descrita aqui é de uma Grécia por ocasião das eleições legislativas de 17 de junho de 2012.



II.  TEXTO COLIGIDO POR MARIE VERDIER

 


A Grécia antes das eleições legislativas de 2012

La Croix: Qual é o estado de espírito dos Gregos?
Stelios Ramfos: Eles estão enfurecidos. Sua psicologia não lhes permite pensar serenamente nos problemas. Deixam-se levar ao niilismo e são capazes de votar sem refletir.

La Croix: Como isso se explica?
Stelios Ramfos: A Grécia nunca teve Renascença. Não conheceu tampouco o Esclarecimento ¹. Somos Europeus em suspensão desde vários séculos. A dominação otomana prolongou a Idade Média. É preciso lembrar-se de que os Bizantinos escolheram os Otomanos por ódio dos Latinos. Somos arcaicos, pré-modernos, no sentido antropológico do termo, que não conhecem o equilíbrio da razão e dos sentimentos. Pendemos para o lado do sentimento. A democracia tem necessidade de razão, de síntese, de compromisso. Ora, os Gregos são incapazes de ver o interesse comum. A democracia grega é frágil. Aliás, nós a temos vivido por alternância.

La Croix: Como você analisa a situação atual?
Stelios Ramfos: A questão cultural está na raiz da crise. Na Grécia, "mexem-se os pauzinhos" em favor da família, da família contra o Estado. Nenhum contrato social foi estabelecido. Portanto, não há possibilidade de estruturar uma vida política em torno de um Estado respeitável. Só contam os contatos pessoais. O clientelismo é a relação natural. Uma consequência direta dele são nossos problemas orçamentários. O dinheiro fácil serviu para melhorar a sorte dos parentes sem se lixar para o bem comum. Somos obsediados pela saúde da alma, não pelo mundo aqui em baixo. O euro não mudou nada.


La Croix: Como resolver essa questão?
Stelios Ramfos: A Europa é uma realidade polimorfa. Há uma civilização europeia, mas também culturas diferentes. É preciso criar uma Europa que contenha essas diferenças e não conduzir uma política de exclusão. Negar as tradições é algo suicida. A lição do "Esclarecimento" é a lição kantiana: o abandono da verdade absoluta em benefício do compromisso erigido como verdade. As críticas formuladas contra a Grécia são provavelmente justas, mas os Gregos não se reconhecem nessas verdades estatísticas. A política econômica ditada pelos Alemães não é a via real (do rei). Claro, a gente não pode se dispensar de toda disciplina. Mas como impor racionalidade sem compreender a irracionalidade? Isso não é uma questão de economistas. É uma questão muito profunda. É preciso dizer à troika que se cerque de antropólogos, de filósofos e comece a reformar a educação na Grécia. Somos tidos por loucos, mas é uma loucura cultural, não uma moléstia!


La CroixQue papel desempenha a ortodoxia? 
Stelios Ramfos: A ortodoxia, o cristianismo do Oriente, forjou profundamente as mentalidades, como em Chipre, nos Bálcãs e na Rússia. Não compreender a Grécia significa não compreender o continente europeu de Chipre a Vladivostok. Para compreender a Grécia, é preciso ler Dostoïevski! Independente de ser crente ou não, o dogmatismo religioso está presente. Nós nunca reconhecemos nossas faltas  a crítica e a autocrítica não existem  e temos a memória muito curta por causa do peso dos sentimentos. Amamos a memória da repetição, da rememoração. Há uma convergência com o dogmatismo comunista. Não é por acaso que temos ainda um partido comunista estalinista.

Por terem os Gregos uma fraca consciência de si mesmos, precisam de um pai, enquanto o Europeu é precisamente o sujeito confiante em si mesmo. A modernidade é fluida: ela nos escapa. É preciso explicar isso à Sra. Merkel! Se a Europa não compreender a Grécia, fracassará na integração dos Bálcãs. 

Nós, Gregos, não temos a mesma relação com o tempo. Somos arcaicos porque o presente e o passado contam mais que o futuro. Amamos o tempo que retorna, não o que progride. Em substituição ao futuro, conduzimos um combate entre o bem e o mal. Enfrentamos o mal  os Estados Unidos da América, a Alemanha  para não enfrentarmos o futuro. O futuro se esquiva, não existe. É porque as reformas da Europa são incompreensíveis. Só fazem sentido se a gente se projeta no futuro. 

La Croix: Você fala duma "tentação Syriza", expressão tomada do nome de partido de extrema esquerda decidido a renegociar os planos de austeridade com a Europa, e que poderia ganhar as eleições... 
Stelios Ramfos: É o que eu chamo "o risco Maghreb", a tentação de se instalar num pré-modernismo para a eternidade, num presente imóvel, o presente dos ascetas, dos sufis, da oração, e não o da ação. Ora, a oração hoje deve ser criativa e não passiva. Deve conjugar-se com a ação. Isso supõe a emergência de um indivíduo maduro. Há fortes semelhanças de comportamentos entre a Grécia e o Maghreb ². Isso explica as muito boas relações que nós mantemos com os Árabes. E esta é a razão por que somos igualmente muito úteis para a Europa. 


Fonte: LA CROIX: "La question cultural est à la racine de la crise grecque", edição de 14 de junho de 2012




III.  NOTAS EXPLICATIVAS DO TRADUTOR



¹  Na entrevista, Ramfos se refere a "Lumières" (Luzes), que é uma tradução francesa de "Aufklärung" (substantivo feminino), em alemão, que traduzi como "Esclarecimento", em português. 
"Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?" é uma obra do filósofo alemão Emmanuel Kant, datada de 1784. Ele escreveu esse texto explicando quão benéfico é para o Homem pensar por si mesmo, sem preconceitos. Assim inicia seu ensaio: "O Esclarecimento permite ao homem sair da menoridade pela qual ele próprio é o responsável. A menoridade é a incapacidade de empregar seu entendimento sem a direção de outro indivíduo." Kant argumenta, a seguir, que a menoridade lhe é imputável não pela falta de entendimento, mas pela falta de coragem de recorrer à sua própria razão, intelecto e entendimento sem a tutela de outrem. Exclama a máxima do Esclarecimento: "Sapere aude! Tenha a coragem de se servir de seu próprio entendimento!" para se tornar um Aufklärer (esclarecido). 
Assim o Esclarecimento retoma a máxima "Sapere aude!" (Ouse saber!), tomada de empréstimo ao poeta latino Horácio. Essa máxima é a expressão duma vontade da razão que caracteriza toda filosofia como tal. 
Kant ataca o dogmatismo metafísico, definindo-o como a ilusão duma razão que presume suas próprias forças, ilusão racionalista que é filosófica, enquanto que a extravagância (Schwärmerei) e o misticismo são uma renúncia à razão que coloca em questão a liberdade: com efeito, se não escutássemos nossa razão, em que acreditaríamos? E, sob pretexto de instituição ou de gênio, não nos arriscaríamos a nos sujeitar à lei de outrem, quando obedecer à razão é obedecer à lei que a gente se prescreveu? 
Cf. in https://fr.wikipedia.org/wiki/Qu'est-ce_que_les_Lumi%C3%A8res_%3F

²  A tradicional definição do Maghreb era tida como a região incluindo as Montanhas do Atlas e as planícies costeiras de Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia, tendo sido mais tarde desbancada, especialmente seguindo a formação da União do Maghreb Árabe de 1989, pela inclusão da Mauritânia e do território disputado do Saara Ocidental (na maioria controlado por Marrocos).

6 comentários:

Prof. Paulo Guicheney (compositor e professor universitário assistente na UFG de 2011 a 2015 e professor substituto na UnB de 2006 a 2008) disse...

Ótimo, Braga!
Obrigado pelo envio.
Abraços,
Guicheney.

Francisco José dos Santos Braga (escritor, pianista e compositor, gerente do Blog de São João del-Rei e do Blog do Braga) disse...

Tenho o prazer de enviar-lhe minha tradução de uma entrevista dada pelo filósofo grego Stelios Ramfos, três dias antes das eleições legislativas de 2012, ao jornal diário parisiense La Croix em versão eletrônica (católico).
Sua análise da crise grega é direta, sem rodeios, quer agrade ou não à Grécia ou à União Europeia. Para ele, seus compatriotas são pré-modernos que privilegiam a família em detrimento do Estado. Fortemente marcados pela ortodoxia, os Gregos não se relacionam com o tempo da mesma forma que os outros Europeus. Prevê, para daí a três dias, eleições legislativas em que prevalecerá a irreflexão, resultado da fúria diante dos problemas sociais enfrentados.

Francisco Braga
Gerente do Blog do Braga

Sônia Vieira (pianista e membro da Academia Brasileira de Música) disse...

Amigo Braga,

Maravilhosa a entrevista, bem como sua tradução e notas! Meus cumprimentos por tudo!

Com relação aos gregos, achei notável a ponderação do filósofo Stelios Ramfos sobre o tempo: "Nós, Gregos, não temos a mesma relação com o tempo. Somos arcaicos porque o presente e o passado contam mais que o futuro. Amamos o tempo que retorna, não o que progride."

Há muito tempo venho pensando neste aspecto, com relação à civilização grega. Países que foram especialmente importantes na Antiguidade, muitas das vezes, ficam parados no tempo, por variadas razões, sejam emocionais, culturais, religiosas, por falta absoluta de líderes que desatem as amarras do passado, etc... Algo que, em pequena escala, vejo no Brasil de hoje, em relação à Música. Há poucos anos, antes do golpe militar, tínhamos uma música popular extremamente rica, como os gregos tinham a filosofia, a matemática, a física, a escultura e arquitetura e seus 80 gênios num mesmo período, no século V antes de Cristo... Nos anos 60 tivemos a Bossa Nova, com "gênios" como Tom Jobim, Newton Mendonça, Antonio Maria, Vinícius de Moraes, Dolores Duran, Carlinhos Lyra, Maísa,
Baden Powell, Billy Blanco, Geraldo Vandré, entre tantos outros, além do despertar do Cinema Novo, com o fantástico Glauber Rocha. Hoje em dia, o que vemos são os "sertanejos" - não os autênticos, de raízes, como o Almir Satter, que deveriam ser louvados e mostrados sempre, e que só aparecem e têm espaço no programa da TV Cultura, do Rolando Boldrin - mas os comerciais, que ficam ricos imediatamente e são de uma mediania extrema!
Emburrecemos e empobrecemos", voltamos atrás muitos séculos,culturalmente.


Outro ponto da entrevista que também me impressionou e que também me levou a fazer uma co-relação com o nosso país, é a respeito de:
"Em substituição ao futuro, conduzimos um combate entre o bem e o mal. Enfrentamos o mal — os Estados Unidos da América, a Alemanha — para não enfrentarmos o futuro."
Nós também, sob a regência deste governo atual, também achamos que o mal são os outros países, os que obtiveram sucesso econômico, social e cultural (no caso, também os EUA) e nos mantemos atados a tudo o que não deu, não dá, nem dará certo, como as experiências da URSS, Alemanha Oriental (que eu tive a possibilidade de vivenciar, quando lá fiz minha
especialização pianística...), etc... É verdadeiramente assustador ver o caminho que se delineia à nossa frente, em qualquer campo e também, a falta imensa de políticos honestos e de ideal, como o foi o sr. Carlos Lacerda.

Tudo isso me deprime, atualmente, ver que o Brasil não terá o futuro que tanto sonhamos!

Obrigada, amigo, por todas as mensagens importantes que me envia.

Lembranças à sua esposa e abraços da

Sonia Maria

José Carlos Hernández Prieto disse...

Caro Braga; muito ilustrativa a entrevista. Botou o dedo na ferida. Muito obrigado pela oportunidade de lê-la. Tinha entendido que "Lumières" poderia se referir ao século das Luzes, ao Iluminismo e seus próceres (Rousseau, Voltaire, etc.)

José Passos de Carvalho (jornalista, escritor e presidente da Academia Lavrense de Letras) disse...

Agradeço a gentileza do envio de seus artigos e pesquisas, que merecem minha atenção, ricas de informações e conteúdo raro.

Muito obrigado.

Pe. Wolfgang Gruen, SDB (professor de Cultura Religiosa e Língua e Literatura Inglesa na FDB-Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras) disse...

Caríssimo amigo Francisco Braga,

Primeiramente, devo agradecer as excelentes pesquisas que me tem enviado, e que sempre leio com interesse, especialmente quando abordam temas ligados a S. João del-Rei e à Grécia Antiga, sua língua, literatura e cultura. Estudei um pouco de romaico quando de meu curso de Teologia (1950-1953): entre os pedreiros que trabalhavam na construção de um novo prédio, havia dois gregos analfabetos – em grego e em português (de grego só sabiam o alfabeto e escrever o próprio nome). Como eles moravam na área da construção, todas as noites eu ia lá para alfabetizá-los, em romaico e em português; e eles me ensinavam um pouco de romaico: meia hora cada. Claro que saí perdendo, pois eu dedicava mais tempo a eles; mas valeu para eu ter ao menos uma ideia das mudanças. Depois, consegui um livrinho de conversação (romaico-italiano).
Um forte abraço do amigo
Gruen