Por Francisco José dos Santos Braga
Em 1º de junho de 1974 saiu em O Estado de S. Paulo uma chamada para o Festival Internacional de Música, promovido pela Secretaria estadual de Cultura, Esportes e Turismo, intitulada "Quarenta solistas virão para festival". O Festival, a iniciar-se a 30 de junho, contou com grande cobertura da mídia paulistana, porque pela primeira vez a Pauliceia iria sediá-lo, tradicionalmente encenado em Campos do Jordão. A propaganda dizia:
QUARENTA SOLISTAS VIRÃO PARA FESTIVAL
"Mais de 40 professores e solistas deverão tomar parte este ano no Festival Internacional de Música, programado para o campus da Universidade de São Paulo de 30 de junho a 28 de julho. Na ocasião, além dos 37 concertos, recitais e outras apresentações, está prevista a realização de cinco seminários: "Composição e Musicologia", sob a direção do maestro francês Maurice Le Roux; "Música Antiga", que será dado por Roberto de Regina; "Música Eletrônica", dirigido por Morton Subotnick; "Violão", dirigido por Turíbio Santos, e "Música de Câmara", sob a responsabilidade de diversos professores de instrumentos e canto.
Dos professores estrangeiros que confirmaram sua presença, alguns já são conhecidos de outros festivais ou concertos. É o caso do oboeísta norte-americano Henry Schuman, do clarinetista belga Guy Douchy e do coralista norte-americano Hugh Ross. Assim também alguns brasileiros radicados no exterior, como o violonista Turíbio Santos, atualmente em Paris, e o flautista Ricardo Kanji, morando na Holanda.
Outros, contudo, são estreantes em promoções deste tipo em São Paulo. O contrabaixista Christian Mesdon, que atuará com exclusividade num concerto com a Orquestra Sinfônica do Estado, nunca participou de nenhum festival em São Paulo, muito menos os componentes do elenco operístico de Viena ou do Trio Fontanarosa, conjunto francês formado por membros de uma mesma família.
COLÓQUIO
Segundo o maestro Eleazar de Carvalho, diretor de um dos três departamentos que funcionarão durante a promoção (Música Instrumental, Coral e Ópera), um dos pontos altos do festival será o Colóquio organizado pelo Conselho Internacional de Música da UNESCO, sob a presidência de Yehudi Menuhin, e que terá como tema "A Música Tradicional e a Criação Musical Contemporânea nas Diversas Culturas".
Programado para os dias 19, 20, 21 e 22 de julho, o Colóquio será dividido em conferências e audições. No primeiro, às 17 horas, sob a direção de Yehudi Menuhin — que em seguida vai apresentar-se com a Orquestra Sinfônica do Estado — haverá uma conferência do brasileiro Luiz Heitor Correa de Azevedo. No dia seguinte, serão realizadas duas sessões. Na primeira, tendo como presidente Pierre Colombo, Ladislav Mokrý proferirá uma palestra sobre Música Ocidental, exceto a América Latina. À tarde, na segunda sessão plenária, sob a presidência de Narayana Menon, Tran Van Khe falará sobre a Ásia, exceto o Mundo Árabe.
No dia 21 de julho, na terceira sessão plenária, sob a presidência de John Roberts, Kwabena Nketia falará sobre a Música Africana, com exceção do Mundo Árabe. À tarde, presidido por Biris Yarustovski, o musicólogo Salah El Mahdi falará sobre o Mundo Árabe. Por fim, na 5ª sessão plenária, sob a presidência de Roberto Caamaño, José Maria Neves falará sobre a América Latina. À tarde, presidido por Marlos Nobre, representante do setor musical da UNESCO no Brasil, John Morton encerrará o Colóquio."
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO, Ano 95, Nº 30.422, edição de 1º de junho de 1974, p. 10.
Neste post vou apreciar algumas dessas realizações no campo musical. Depois de 29 dias de estudos intensivos, num domingo, 28 de julho de 1974, o Festival Internacional de Música, um dos grandes acontecimentos musicais do ano, promovido pela Secretaria estadual de Cultura, Esportes e Turismo, distribuiu 428 diplomas a jovens musicistas e encerrou com uma audição de alunos, às 11 horas da manhã no anfiteatro da USP. Três desistências, contudo, deixaram alguma frustração nos alunos: de Yehudi Menuhin, Morton Subotnick e Alberto Ginastera. O violinista Yehudi Menuhin, anunciado como uma das presenças certas ao Colóquio Internacional de Música, teve problemas de saúde e cancelou não apenas sua viagem para o Brasil, mas, ao que se diz, uma programada excursão à América Latina. O mesmo teria acontecido com Morton Subotnick, titular da cadeira de música eletrônica. Quanto ao compositor argentino Alberto Ginastera, não houve explicações para sua desistência.
A edição de 19 de julho de 1974, p. 7 trata do Colóquio que era aguardado com grande expectativa pelos entendidos e melômanos, a saber:
O COLÓQUIO COMEÇA, SEM YEHUDI MENUHIN
"Sem a presença de Yehudi Menuhin — que cancelou a conselho médico sua excursão para a América Latina este ano — inicia-se hoje no anfiteatro da USP, às 17 horas, um Colóquio Internacional de Música, organizado pelo Comitê Internacional de Música da UNESCO. O encontro, que recebeu o título geral de "Música Tradicional e Criação Musical Contemporânea nas Diferentes Culturas", terá a duração de quatro dias e contará com a participação de 48 musicólogos de vários países. Será realizado paralelamente ao Festival Internacional de Música, promoção da Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo do Estado.
Dos 48 convidados que iniciam hoje a série de debates e conferências, 11 pertencem ao Comitê Brasileiro de Música, entidade de onde sairá o conferencista da abertura do Colóquio — Luiz Heitor Corrêa de Melo. A partir de então, o Colóquio funcionará com duas sessões plenárias por dia. Amanhã, na primeira sessão plenária, às 9 horas, sob a presidência do musicólogo francês Pierre Colombo e tendo como relator o checoslovaco Ladislav Mokrý, será discutida a música do Ocidente, exceto a América Latina. Às 14 horas, está programada a segunda sessão plenária, que terá como tema a Ásia, exceto o Mundo Árabe. Para este encontro, o presidente será Narayana Menon, da Índia e, relator, Tran Van Khe, do Vietnã do Norte.
Completando o programa do segundo dia do Colóquio, haverá um concerto de música de câmara do Ocidente e da Ásia, marcado para as 20:30, no anfiteatro da USP. As interpretações estarão a cargo dos artistas Arno Babajanian, da Armênia; Attila Bosay, da Hungria; Tran Van Khe, do Vietnã, e Turíbio Santos, do Brasil. Domingo, dia 20, sempre na Cidade Universitária, o Colóquio terá prosseguimento às 9 horas, sob a presidência de John Roberts, canadense, e de Kwabena Nketia, de Ghana (relator). Nesta sessão será estudada a música da África, exceto o Mundo Árabe. Às 14 horas, nova sessão plenária, desta vez sobre o tema Mundo Árabe. A presidência deste encontro estará a cargo de Boris Yarustovski, da URSS; o relator será Salah El Mahdi, da Tunísia. Às 20:30, concerto de Música de Câmara Africana. Segunda-feira, às 9 horas, está programada a quinta sessão plenária, que terá como tema a América Latina, presidida por Roberto Caamaño, da Argentina e tendo como relator José Maria Neves, do Brasil. No mesmo dia haverá encerramento do Colóquio, marcado para as 14 horas. Este último encontro do Colóquio da UNESCO terá como presidente o brasileiro Marlos Nobre e como relator o inglês John Morton.
KLEIN
Em virtude do cancelamento do concerto do violinista Yehudi Menuhin, marcado para hoje à noite, a Orquestra Sinfônica do Estado apresentará às 21 horas, no Teatro Municipal, um programa dedicado inteiramente a Tchaikowski. Na ocasião, sob a regência de Eleazar de Carvalho, serão executados a Sinfonia nº 4 e o Concerto nº 1 para piano e orquestra, que terá como solista Jacques Klein. Este programa substitui as apresentações do concerto para violino de Bach que seria solado por Yehudi Menuhin e as Sinfonias números 1 e 41, respectivamente, a primeira e a última de Mozart, marcadas para hoje à noite como parte do Festival Internacional de Música.
CAMPOS DO JORDÃO
Como parte ainda do Festival Internacional de Música haverá hoje às 20:30, em Campos do Jordão, um recital de piano a cargo de Magda Tagliaferro. Amanhã, no mesmo horário, será apresentado um espetáculo intitulado "Noite de Música Antiga", a ser executado pelo conjunto de Roberto de Regina. Completando a programação deste fim de semana, Nathan Schwartzman fará no domingo, às 16:30, um recital de violino."
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO, Ano 95, Nº 30.463, edição de 19 de julho de 1974, p. 7.
Nessa mesma edição, ao lado da matéria anterior da página 7, o Estadão noticiou que "Eleazar de Carvalho vai dirigir o Municipal", como se segue:
ELEAZAR DE CARVALHO VAI DIRIGIR O MUNICIPAL
"Hoje ou no começo da próxima semana o prefeito Miguel Colasuonno deve enviar à Câmara Municipal projeto-de-lei criando o cargo de diretor artístico do Teatro Municipal. Embora não se saibam quais as especificações do cargo, o futuro diretor artístico já e conhecido: será o maestro Eleazar de Carvalho, que acumulará suas novas funções com o cargo que já possui de regente titular e diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP).
Para a função que deverá ocupar no Municipal, o Maestro Eleazar de Carvalho não tem ainda planos concretos. Afirma apenas que não ensaiará a orquestra — pois seu cargo não lhe permitiria isso — e que tratará de nomear dois maestros jovens para reger como titulares a orquestra do Teatro, na sua opinião o melhor conjunto sinfônico do país juntamente com a Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Assim, a única questão que deverá preocupar o diretor artístico do Municipal de São Paulo, no começo, será o nome dos possíveis candidatos aos cargos de assistentes e de regentes titulares da orquestra. Segundo o próprio maestro, os futuros candidatos deverão reunir, entre outras, pelo menos duas condições: talento e juventude. Daí os nomes que o próprio maestro Eleazar de Carvalho alinha como possíveis futuros assistentes da diretoria artística — Diogo Pacheco, Carlos Eduardo Prates, John Luciano Neschling e David Machado."
Independente disso, parece que o festival deixou saudade naqueles que dele participaram em alguma de suas atividades programadas. Vejamos por exemplo a crítica de Caldeira Filho ao recital do pianista Roberto Szidon, uma apresentação programada pelo Festival Internacional de Música para o dia 24/07/1974 no Teatro Municipal:
RECITAL REAFIRMA O TALENTO DE SZIDON
Por Caldeira Filho
FESTIVAL INTERNACIONAL DE MÚSICA: RECITAL DO PIANISTA ROBERTO SZIDON. Programa: Brahms, Três Intermezzos; Chopin, Sonata em si menor; Villa-Lobos, Noturno e Balada (Homenagem a Chopin); Manuel de Falla, Fantasia Bética. Dia 24.7.74, no Municipal.
"A arte de Roberto Szidon tem suas raízes mais profundas no próprio instrumento. Ele é pianista por excelência e sou levado a dizer que, enquanto o compositor faz música, ele, por meio desta, faz arte pianística. Não se poderia chamá-la "pianismo"? Toda a sua musicalidade parece que se transfigura, toma as aparências do instrumento e é pianisticamente que se realiza. Isso é conseguido, obviamente, pela sonoridade, coisa de difícil definição, mas compreensível se a colocarmos em analogia com o colorido da pintura. O colorido não é a cor, simplesmente, mas o tratamento expressivo dela. Assim, a sonoridade não é somente o som, mesmo que já individuado pelo timbre. É o conjunto de modificações que ele assume pelas mãos de Szidon para a composição de um quadro sonoro, de uma obra de arte construída com o som, com valor estético próprio e necessariamente vinculada à emoção que se quer provocar.
A técnica para isso empregada se baseia no "toque" (no "toucher", como dizem os franceses), campo em que Roberto Szidon é realmente um mestre.
Por isso pôde executar os três "Intermezzos" de Brahms com uma expressão toda especial, mais de ordem íntima do que exterior, fazendo ver quanto pode o piano ser poeta. Os "cantabili" da "Sonata" de Chopin soaram luminosamente serenos, pois Roberto fazia que a transparência sonora tornasse quase visível a idéia musical em execução. E a sua virtuosidade transcendente expandiu-se em todos os trechos da "Sonata", nas peças de Villa-Lobos e na bela e dificílima "Fantasia Bética" de Falla.
A facilidade e a espontaneidade técnicas de Szidon levam-no a um andamento por vezes inadequado, mormente nos trechos de brilhante agilidade. Fica assim escondido um toque "perlé", que seria certamente admirável, tanto mais que é o toque específico do piano, instrumento de cordas percutidas. Ocorre-me o ensino de Marguerite Long: "É preciso que haja ar entre as notas". A fina ourivesaria viu-se substituída por energia, entusiasmo e dinamismo, a que a aceleração temporal emprestava inegável grandiosidade.
Roberto Szidon domina magistralmente a matéria sonora: ao lado de ofuscantes reverberações, a indizível suavidade da "Rêverie" de Schumann, dada extraprograma. É difícil conceber tal qualidade de som, a sua impossível, mas evidente, imaterialidade, criadora de momentos admiráveis pela beleza da sensação. Como é possível fazer da máquina pianística a criadora de tão irreal poesia?"
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO, Ano 95, Nº 30.470, edição de 27 de julho de 1974, p. 7.
O Estadão, na sua edição de 21 de julho de 1974, prenunciava a divisão do público diante de uma peça sinfônica inusitada: "Santos Futebol Music", da autoria do compositor Gilberto Mendes. De fato, foi o que aconteceu no dia seguinte:
PEÇA SINFÔNICA LEVA AMANHÃ O FUTEBOL AO TEATRO MUNICIPAL
"Depois de 63 anos de existência quase totalmente aristocrática, o Teatro Municipal de São Paulo será palco, amanhã, de uma homenagem insólita a uma das mais caras e populares paixões do brasileiro: o futebol. Regida pelo maestro Eleazar de Carvalho, a Orquestra Sinfônica do Estado (OSESP) executará pela primeira vez no Brasil a peça "Santos Futebol Music", do compositor santista Gilberto Mendes, obra tocada em primeira audição, com grande êxito, no Festival de Música Nova de Varsóvia em 1972.
"Santos Futebol Music", como seu próprio criador admite, é antes de tudo uma homenagem partindo do princípio de que Pelé e seus companheiros divulgaram para o mundo o nome de sua cidade. Gilberto Mendes resolveu compor a peça dedicada especialmente ao time de futebol — algo de música sinfônica, bastante de "happening" e uma grande dose de teatro musical.
Em sua primeira audição, em 1972, "Santos Futebol Music" eletrizou um teatro inteiro. Os assistentes do Festival de Música Nova de Varsóvia surpreenderam-se com uma peça musical que misturava, às intervenções fortuitas de uma orquestra sinfônica, os apupos da torcida e o matraquear incessante de locutores esportivos, desfiando, lance por lance, o desenrolar nem sempre dramático de uma partida de futebol. Naquela ocasião, como parte do espetáculo, surgiram torcedores entusiastas no meio do público e o que prometia um espetáculo convencional de música de vanguarda brasileira terminou como uma noitada surpreendente, principalmente quando o regente, num "finale" pouco convencional, chutou uma bola de verdade contra a platéia.
OS EFEITOS
Comentando a estréia de "Santos Futebol Music", a crítica dividiu-se. Alguns ficaram em dúvida quanto ao valor estritamente musical da peça de Gilberto Mendes — mas a maioria mostrou-se favorável à experiência, e parte do público, porém, não teve dúvidas. Segundo o maestro Eleazar de Carvalho, responsável pela estréia da obra, os aplausos duraram quase tanto tempo quanto sua execução.
"Sob o ponto de vista exclusivamente musical — explica o maestro — não há muitas dificuldades técnicas em "Santos Futebol Music" para o instrumentista. O compositor, de um modo geral, exige apenas certa dose de criatividade nas partes aleatórias: difícil mesmo é o ensaio do público — tarefa que precede o espetáculo".
Conforme as exigências de Gilberto Mendes, o público é parte integrante da obra. Em momentos bem definidos — a critério do regente — ele vaia ou aplaude, encenando o ambiente de uma partida de futebol verdadeira. É o momento em que a obra chega a seu ápice, pois dali em diante "Santos Futebol Music" deixa de lembrar remotamente uma partida de futebol, para transformar-se num espetáculo lúdico a que não faltam os equipamentos próprios de um campo futebolístico. Por isso, até pouco antes da execução de "Santos Futebol Music", uma das preocupações do maestro Eleazar de Carvalho será arranjar equipamentos que em 63 anos de existência nunca fizeram parte do acervo normal do Teatro Municipal — uma bola tamanho profissional, apito de juiz e várias redes de futebol — todos, juntamente com três 'tapes' com gravações do último campeonato mundial fundamentais para a execução de "Santos Futebol Music"."Fonte: O ESTADO DE S. PAULO, Ano 95, Nº 30.465, edição de 21 de julho de 1974, p.17.
Por Caldeira Filho
FESTIVAL INTERNACIONAL DE MÚSICA — Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Programa: Alberto Ginastera, Variações Concertantes; Villa-Lobos, Concerto nº 5 para piano e orquestra. Solista, Ivy Improta. Regente, David Machado. Gilberto Mendes, "Santos Futebol Música" para orquestra, vozes e ritmos pregravados e com a participação do público. Regente, Eleazar de Carvalho. Dia 22/7/74, no Municipal.
"(...) A peça de Gilberto Mendes "Santos Futebol Música", tanto quanto se pôde depreender em meio à algazarra em que mergulhou o espetáculo, foi montada sobre um fundo preparado na narração de um jogo por um desses locutores de fala rapidíssima, em que as palavras correm vertiginosamente, muito mais depressa do que a bola. Dada em baixo volume sonoro, a gravação foi pouco ouvida, o que talvez tenha prejudicado o efeito esperado. Os ouvintes figuravam como presentes ao estádio, e a eles coube a torcida com vaias, aplausos, etc. A orquestra pouco ou nada tinha a fazer, pois sua parte limitou-se a manter uma sonoridade neutra, sons longamente prolongados, às vezes uns roncos nos violoncelos e uns assobios nos violinos.
A participação do público foi dirigida pelo autor, que comandava a atuação por meio de apresentação de cartazes, cujas indicações em maiúsculas vermelhas sobre fundo branco deviam ser obedecidas e mantidas enquanto levantados, e cessadas quando baixados. Eis a lista: "Vogais" (a..., o..., etc.), "Leitura Rápida e forte" de um texto qualquer, folha de programa por exemplo; "Leitura Lenta e baixa"; "Cantos esportivos", de que não se ouviu nenhum, se é que existem; "Gol", em que o público gritava "goooooool...", segundo o modelo dos locutores esportivos; e "mais um!". Várias realizações poderiam ser pedidas simultaneamente. Essa participação foi ensaiada na hora, mas apoiada em grande grupo de alunos do festival previamente treinado à tarde, por via das dúvidas. Criava-se assim uma nova figura de macacas de auditório, à semelhança dos tipos "chacretes" e quejandos.
Todo mundo aderiu à brincadeira, cada um a seu modo. A maioria parecia imbecilizada na unanimidade do primarismo a que desceu. Muitos limitavam-se a sorrir e muitos outros faziam gozação. Gritos como "fora, palhaço", insultos e palavrões foram ouvidos, e uma senhora, na platéia, gritava "fiau! fiau!" com quanta força tinha.
O regente Eleazar de Carvalho deu "cartão amarelo" a um dos músicos e ao final atirou à platéia uma bola que foi jogada daqui para ali — o chute era impossível — entre os ouvintes, e acabou sumindo. A orquestra saiu do palco aos poucos, até restar um só executante, o violino "spalla", que continuou tocando, e só saiu quando vieram buscá-lo com o aviso de terminação do jogo impavidamente apitado por Eleazar de Carvalho.
Se se tratasse de algo a ser levado a sério, poder-se-ia colocar a obra num dos momentos da história em que o "eu", ou melhor, a "pessoa", emerge do "nós", do coletivo social. Avanços e recuos marcam o processo. E na hora atual, em que a "personalidade" se afirma com maior intensidade, pretende-se submergi-la mais uma vez na massa. A pretensa participação do público, de seu lado, é uma contradição pois torna-o co-autor de uma mensagem a ser a ele mesmo dirigida.
Mas tudo não passou de uma brincadeira sem espírito, sem gosto, sem sentido, e sem música nenhuma. Uma grande gozação que restitui atualidade à expressão "panem et circenses"...
Com isto não se quer dizer que a obra seja uma vigarice musical. Não. O autor não quis enganar ninguém, não quis vender gato por lebre, porque era gato mesmo..."
O Suplemento Especial de "O Estado de S. Paulo" trouxe em 31/12/1974 uma retrospectiva das grandes realizações na área do teatro, através do artigo intitulado "Para o teatro, o festival abriu novas perspectivas", considerando que "o fato mais importante no panorama teatral paulista de 1974 foi a realização do 1º Festival Internacional de Teatro, que trouxe aos nossos palcos quatro espetáculos de primeira grandeza: Yerma, de Garcia Lorca, sob direção de Victor Garcia, com a Companhia de Núria Espert, The Times and Life of Dave Clark, de Bob Wilson, doze horas consecutivas da mais extraordinária experiência teatral vista em São Paulo até hoje, e A Ceia e Os Autos (da Alma e da Barco do Inferno) pela Comuna de Portugal, uma revitalização em boa hora surgida dos textos de Gil Vicente. (...)".
A mesma página do jornal, no artigo intitulado "Música, um balanço positivo", faz também uma retrospectiva das grandes realizações no campo da música paulistana. Eis o que apresentou:
MÚSICA, UM BALANÇO POSITIVO
MÚSICA, UM BALANÇO POSITIVO
"No movimento musical de 1974 assinala-se de início a atividade das sociedades promotoras de concertos: Sociedade de Cultura Artística, Pró-Arte e seus Seminários de Música, Sociedade Orquestra Filarmônica (cujo hiato inicial se compensou depois com a fixação da sua orquestra sinfônica), Sociedade Bach de São Paulo. Todas cumpriram a respectiva programação, ao lado dos concertos das sinfônicas Municipal e Estadual, Quarteto de Cordas Municipal e vários conjuntos, algumas já permanentes, como a Camerata Benda e o Grupo de Percussão do Brooklin Paulista. Numerosos os recitais de artistas dos diversos ramos. Além do piano, que continua à frente, foram ouvidos o violão, cravo, violino, órgão e, em quantidade apreciável, o canto, tudo por jovens solistas de real talento, alguns em início de promissora carreira internacional.
A Música de Vanguarda vem ganhando terreno. Apresentou autores de uma obra. Apresentou autores de uma obra séria e pensada. Entre eles, José Antonio de Almeida Prado e Mario Ficarelli. Esse movimento lavrou mais um tento ao realizar pela décima vez consecutiva e anual o Festival de Santos, já importante no país e no exterior. E o ano começou com a I Bienal Internacional de Música da USP.
À frente da música municipal, José Luiz Pais Nunes, criador do Movimento Mário de Andrade, desenvolveu incrível atividade. Contam-se entre suas realizações: Segundas Musicais, Série de Primeiras Audições Brasileiras, Música nos Parques Morumbi e Ibirapuera etc., com uma programação variadíssima justamente denominada "Pauliceia Desvairada", ou seja, música e arte em todos os cantos possíveis e imagináveis da cidade. Ao início deste mês estava em preparação a Música de Natal: vários corais cantando pela cidade toda e encerramento com grandiosa manifestação conjunta nas escadarias do Teatro Municipal.
No âmbito estadual, Eleazar de Carvalho pôs em ação a Sinfônica Estadual, realizou uma série de Encontros com J. S. Bach, que despertou inusitado interesse entre a juventude; pôs em evidência a música nacional nos Encontros com a Música Brasileira, programação musicológica e histórica de real importância; levou avante o Festival Internacional, desenvolvido na Capital e em Campos do Jordão. Ao lado de Colóquios de índole musicológica, grandes artistas ofereceram a um público sempre entusiasmado vasto e valioso repertório, e isto sem esquecer os Concertos Educativos para a Juventude.
Em resumo: saldo totalmente positivo para a música paulista de 1974, não só no setor realização, como em musicologia, educação musical e criatividade." (grifo meu)Fonte: O ESTADO DE S. PAULO, (Suplemento Especial "Arte e Comunicação"), Ano 95, Nº 30.603, edição de 31 de dezembro de 1974, p. 49.
Também na edição do dia 25 de janeiro de 1975, da p. 63 em diante, mas mais especificamente na p. 68 (da qual retirei o trecho abaixo), O Estado de S. Paulo voltou ao tema do Festival Internacional de Música de 1974, no Suplemento do Centenário do jornal, desta vez publicando um ensaio de Caldeira Filho intitulado "Cem Anos de Música Brasileira". O autor não poupou críticas publicadas pelo próprio Estadão, no tocante ao Festival:
"(...) Eleazar de Carvalho levou avante, em julho, um Festival Internacional de Música. Desenvolvido anteriormente em Campos do Jordão, foi transferido em 1974 para a capital, o que lhe deu maior projeção e área de ação, embora alguns programas fossem dados naquela estância climática. No Teatro Municipal paulistano fizeram-se ouvir Magda Tagliaferro, violoncelista André Navarro e pianista Roberto Szidon. Foram dados concertos sinfônicos com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, dos quais o primeiro foi o de inauguração do Festival, regência de Eleazar de Carvalho, solista Jacques Klein e obras de Marlos Nobre, Almeida Prado — este dirigiu sua peça Estações — e Stravinsky. O último, de encerramento, foi dedicado a Beethoven: Fantasia Coral e 9ª Sinfonia. Outros concertos foram dados com os maestros Diogo Pacheco, Tulio Collaciopo, David Machado e Gilberto Mendes.
No Anfiteatro da USP desenvolveram-se manifestações paralelas ao Festival: colóquio Internacional C.I.M. (Unesco) e atos musicais. As sessões plenárias dos colóquios trataram em separado Música Ocidental (exclusive América Latina), Ásia, África e Mundo Árabe e América Latina. Um reparo foi feito por este jornal (Estadão de 28/07/74): "Segundo alguns musicólogos brasileiros que, como os estrangeiros, criticaram a falta de organização do Colóquio, a ausência de uma conferência dedicada exclusivamente à música tradicional brasileira foi uma espécie de 'mistério insondável', o qual, entretanto, podia ter sido evitado."
A data da entrega deste trabalho iniciara-se no Teatro São Pedro, com a OSESP, uma série de 4 Encontros com a Música Brasileira, desde o Barroco Mineiro até a Música de Vanguarda.
A Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo e a assessoria de Eleazar de Carvalho realizaram durante o ano um trabalho amplo de apresentação musical, em que virtuoses, professores de orquestra, conjuntos e musicólogos viram-se chamados a cooperar, o que foi conseguido com inegável êxito. Os Encontros com J. S. Bach, o Festival Internacional e os Encontros com a Música Brasileira, constituem uma visão panorâmica de todo um mundo sonoro em grande parte novo para o grande público. (...)"
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO, (Suplemento do Centenário - O Estado de S. Paulo, 25/1/1975, p. 68 no Acervo do Estadão), Ano 96, Nº 30.624.
OBRAS CONSULTADAS
O ESTADO DE S. PAULO: Ano 95, Nº 30.422, edição de 01/06/1974; Ano 95, Nº 30.463, edição de 19/07/1974; Ano 95, Nº 30.465, edição de 21/07/1974; Ano 95, Nº 30.469, edição de 26/07/1974; Ano 95, Nº 30.470, edição de 27/07/1974; Ano 95, Nº 30.603, edição de 31/12/1974; Ano 96, nº 30.624, edição de 26/01/1975.
SECRETARIA DE CULTURA, ESPORTES E TURISMO DO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO: Festival Internacional de Música. Cf. http://www.pauloegydio.com.br/acervodigital/FASPG000151.pdf
OBRAS CONSULTADAS
O ESTADO DE S. PAULO: Ano 95, Nº 30.422, edição de 01/06/1974; Ano 95, Nº 30.463, edição de 19/07/1974; Ano 95, Nº 30.465, edição de 21/07/1974; Ano 95, Nº 30.469, edição de 26/07/1974; Ano 95, Nº 30.470, edição de 27/07/1974; Ano 95, Nº 30.603, edição de 31/12/1974; Ano 96, nº 30.624, edição de 26/01/1975.
SECRETARIA DE CULTURA, ESPORTES E TURISMO DO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO: Festival Internacional de Música. Cf. http://www.pauloegydio.com.br/acervodigital/FASPG000151.pdf
11 comentários:
Envio-lhe um post que retrata o FESTIVAL INTERNACIONAL DE MÚSICA DE 1974 no mês de julho e quase exclusivamente em São Paulo, tradicionalmente encenado em Campos do Jordão.
Dentro do movimento musical de São Paulo em 1974, destacaram-se as atividades programadas para o Festival: 37 concertos, recitais e outras apresentações, realização de 5 seminários e um Colóquio de 4 dias de duração, organizado pelo Conselho Internacional de Música da UNESCO.
Aqui serão apreciados alguns pontos altos do Festival e algumas surpresas indesejáveis e desistências confirmadas de última hora que infelizmente ocorrem num evento de tal dimensão, requerendo da parte dos organizadores imediata solução e substituição.
Cordial abraço,
Francisco Braga
Caro amigo Braga,
Que belíssima pesquisa o prezado amigo nos encaminhou sobre o que foi o Festival Internacional de Música – 1974, na USP! Pelo exposto é possível imaginar esse extraordinário espetáculo! Parabéns por mais essa excelente produção literária em seu blog, de conteúdo sempre atrativo.
Entre outros depoimentos, chamou-nos a atenção a interessante e apropriada crítica de Caldeira Filho – em “Recital Reafirma o Talento de Szidon” – cujo texto exala “musicalidade” nas frases e refinada poesia na forma escrita.
Agradecemos pelo envio.
Abraço cordial,
Do amigo Mario.
Boa noite, Francisco!
Eu estava nesse festival.
Fui aluna de Regina, Ross e Kanji
Uma experiência inesquecível!
Fiquei tocada com os textos, queria copiá-los apenas para pode ler melhor, mas não foi possível.
Grande abraço, Elisa
Prezado amigo Francisco Braga,
Obrigado pela lembrança cultural.
Passos de Carvalho, Presidente da Academia Lavrense de Letras
A crise, amigo, afetou eventos significativos de arte e cultura. É meritório o esforço de quem realiza certames, como este Festival de Música.
Abraço agradecido pelo envio do Fernando Teixeira
Muito bom!
Prof. Braga, bom dia. Agradeço os textos, de sua autoria ou transcrição, que me são enviados, todos sempre do mais alto nivel e que engrandecem a cultura regional e universal. Congratulações.
Boa tarde, Braga!
Como é gostoso voltar no tempo e sentir ícones da nossa história da música vivos em um texto, em plena atividade. Excelente trabalho!
Você gostaria de publicar no Concertino?
Parabéns e um abraço,
Elza
É com grande satisfação que o Portal Concertino publica mais um de seus excelentes artigos – na categoria Textos:
http://www.concertino.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9108
Muito obrigada por mais uma primorosa colaboração e um abraço,
Elza
Prezado Braga!
Consegui ler este artigo.Parabéns! Não tinha conhecimento de alguns fatos do Festival de 1974, principalmente sobre Gilberto Mendes, Tagliaferro e Szidon, e claro , as desistências.
Obrigada!!
Atenciosamente,
Ana Claudia
Um ótimo texto, Braga. Cumprimentos efusivos.
Fernando Teixeira
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