sexta-feira, 16 de outubro de 2015

TITTA RUFFO NO CONCERTO INAUGURAL DO TEATRO MUNICIPAL PAULISTANO


Por Francisco José dos Santos Braga





I.  PROLEGÔMENOS


1911 é um marco na história da Música na Pauliceia. 12 de setembro daquele ano marcante foi a data da inauguração do Teatro Municipal, que trouxe novo esplendor e abriu novos horizontes às atividades operísticas de São Paulo. Essa comemoração ocorreu cerca de um mês após a temporada lírica oficial de 1911 que abrangeu o período de 31 de julho a 7 de agosto. ¹

[CERQUERA, 1954, 73] apontou muito bem as características da época que viu surgir esse patrimônio da cultura paulistana: 
"Sem embargo das restrições econômicas da época, Ramos de Azevedo dotou a nossa capital de um teatro infinitamente superior às antigas casas de espetáculos da Pauliceia. (...) No recinto dourado do Municipal a magnificência do auditório correspondia às realizações cênicas de um repertório eclético e de novas perspectivas artísticas. 
Jamais devem ser relegados ao olvido os primeiros fastos gloriosos da ópera em São Paulo: a vinda de célebres cantores aos antigos São José e Santana e ao Politeama, as 'premières' que colocaram a nossa capital à frente de grandes teatros do mundo. Contudo, foi no Teatro Municipal que a arte lírica proporcionou aos paulistanos um panorama mais amplo, mediante as representações wagnerianas e a presença de elencos especiais para a audição das óperas francesas, alemãs e russas no texto original. É possível que o Tempo se encarregasse de atualizar e desenvolver o repertório mesmo nos velhos palcos, mas a história da ópera em São Paulo encontrou o seu fastígio no teatro de Ramos de Azevedo."  
A primeira missão dos dirigentes do novo teatro, antes mesmo de sua inauguração, deve ter sido inserir o Teatro Municipal no circuito internacional de óperas.

A respeito dos preparativos para dar ao novo teatro uma inauguração condigna com o prédio de luxo que levou oito anos para ser concluído, escreve [CASOY, 2006]: 
"(...) A construção do Theatro Municipal de São Paulo representou um marco importante tanto na história cultural da cidade quanto em seu processo de transformação em metrópole. Em 1902, o governo do Estado cedeu à municipalidade um terreno onde antes havia funcionado uma serraria de propriedade de um alemão, que se destinava, conforme comunicado do prefeito Antonio Prado à Câmara Municipal, 'à construção de um teatro nesta Capital entre as Ruas Barão de Itapetininga, Formosa, Conselheiro Crispiniano e o futuro prolongamento da Rua 24 de Maio.' Após o lançamento da pedra fundamental, ocorrido com grande cerimônia em 1903, a obra se arrastou por oito longos anos. Infelizmente, os políticos responsáveis se preocuparam muito mais com a criação de um monumento do que com a instituição de um organismo vivo e atuante. Para eles, o conceito de teatro consistia em ter-se um prédio de luxo. Foi construído com materiais de primeiríssima qualidade, importados da Europa, que podem ser apreciados até hoje. Ninguém se preocupou, entretanto, no período da obra, em formar os corpos estáveis, tão necessários para a qualidade dos espetáculos de ópera. O prédio ficou pronto, mas não tínhamos nem orquestra, nem coro, nem corpo de baile. Viriam muitos anos depois. Com o término da construção em agosto de 1911, a primeira providência da Câmara, dentro da nossa melhor tradição, foi a de nomear uma comissão de inauguração, constituída pelo então prefeito Barão Raimundo Duprat e por Pedro Villaboim, Alfredo Pujol, Numa de Oliveira e Francisco de Paula Ramos de Azevedo. Após exaustivos debates, concluiu a comissão que o Theatro Municipal deveria ser inaugurado com pompa e estilo, apresentando um grande nome internacional à altura do evento. Da parte prática dessa realização foi incumbido o empresário teatral Celestino da Silva, instruído a resolver tudo com a máxima rapidez. Assim, o Theatro Municipal nascia sob o signo da improvisação. Congestionando as linhas telegráficas, Celestino pôs-se a trabalhar e teve a sorte de descobrir que um dos maiores artistas líricos do mundo, o barítono Titta Ruffo, cuja importância só era igualada na época à de Enrico Caruso, se encontrava à frente de uma companhia de óperas, fazendo um giro pelo Uruguai e Argentina. Ruffo foi localizado na cidade argentina de Rosário e concordou em vir a São Paulo, sugerindo para a estréia seu papel favorito, o protagonista de Amleto, a versão italiana da ópera Hamlet, do compositor francês Ambroise Thomas. Houve veementes protestos na Câmara, liderados pelo vereador Alcântara Machado. O novo teatro de São Paulo deveria ser inaugurado com uma ópera de Carlos Gomes! O diligente Celestino telegrafou consultando Titta Ruffo a respeito. O barítono respondeu polidamente, informando não dispor de nenhuma ópera do compositor campineiro preparada, mas poderia fazê-lo dentro de dois anos. Como se pretendia inaugurar o Municipal ainda em setembro, a idéia foi abandonada, mas não antes de a matéria ser inflamadamente debatida na Câmara, até chegar-se a uma solução negociada, aceita pelo grupo nacionalista: antes da ópera de Thomas, a orquestra executaria a protofonia de Il Guarany, fazendo assim com que Carlos Gomes fosse o primeiro autor a ser ouvido no novo teatro. A récita inicial tinha sido marcada para o dia 11, mas como os cenários chegaram atrasados da Argentina, o Theatro só foi inaugurado em 12 de setembro de 1911. Concorridíssima pela alta sociedade paulistana, a abertura do Municipal causou o primeiro grande engarrafamento de trânsito da cidade de São Paulo. A quantidade inumerável de discursos que abriram a solenidade fez com que o espetáculo tivesse início às dez da noite. Hamlet é uma ópera longa, de cinco atos. À uma hora da madrugada, pouco antes de iniciar-se o último ato, resolveram as autoridades encerrar a noitada lírica sem terminar a ópera. Afinal, ceias comemorativas, onde seriam proferidos mais discursos emocionados, haviam sido preparadas em várias mansões da cidade e aguardavam as famílias paulistanas nessa noite de festa. Assim, os cantores foram dormir mais cedo do que esperavam. (...)"  


II.  TITTA RUFFO INAUGUROU O TEATRO MUNICIPAL



Conforme  já visto, a inauguração do Teatro Municipal deu-se a 12 de setembro de 1911.

Como espetáculo inaugural, "apesar de forte opinião contrária", segundo [CERQUERA, 1954, 74], estreou o célebre barítono TITTA RUFFO, com a ópera de Ambroise Thomas, "Hamlet". 
"A companhia lírica incumbida da primeira temporada do Municipal constituía-se de ótimos elementos que haviam atuado pouco antes no Colón de Buenos Aires. No elenco encabeçado por Titta Ruffo, também se destacaram as sopranos Agostinelli, Pasini-Vitale e Pareto, os tenores Bonci ² e Ferrari-Fontana, as meio-sopranos Perini e Garavaglia e os baixos Ludikar e Bettoni, mas o elenco era encabeçado pelo nome de Titta Ruffo. O grande êxito do notável cantor italiano, então no apogeu dos 34 anos, justificou a exumação do 'Hamlet', cuja 'première' paulistana ocorrera no velho São José em 1886". 
[CERQUERA, idem, idem] nomeou o seguinte elenco de "Hamlet": Titta Ruffo no papel-título, soprano Pareto (Ofelia), meio-soprano Perini (Rainha), baixo Ludikar (Claudio), tenor Bonfanti (Laerzio) e baixo Bettoni (O Espectro), sob a regência do consagrado maestro Eduardo Vitale. A presença desse regente, de sua esposa Lina Pasini-Vitale e do tenor Ferrari-Fontana foi decisiva para a primeira oportunidade de o público paulistano entrar em contato com "Tristão e Isolda", de Richard Wagner.

No dia 12 de setembro de 1911, o Estado de S. Paulo publicou, sob o título A Inauguração, Anno XXXVII, edição nº 11.959, p. 6: 
"Realisa-se hoje no Theatro Municipal, a estréa da companhia italiana Titta Ruffo, com a opera em 4 actos, de A. Thomas, "Hamlet". 
Antes da representação da opera, será executada a grande orchestra, sob a regencia do maestro commendador E. Vitale, a protophonia da opera o "Guarany", de Carlos Gomes. 
Em outro lugar, damos os retratos dos principaes interpretes de "Hamlet"."  (grifo nosso)
No mesmo dia, o Estado de S. Paulo publicou artigo intitulado Theatro Municipal na coluna Noticias Diversas, p. 8: 
"O publico decerto desejará saber a causa da sensação agradavel que o surprehenderá hoje, ao entrar no theatro, não é verdade? Foi uma lembrança gentil da casa Gustavo Lohse, de Berlim (fornecedor do imperador e imperatriz da Allemanha), que ao ter conhecimento, pela Casa Lebre ³, de que assistiriam a este espectaculo as mais distinctas senhoras e senhoritas de S. Paulo, mandou perfumar o ambiente do theatro com as mais finas essencias da sua importante e acreditada fabrica de perfumarias, correspondendo assim à preferencia que a sociedade elegante do Brasil sempre tem dado aos seus inegualaveis produtos que a Casa Lebre vende nesta cidade.
O Estado de S. Paulo publicou na coluna Palcos e Circos, sob o título Municipal, Anno XXXVII, edição nº 11.960 de 13 de setembro de 1911, p. 2: 
"Realizou-se hontem a primeira representação da serie inaugural do Theatro Municipal.
A opera escolhida foi o 'Hamlet', de A. Thomas, e sentimos, devéras, que assim fosse, porque como obra de arte é, para os nossos tempos, bem difficil de acceitar-se.
Félix Clément, no seu diccionario de operas , escripto em collaboração com P. Larousse, escreve: "M. Ambroise Thomas, en traitant le sujet redoutable de Hamlet, avait des raisons légitimes de s' éloigner des traditions autant que les règles du goût le lui permettaient. Il a battu ses adversaires sur leur propre terrain, et jamais les Tannhauser, les Lohengrin et les Rienzi, dont les poëmes ont été écrits pour les partitions, n' auront le nombre de représentations d' Hamlet, dont la partition a été écrite pour le poëme (sic)."
Quem poderá ler esse disparate sem sorrir de compaixão pelo propheta "manqué" ? 
Mas houve um Hans von Bülow que nos deu um retrato bem fiel do compositor Thomas e o collocou lá no seu lugar. Escreve Bülow após uma audição do "Hamlet":
"A nullidade ôca, sem qualquer caracteristico da musica de A. Thomas, a sua pretensiosa arrogancia tornou-se-me só agora bem clara, e adquiri a mais absoluta convicção da corrupção deste usurpador da herança dos Meyerbeer e Halévy.
O sr. A. Thomas, se quizerem, escreverá correcto, até acadêmico, mas a sua falta de talento só conseguiu produzir fumaça azul!...
A sua musica é tão impotente que, como falta de caracter e de estylo, elle nem sequer conseguiu evitar o recife da sensaboria, o que em geral é bem evitado pelos músicos franceses illustrados."
Ouvimos pela primeira vez a opera de Thomas da qual só conheciamos trechos destacados.
Como taes o Brindisi de Hamlet, a aria de Ophelia e um ou outro trecho são toleráveis e passam, mas a opera em conjunto é o que se pode imaginar de anêmico, superficial e sensaborão. Os momentos mais dramaticos da acção não são de forma alguma secundados pela musica que se estende em passagens nullas, verdadeiros enchimentos, sem caracter algum, sem nenhuma expressão realmente intensa e forte.
Ha algumas melodias que agradam, admittamos,  mas isso não basta para dar vitalidade a uma obra que não tem o essencial  — a alma.
Não ignoramos que a commissão organisadora da inauguração do teatro pretendia estreal-o com uma obra importante, de folego, e que, apezar de sua boa vontade, circumstancias especiaes a forçaram a acceitar a estafante obra de A. Thomas; por isso, longe de nós a intenção de culpal-a pela escolha, sòmente é nosso dever expandir-nos com sinceridade.
E tanto a razão se acha comnosco que, apesar de estar o papel do protagonista confiado a um artista da estatura de Titta Ruffo, que procurou dar vida a essa musica com toda a potência da sua grande arte, o publico manteve-se frio do principio a fim, limitando-se a applaudir justamente os momentos em que o sr. Titta Ruffo empolgou o auditorio. E com isso temos externado a primeira impressão que nos deixou o afamado artista. Esperamos outras operas em que possamos entregar-nos com todo o nosso enthusiasmo à admiração pelo seu notavel talento.
Em lugar da sra. Gonzaga que devia cantar a parte de Ophelia ouvimos a sra. Pareto que foi especialmente contratada pela empresa para cantar os papeis de Ophelia, Gilda e Rosina. A sra. Pareto, ao que nos dizem, goza de optima reputação nos centros em que se tem feito apreciar e por nossa parte, achamos bem confirmada essa opinião, pois a sympathica artista, que hoje mesmo chegára de viagem, satisfez-nos, e, ao que parece, a todo o auditório, pois após a scena da loucura bem interpretada pela sra. Pareto o publico applaudiu-a com calor.
O papel de Ophelia teve na sra. Pareto excelente interprete.
Os demais artistas, entre os quais sobressairam: a sra. Perini (rainha) e os srs. Ludikar (Claudio), Bonfanti (Laercio), Bettoni (sombra do rei), Spadoni (Marcello) e Lunardi (Polonio) contribuiram para o bom conjunto.
Os córos andaram bem ensaiados e firmes, os scenarios bellissimos, mise-en-scène magnifica, e a orchestra, sob a regencia do sr. maestro Vitale, saiu-se bem da sua ingrata tarefa, embora nos parecesse, que para operas desse genero, isto é, para operas em que a orchestra tem um papel limitado a acompanhamento, devia se ter a orchestra elevada e não occulta.
De accordo com a praxe estabelecida na maior parte dos lugares onde ainda ha gente que se delicie com o "Hamlet" de A. Thomas, o ultimo acto foi supprimido.
F."
Consta que a provinciana cidade de São Paulo, então com 400.000 habitantes, na noite da inauguração do Teatro Municipal ficou literalmente com o trânsito congestionado. Os carros que vinham pelo viaduto do Chá se encontraram com o tráfego de automóveis que vinha do lado oposto, pela Barão de Itapetininga e o resultado foi que os carros que trafegavam pela atual Xavier de Toledo e pela Conselheiro Crispiniano ficaram completamente bloqueados. São Paulo tinha somente 300 automóveis registrados na prefeitura, dos quais 135 teriam se envolvido naquele que foi o primeiro engarrafamento paulistano de trânsito.

É curioso revisitar O Estado de S. Paulo de 05 de outubro de 1915, passados então quatro anos dos fatos narrados acima. Na coluna intitulada Palcos e Circos, lê-se na matéria chamada Theatro Municipal, o seguinte:  
"A companhia lyrica terminou hontem a sua temporada nesta capital com a opera 'Hamlet', de A. Thomas. Já há quatro anos, quando o distincto artista sr. Titta Ruffo, inaugurou o Municipal com essa opera, na qual tem parte tão importante, fizemos comentarios sobre o valor da obra de Thomas, dispensando-nos, pois, de repisar agora o assumpto. O que, porém, podemos e devemos constatar ainda uma vez é que o celebre artista tem no papel de Hamlet uma das suas mais interessantes e perfeitas criações. Titta Ruffo ahi não é só cantor emerito, mas igualmente actor consciencioso que se occupa com acurada observação da psychologia dessa figura shakespeareana, que tanta margem tem offerecido  às mais variadas interpretações. Além do mais, Titta Ruffo achava-se em excellente disposição de voz, o que lhe permittiu deixar-nos as mais gratas recordações. 
Applausos enthusiasticos testemunharam ao grande artista o muito apreço em que elle é tido entre nós. À sra. Galli Curci foi confiada a parte de Ofélia e como sempre fez jús às mais encomiasticas referencias. Especialmente no quarto acto a excelente artista ostentou brilhantemente os seus preciosos recursos de voz e de escola. Entre os demais artistas, sobressahiram a sra. Frascani (rainha), e sr. Berardi (rei), Dentale (espectro), que contribuiram para o bello conjunto. Córos, bailado, scenarios, 'mis-en-scène, tudo de primeira ordem. A orchestra, sob a regência do maestro Marinuzzi, andou muito bem e mereceu os applausos que lhe foram dispensados. Os principaes artistas foram varias vezes chamados à scena e receberam enthusiasticas manifestações de agrado. 
F."
[CERQUERA, 1954, 75] informa ainda que, relativamente à inauguração do Teatro Municipal, "encerrou-se a temporada a 1 de outubro, tendo sido realizadas 10 récitas de assinatura, 1 extraordinária, 2 populares e 1 'matinée'. La Bohème e Il Barbiere di Siviglia tiveram 3 representações; Hamlet e Tristano e Isotta, 2; as outras óperas não foram repetidas." 

O Estado de S. Paulo publicou na coluna Palcos e Circos, sob o título Theatro Municipal, Anno XXXVII, nº 11.978, edição de 01 de outubro de 1911, p. 5:
"Findou-se hontem a temporada lyrica deste anno no Theatro Municipal, salvo deliberação diversa da Prefeitura.
A estação lyrica foi iniciada com uma opera de assumpto tragico, o “Hamlet”, de A. Thomas, que não conseguiu as boas graças do publico e terminou alegremente com uma opera buffa “Don Pasquale”, de Donizetti.
Sem ter o valor intrinseco do “Barbeiro de Sevilha”, de Rossini, nem mesmo dispertar tanto interesse como esta, ouve-se, todavia, a obra de Donizetti com agrado e sente-se-lhe a veia comica bem caracterizada. Além disso notam-se diversas melodias acariciantes, que, quando cantadas por artistas de primeira plana, como os que hontem se ouviram, e só assim, satisfazem.
O desempenho foi muito bom.
O sr. Paterna interpretou excellentemente o papel do protagonista.
Foi verdadeiramente buffo, sem ser ridiculo e em certas scenas,  como entre Pasquale e Norina, no segundo acto e entre Pasquale e Malatesta, no terceiro, deu provas de um cantor educado em optima escola.
O Sr. Titta Ruffo foi o artista que todos admiramos, interpretando bem o seu papel e cantando a contento de toda a gente que sabe ouvir.
O sr. Bonci teve, no papel de Ernesto, ainda uma vez, ensejo de ostentar os seus recursos de fina arte; foi enthusiasticamente applaudido, sobretudo, após a serenata, no terceiro acto.
A sra. Agostinelli desempenhou o papel nada fácil de Norina. Representou e cantou bem, embora, para nosso sentimento, o timbre de sua voz se não case com o genero da parte de soprano ligeiro.
O corpo coral esteve extremamente bem ensaiado, merecendo fortes applausos após o difficil coro do terceiro acto.
A orchestra, sob a fina direcção do maestro Vitale, executou com bastante delicadeza e colorido a partitura, disfarçando quanto possivel a pobresa da instrumentação.
Os scenarios de bellissimo effeito, especialmente os da scena do jardim. Enthusiasticos e vibrantes applausos coroaram o espectaculo de hontem.
F.”
Os distinctos artistas Titta Ruffo, Bonci e Agostinelli encontraram hontem os seus camarins no theatro, bellamente adornados de flôres. Essa gentileza da commissão directora do theatro commoveu muitissimo a todos.
O publico, por sua vez, deu-lhes hontem inequivocas provas de apreço e admiração. Chamou-os varias vezes à scena e no final de alguns actos cobriu o palco de flôres. De vários camarotes, entre os quaes os da Camara Municipal e do Automovel Club, foram atirados ao palco ricos bouquets.
Hoje, em “matinée”, ultima recita da Companhia, com o “Barbeiro de Sevilha”."



 III.  NOTAS  EXPLICATIVAS



¹   Abrindo a temporada lírica de 1911 se destacou a presença da companhia lírica de PIETRO MASCAGNI apresentando sua ópera "Iris", que foi à cena em 31 de julho, no modesto embora prestigioso recinto do Politeama. O Teatro Colombo viu o preparo da difícil encenação da ópera "Isabeau" e a 3 de agosto, realizou-se ali também a "première" de "Amica", óperas do mesmo Mascagni, de curta carreira. Igualmente, "Cavalleria Rusticana", de Mascagni, sob a sua batuta, ofereceu novo fascínio ao público paulistano. Outras óperas de outros compositores, apresentadas pela mesma companhia, nessa temporada de 1911, foram: Aída, de Verdi;  La Bohème, de Puccini; La Gioconda, de Amilcare Ponchielli; e I Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo. A 7 de agosto a companhia despediu-se dos paulistanos. Apesar das qualidades artísticas dos cantores, o herói do espetáculo foi naturalmente Mascagni, a quem o nosso público fez grandiosa manifestação de apreço.
  
²  [CERQUERA, 1954, 75] informa que
"Bonci foi considerado o melhor tenor lírico do seu tempo. Cantou em numerosos teatros importantes um repertório variadíssimo, especializou-se nos papeis de caráter lírico-ligeiro e sempre manteve a linha clássica do 'bel-canto'. Aos 41 anos ainda se achava no apogeu artístico. A jovem soprano espanhola Graciela Pareto granjeou grande sucesso em papeis de coloratura e o seu estilo de canto assemelhava-se ao de Bonci." 
 ³  O edifício da Casa Lebre (fundada em 1858) ficava localizado nas esquinas das ruas Direita e da Imperatriz (atual 15 de Novembro). A Casa Lebre ostentou grande sucesso por mais de 60 anos comercializando produtos importados, tais como perfumarias finas, brinquedos, artigos domésticos, porcelanas e "crystaes", baterias para cozinha de "nickel" puro, "aluminium" e ferro esmaltado, entre outros. 

  CLÉMENT, Félix  & LAROUSSE, Pierre: DICTIONNAIRE  DES OPÉRAS (Dictionnaire Lyrique), 1879, p. 734. (Cf. in https://books.google.com/books?id=KxcYVDWOERcC) 

  Cf. a conceituação exata dessa expressão in Le Prophète manqué, par Albert Guignard, Les Cahiers du Moulin,  2011, 9e. année, numéro 18, page 6.  Acesso em 15/10/2015 ao link: https://maquisculturel.files.wordpress.com/2011/10/prophc3a8te-manquc3a9-coupc3a9.pdf. 

  The Eclectic Magazine of Foreign Literature, Science, and Art, edição de 1882, p. 285, traz  a seguinte anedota traduzida por mim, intitulada "Um Sobrinho de Meyerbeer", na seção Miscelânea:
"Um dos nossos contemporâneos conta uma curiosa anedota com respeito a M. Ambroise Thomas. O ilustre maestro tem a sorte de ser o ocupante sem ônus de uma fina villa em Argenteuil. É lá, no meio da sua biblioteca e suas obras de arte, que o compositor de 'Hamlet' e 'Françoise de Rimini' gosta de recolher-se das fadigas da composição. No mês de setembro de 1870, quando da proximidade das tropas prussianas, ele não teve tempo de remover seus tesouros a um local onde estariam seguros de pilhagem. Paris foi invadida, e a villa caiu em poder do inimigo. Alguns dias depois da invasão, um jovem oficial do comando prussiano apresentou-se à casa de Ambroise Thomas, onde, falando com a pessoa responsável pela casa, disse:
 A quem pertence esta casa?
— A M. Ambroise Thomas.
— Ambroise Thomas, o compositor?
— Sim.
O oficial ficou pensativo por um momento.
O funcionário tremia, se não pela sua própria segurança, pelo menos pelas coleções que lhe estavam confiadas. Mas logo o jovem oficial tomou um cartão de um elegante porta-cartões e escreveu algumas palavras sobre ele a lápis, então deslisou-o sob a porta que tinha sido fechada pelo próprio compositor (o homem responsável ocupando um aposento independente da villa), após o que, sem dizer outra palavra, escreveu a lápis algumas palavras em alemão sobre a porta principal. Então uma coisa estranha!  todas as outras casas da villa foram ocupadas, porém a de Ambroise ficou solitária. Duas semanas se passaram; a guarnição foi trocada. Foi substituída por outra; mas os oficiais que vinham à villa iam embora depois de lerem sobre a porta a inscrição a lápis. Para grande assombro do funcionário, a mesma coisa teve lugar em umas vinte ocasiões.Vinte vezes a guarnição foi trocada,  vinte vezes os oficiais se apresentaram, e vinte vezes eles se retiraram assim como tinham vindo após lerem a famosa inscrição. O armistício foi assinado. M. Ambroise Thomas deixou Paris, apressou-se a ir a Argenteuil, pensando encontrar sua casa em ruínas. Qual foi sua surpresa vê-la intacta! Entrou, e sobre o limiar da porta encontrou o cartão de um oficial alemão que trazia essas palavras, a lápis: 'Um Sobrinho de Meyerbeer.' "
Acesso em 15/10/2015 ao link: https://books.google.com/books?id=4so2AQAAMAAJ
   [CASOY, 2006, 25] comenta em seu livro:
"Como o primeiro personagem a cantar em Hamlet, logo depois do coro inicial, é o Rei Cláudio, sabemos que o primeiro cantor solista a ser ouvido no Municipal foi o intérprete daquele papel, o baixo russo Pavel Ludikar, que se apresentava com seu prenome italianizado, Paolo. Mas observações como essa escaparam aos jornalistas da ocasião, que se preocuparam muito mais com o aspecto de crônica social da noite. Vale a pena reproduzir um trecho da reportagem do Correio Paulistano do dia seguinte, descrevendo as toaletes das damas presentes (...)."



 IV.   PÉROLAS  MUSICAIS  DE  TITTA  RUFFO




Tenho o prazer de agraciar o leitor do Blog do Braga, com a ária "Oh! monstruosa colpa... Sì, pel ciel marmoreo giuro" do Ato II de "Otello", de Verdi. Consta que esta é a única gravação preservada com Caruso e Ruffo em dueto (datada de 08/01/1914).

Titta Ruffo, em gravação de 1908, canta "Brindisi" ("O vin, discaccia la tristezza") da ópera Hamlet, de Ambroise Thomas.

Nesta seguinte gravação de "Brindisi", fica mais patente sua enorme capacidade de mudar a cor quando se encaminha para a segunda seção e a surpreendente cadência (repetição da primeira parte com variação).

O CEDOM-Centro de Documentação da Rádio Bandeirantes conserva uma relíquia de Titta Ruffo (☆Pisa, 09/06/1877  ✞ Florença, 05/07/1953), ou seja, uma entrevista gravada numa fita pelo repórter José Carlos de Moraes, o "Tico-Tico", enviado especial daquela emissora a Florença, onde o cantor residia em 1952. Naquela época, Titta Ruffo já não cantava mais, mas recitou um poema, fazendo referência a suas visitas ao Brasil. Enviou uma mensagem aos italianos de São Paulo e confessou que aquela era a primeira entrevista que concedia a uma emissora de rádio. Primeira e, possivelmente, a única, já que faleceu no ano seguinte.

No Blog "Memória com Milton Parron" é possível ouvir o conteúdo dessa fita, recuperada em agosto de 2013 para seus leitores.

Apud Wikipedia, sobre a voz de Titta Ruffo, o crítico britânico geralmente acerbo, e futuro produtor de discos, Walter Legge, escrevendo na revista Gramophone em 1928, elogiou o canto de Ruffo, lembrando um recital em que ele tinha ouvido o barítono seis anos antes em Londres. Legge disse que: "Da sua primeira frase, a audiência era tomada pela beleza irresistível de sua voz — viril, ampla, simpática, de inexcedível riqueza. Tanta facilidade de produção, tanta abundância de sonoridade ao atingir o sol agudo! Mas mais: a sutileza infinita, a variedade do timbre, a visão e a sinceridade interpretativas de Ruffo, seu controle magnífico, estupendos poderes de respiração e fraseado impecável carimbaram-no como gênio."

Falando de Lawrence Tibett em 15 de maio de 1937, [LEGGE, 1998, 51] comparou a voz desse barítono americano famoso em filmes e gravações, à de Ruffo, como também seu hábito de cantar até o sol b com voz de peito. Considerava este último o mais impressionante barítono italiano que tinha ouvido em Covent Garden nos últimos 15 anos.



V.  BIBLIOGRAFIA  CONSULTADA



BIDWELL, W.H.:  The Eclectic Magazine of Foreign Literature, Science, and Art, edição de 1882, volume 36, 864 p. 


                                                      — São Paulo e a Ópera: Uma Antiga História de Amor em 1952-2005, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, 608 p. 

CERQUERA, P.O.C. : Um Século de Ópera em São PauloSão Paulo: Emprêsa Gráfica Editôra Guia Fiscal, Rua da Glória nº 653, 1954, 328 p. e mais 98 p. s/n, com fotografias, totalizando 180 ilustrações. 

CLÉMENT, Félix & LAROUSSE, Pierre: DICTIONNAIRE  DES OPÉRAS (Dictionnaire Lyrique), 1879, 955 p. 


O ESTADO DE S. PAULO: Anno XXXVII, edição nº 11.959 de 12 de setembro de 1911, p. 6; Anno XXXVII , edição de nº 11.960 de 13 de setembro de 1911 ,  p. 2; Anno XXXVII, edição de nº 11.978 de 01 de outubro de 1911, p. 5.

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Tenho o prazer de noticiar a ilustre presença do barítono TITTA RUFFO, internacionalmente famoso, na inauguração do Teatro Municipal de São Paulo em 12 de setembro de 1911. Sobre essa participação ilustre no evento de inauguração muitas coisas foram escritas, cujo pequeno excerto ofereço no meu texto.
Convido o leitor do Blog do Braga a "fare un brindisi all' inaugurazione del Teatro Municipale di São Paulo" dentro do magnífico Mundo da Ópera, com todo o seu esplendor, pompa e estilo.

Dr. Mário Pellegrini Cupello (pesquisador, escritor e presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, de Valença) disse...

Caro amigo Braga
Mais um tema de grande importância que ora enriquece os nossos melhores arquivos. Agradecemos pelo envio e, em especial, pela sua laboriosa pesquisa histórica.
Com um fraternal abraço,
O amigo Mário.

Prof. Fernando Teixeira (professor universitário, escritor e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Secretário Geral) disse...


Cumprimentos pelo texto e abraço amigo do Fernando Teixeira

Jota Dangelo (diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural, cronista e escritor) disse...

Belíssimo! Dangelo