quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

O TESTAMENTO DE HEILIGENSTADT EM POEMA


Por Judas Isgorogota



Ano de 1802. Beethoven, na fase mais penosa de sua vida, torturado por angustiante tragédia interior, executa a "Sonata ao Luar", enquanto pronuncia as célebres palavras que somente deveriam ser lidas depois de sua morte.




Ó vós, que me considerais um louco,
um irascível, talvez, um misantropo, enfim,
olhai meu coração traspassado de angústias!
Como vós sois injustos para mim!...
Oh! não sabeis a dor, nem a razão secreta
de aos vossos olhos parecer-me assim!...

Desde a infância, o mais doce sentimento
de bondade viveu dentro em meu coração
e sempre me senti disposto para a vida,
pronto a realizar sempre uma grande ação...
Porém, pensai somente em que têm sido
estes seis anos de desilusão...

Pensai em meu estado espantoso, agravado
por promessas falazes, enganado
nessa esperança de melhora vã...
constrangido a viver preso a um mal cuja cura
requer anos talvez e que sempre perdura
na ansiedade cruel de um eterno amanhã...

Nasci com um temperamento ardente e altivo,
acessível até às distrações sociais;
porém, cedo me vi forçado a separar-me
dos homens e a viver em solitária paz.
Muitas vezes tentei sobrepairar tais coisas,
mas a triste experiência abateu-me ainda mais...

Em minha desventura, eu jamais poderia
aos homens revelar a ausência de um sentido
que mais do que ninguém devera possuir,
sentido que eu tivera apurado e perfeito...
Vede a minha aflição: — fingir que vos escuto,
adorar a verdade e viver a iludir...

Se me vedes assim afastado de todos,
quando a todos eu quero, ó meus irmãos, perdoai!
Esta revelação jamais eu desejei fazer-vos:
"— Falai mais alto ainda... eu sou surdo... gritai!"

Duplamente infeliz, é-me interdito
achar repouso e desfrutar prazeres
entre vós e assim ser condenado, entre os seres,
a existência arrastar como um proscrito.

Já não posso afoitar-me ao mundo que eu queria...
Dizei-me, pois, se não vos causa dó
ver alguém a ansiar por vossa companhia
e entretanto viver inteiramente só!

Só... absolutamente só... Algumas vezes,
dominado por minha inclinação,
tentei ainda viver ao vosso lado,
porém, que humilhação!

Quando alguém junto de mim ouvia às vezes
sons de uma flauta ao longe ou a voz distante
de um pastor a cantar, e eu nada percebia,
estando junto a vós...
bem pouco me faltou para por termo à vida
o meu tremendo desespero, atroz!

Foi a Arte, ela só, que me reteve.
Impossível me parecia abandonar
o mundo, sem que ao mesmo houvesse dado
tudo o que me cabia realizar.

E assim eu prolongara a miserável vida
nesse estado de angustiosa irritação.
— Paciência! — ao coração eu repetia.
Paciência terei... Tenho-a no coração.

É a ela a quem devo agora escolher como guia,
neste anseio de resistir até o fim,
até que as Parcas inexoráveis venham
cortar-me o fio da existência, enfim.
Eu estou preparado... Talvez seja
bem melhor para mim...

Não é fácil a alguém, aos vinte e oito anos,
transformar-se em filósofo... porém,
mais difícil ainda é para o artista,
e mais cruel também...

Divindade, tu que penetras do alto a fundo
deste meu coração, que a dor contém,
bem sabes tu que há nele o amor humano
e este desejo de fazer o bem...

Homens! se um dia lerdes as palavras
que esta minha alma em lágrimas vos diz,
meditai na injustiça que fizestes
a mim e na aflição de um infeliz
que tudo fez para vos ter ao lado,
que sempre vos amou... sempre vos quis...

Ó meus irmãos! Depois de minha morte,
dizei a todos quanto padeci,
para que dentro do mais breve tempo
comigo o mundo se reconcilie.

Sede leais, compreensivos, justos,
e amai-vos tanto quanto vos amei.
O mal que me fizestes neste mundo
há muito tempo vô-lo perdoei...

Aconselhai virtude aos vossos filhos.
É ela, e não os bens materiais,
que pode dar felicidade ao mundo,
num só instante de harmonia e paz...

Tão somente virtude, pois foi ela
que na miséria me estendeu a mão.
É à virtude que devo, e à minha Arte,
jamais haver na morte procurado
alívio para tanta decepção...

Como serei feliz, se no meu túmulo,
puder ainda ser útil... Se assim for,
voarei com alegria para a morte
amando a própria dor!

Se ela vier antes que, enfim, consiga
meu supremo desejo conquistar,
de certo que, apesar-de meu destino,
virá cedo demais me procurar.
Eu só lhe pedirei que se retarde
um dia, ao menos, para me levar...

Mas, se vier, eu ficarei contente
e lhe abrirei os braços, mesmo assim,
pois me trará libertação, somente,
de um sofrimento que já não tem fim...
Ao teu encontro irei serenamente!
Morte, quando quiseres, vem a mim!

Ó meus irmãos! Não me olvideis inteiramente,
quando chegar o fim...
Eu mereço viver dentro em vossa lembrança...
Pensei em vós em toda a minha vida...
em minha morte, irmãos, pensai em mim!

Adeus... não me esqueçais... o meu destino
confio a vós... deixo-o nas vossas mãos!
Eu pensei sempre em vós... sede felizes...
Não me esqueçais... não me olvideis, irmãos!

          ♧        ♧         ♧

Enfim, bem tristemente me despeço.
Sinto que devo agora abandonar
essa doce esperança de melhora
que até aqui me veio acompanhar.

Como as folhas no outono se estiolam,
morreu essa esperança para mim,
e hoje retorno, como as folhas secas,
           mais ou menos assim...

Toda a coragem que antes me animava
           o triste coração,
desvaneceu-se... Para mim morreram
           os nossos belos dias de verão...

Ó Providência! Permiti, ao menos,
           que me ilumine o coração,
ao sol de um dia de prazeres puros,
o eco de uma feliz satisfação!
Ó quanto tempo faz que desconheço
a alegria interior dessa emoção!

Quando, enfim, poderei, ó Divindade,
gozar essa ventura novamente,
diante o templo imortal da Natureza
           e da imortal Humanidade?

"Jamais!" — direis, o coração me enchendo
           de amargura e de fel...

E muito embora este sofrer horrendo,
inda acredito em vós, ó Divindade!
Inda confio em vós, pois, em verdade,
este eterno silêncio, que maldigo
seria para mim como um castigo,
           imensamente cruel!


Fonte: ISGOROGOTA, Judas: Os que vêm de longe, São Paulo: Edição Saraiva, 2ª edição, 1954, p. 45-53.

5 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Salomea Gandelman (professora universitária, autora do livro "36 Compositores Brasileiros-obras para piano (1950-1988)) disse...

Muito obrigada pelas preciosas informações. Abraços, Salomea

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

O Blog do Braga tem o prazer de apresentar O TESTAMENTO DE HEILIGENSTADT, produzido por LUDWIG VAN BEETHOVEN, que consiste de duas partes: a primeira parte, de 06/10/1802, e a segunda, de 10/10/1802, num momento crucial da vida do compositor, quando se encontrava atormentado pelo aumento de sua surdez e se julgava incapaz de concluir suas grandes obras, no povoado de Heiligenstadt próximo a Viena. O testamento, como se sabe, é um documento oficial a ser lido e executado após a morte do inventariante.

JUDAS ISGOROGOTA, natural de Lagoa da Canoa-AL, 15/09/1901? – São Paulo, 10/01/1979, é o pseudônimo do poeta e jornalista alagoano Agnelo Rodrigues de Melo, que se aventurou a transformar em versos a tradução do referido Testamento em prosa, de que resultou um belíssima peça de criação poética, em que o eu lírico do poeta extravasa além dos limites da prosa em que o testamento fora originalmente escrito e se realiza em versos rimados de rara beleza em um padrão não uniforme de versificação.

Fiz a tradução de uma matéria relativa ao célebre Testamento para contextualizar o rico poema de Judas Isgorogota, diretamente de El Sitio de Ludwig van Beethoven (site espanhol especializado em Beethoven).

Poema: O Testamento de Heiligenstadt por Judas Isgorogota

https://bragamusician.blogspot.com/2019/02/o-testamento-de-heiligenstadt-em-poema.html


Minha tradução de post de El Sitio de Ludwig van Beethoven

https://bragamusician.blogspot.com/2019/02/ludwig-van-beethoven-em-heiligenstadt.html


Cordial abraço,

Francisco Braga

Mário Bruno Gonçalves Carezzato (maestro arranjador, pianista, cantor e professor de técnica vocal) disse...

Gostei muito, obrigado.

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Mais uma vez sentimo-nos no dever – e na alegria – de cumprimentá-lo por sua vasta produção literária, muitas vezes memorialista, através da qual o ilustre amigo e Maestro expressa sua invulgar inteligência e reconhecida cultura. Não se trata de um “afago” de amigos que lhe querem bem, mas uma realidade facilmente comprovada em seus inúmeros artigos.

Quanto ao post intitulado “O testamento de Heiligenstadt”, igualmente ficamos encantados com a história, pelo que agradecemos o envio.

Aceite o abraço fraterno,

Dos amigos Mario e Beth.