Tradução literal do latim, comentários e bibliografia sugerida por Francisco José dos Santos Braga
PÚBLIO OVÍDIO NASO (✰ Sulmona, Abruzzo, Itália, 43 a.C. - ✞ Constança, Romênia, 18 d.C. / Crédito: Ancient History Encyclopedia |
I
Quando me vem à mente a imagem tristíssima daquela noite ¹,
que foi para mim o derradeiro tempo que passei na Urbe;
quando recordo a noite, em que abandonei tantas coisas
[queridas,
mesmo agora, uma lágrima escorre dos olhos meus.
Já quase chegara o dia, em que César tinha ordenado
que eu me afastasse dos mais remotos confins da Itália ².
Nem o ânimo nem o prazo foi suficiente para preparar o
[necessário:
meu coração se havia entorpecido por uma longa espera.
Não me preocupei em escolher servos nem acompanhante
nem roupa nem bens necessários a um desterrado.
Fiquei pasmado não diferentemente daquele que, golpeado pelos
[raios
de Júpiter, vive, e ele próprio não está consciente de sua vida.
Quando porém a própria dor afastou de meu ânimo essa nuvem
e finalmente meus sentidos se recuperaram,
Falo pela última vez, a ponto de partir, com amigos entristecidos,
que, de muitos, só um ou outro restava.
Minha amada esposa ³, ela chorando mais forte, retinha-me em
[prantos,
enquanto as lágrimas vertiam por suas faces que não mereciam
[tal dor.
Minha filha estava longe, dispersa mais além das costas líbias ⁴,
nem podia estar ciente do meu destino.
II
Para onde quer que olhasses, soavam aflição e gemido,
e dentro de casa havia o aspecto de um funeral ruidoso.
Mulheres e homens, também crianças estão de luto por meu
[funeral,
e todo canto na casa contém lágrimas.
Se é lícito servir-se de grandes exemplos para o pequeno,
este era o aspecto de Tróia, ao ser tomada (pelos Gregos).
E já aquietavam as vozes dos homens e dos cães,
e a alta lua guiava os cavalos noturnos;
olhando-a e vendo, iluminado por ela, o Capitólio,
que em vão esteve junto à nossa casa, digo:
"Divindades ⁵ que habitais estas moradas vizinhas,
e templos que já não deverão ser vistos por meus olhos,
e vós, deuses que devo abandonar, que tem a alta cidade de
[Quirino
recebei minha saudação para todo o sempre.
E embora eu tome do escudo, depois das feridas,
livrai ao menos este desterro de ódios;
dizei ao celeste varão que erro me confundiu,
para que não pense ser um dolo ao invés de culpa ⁶,
para que o autor da minha pena também compreenda o que sabeis
aplacado tal deus, eu posso não ser desgraçado.
III
Com esta prece supliquei aos deuses; minha esposa com muitas
mais,
o soluço interrompendo as palavras cortadas ao meio.
Ela também, prostrada de joelhos diante dos Lares ⁷, com os
[cabelos desgrenhados,
beijou com a boca trêmula os lumes apagados;
e aos opostos Penates ⁸ derramou muitas palavras
que seriam inúteis em favor do marido (dela).
Tanto a noite adiantada impedia qualquer atraso,
quanto a constelação da Ursa Maior ⁹ tinha girado sobre o seu
[eixo.
O que podia fazer? Eu era retido pelo doce amor do meu país;
esta era a última noite antes do exílio que me fora ordenado.
Ah! Quantas vezes, ao ver alguém pressuroso, disse: “Por que
[apressas?
Vê para onde tens pressa de chegar e donde sair.
Ah! Quantas vezes menti ter uma hora marcada,
que fosse conveniente para a viagem pretendida!
Três vezes pisei na soleira e três vezes fui rejeitado,
e meu próprio pé, indulgente com meu espírito, relutou em sair.
Muitas vezes, tendo me despedido, falei de novo muitas coisas,
e, como se fosse embora, dei os últimos beijos.
Muitas vezes dei as mesmas ordens, e me enganei a mim mesmo,
olhando repetidas vezes com meus olhos os entes queridos.
Por fim, digo: “Por que me apresso? Cítia ¹⁰ é para onde sou
[enviado,
Roma deve ser deixada: ambas são uma razão justa para o meu
[retardo.
IV
Estando eu vivo, me são negados minha esposa viva,
minha casa e os doces membros de um lar fiel,
E os companheiros que amei fraternalmente,
ó corações unidos a mim com a fidelidade de Teseu! ¹¹
Enquanto me seja permitido, os abraçarei; talvez não me seja
[possível
fazê-lo nunca mais; tiro proveito do tempo que me é concedido.
Sem demora, nem acabo de falar palavras imperfeitas,
abraçando em meu peito tudo isso que me é caro.
Enquanto falo e choramos, havia surgido Vênus, ¹²
estrela funesta para mim, no céu mais brilhante.
Não estou diferentemente dividido do que se perdesse meus
[membros,
e pareceu-me que uma parte se separasse do meu corpo.
Assim sofreu Mécio ¹³ quando então teve uns cavalos marchando
em sentido oposto, como vingadores de sua traição.
V
Então de fato brotaram um clamor e gemidos dos meus,
e as mãos enlutadas golpearam os peitos nus.
E então minha esposa, apoiando-se nos ombros de quem partia
mesclou estas tristes palavras com minhas lágrimas:
"Não podes ser-me arrancado; juntos, ah! juntos partiremos,
[disse;
te seguirei, e serei esposa exilada de um exilado;
também para mim foi feito o caminho, me acolhe a terra
[extrema.
Me unirei, pequena carga, à tua nau prófuga.
A ira de César te ordena deixar a pátria:
o amor conjugal, ele será para mim o que César foi para ti." ¹⁴
Fazia tais tentativas: assim também tentara antes,
e a custo se deu por vencida pela conveniência. ¹⁵
Parto ¹⁶ — ou aquilo era ser levado ao túmulo sem cortejo
[fúnebre —
imundo, os cabelos pendentes sobre as faces cobertas com pelos.
Conta-se que ela, louca de dor, ao cair da noite,
desabou sem sentidos no meio da casa;
e, quando voltou a si, com os cabelos decompostos pela poeira
[suja,
também ergueu seus membros do solo gélido,
chorou por si e pelos Penates abandonados
e muitas vezes invocou o nome do marido arrebatado.
Conta-se ainda que não gemeu menos que se tivesse visto as piras
[erguidas
contendo o corpo ou de sua filha ou o meu;
e se quisesse morrer e, morrendo, deixar de sofrer.
No entanto, em atenção a mim, não pereceu. ¹⁷
Que ela viva e, já que assim dispôs o destino, que viva
para apoiar com seu auxílio sempre a mim, ausente.
Link do texto em latim: http://thelatinlibrary.com/ovid/ovid....
II. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Note-se o emprego de hipálage: Ovídio não diz que aquela noite foi tristíssima, mas sim que “a imagem daquela noite foi tristíssima”, com o que sugere que a noite em si deve ter sido muito mais que tristíssima.
² Ovídio usa, em vez de Itália, Ausônia, termo poético para designá-la.
³ Ovídio teve três esposas. Das duas primeiras desconhece-se o nome. A terceira e última, personagem deste poema, é chamada de Fábia pelo poeta, que a caracteriza como viúva e mãe de uma jovem chamada Perilla.
⁴A filha de Ovídio era esposa de Fido Cornélio, que, por sua vez, exercia o cargo de procônsul na África (cf. G. Ferrara, 1944, 25).
⁵Ao dirigir-se ao Capitólio, na realidade Ovídio está invocando a tríade capitolina, representada por Júpiter, o deus dos deuses e da justiça, Marte, o deus da guerra, e Quirino, o deus guerreiro arcaico da união do povo romano, aos quais estava dedicado um templo no monte Capitólio, a mais célebre das 7 colinas de Roma, sobre a qual se erguia o templo de Júpiter. (Cf. Grimal, 1997, 403)
⁶Ovídio não explica abertamente o motivo de seu banimento, embora também pareça indicar que o soubesse. Aqui, por exemplo, fala de um “erro” cometido e toma os deuses por testemunha de que não se tratou de um dolo ou crime, isto é, que não foi feito com má intenção, apesar de reconhecer a sua culpa. Contudo, é preciso levar em conta que ele escreveu isto com a pretensão de que Augusto o perdoaria, bem como se pode imaginar que o reconhecimento de culpa seja uma concessão calculada para lograr o perdão (assim como o servil “aplacado tal deus (César Augusto), eu posso não ser desgraçado”. Outrossim, convém observar que Ovídio foi banido por um edito de "relegação" do imperador na segunda metade do ano 8 d.C. , no qual lhe foram poupados a vida, os bens e os direitos civis, salvo o direito de livre residência. É nessa condição de "relegatus" ou degredado longe de Roma que ele esteve escrevendo essa 3ª elegia, da então ilha de Tomos, nas margens do Mar Negro, atual Romênia.
⁷Os Lares familiares eram espíritos que poderiam proteger ou prejudicar uma família romana (conjunto de pessoas, incluindo os servos e os escravos).
⁸Os Penates eram outra espécie de divindade doméstica, considerados deuses do lar, adorados tanto pelos romanos quanto pelos etruscos. Os penates eram deuses responsáveis pelo bem-estar e a prosperidade das famílias. Cada família romana adorava dois penates. Os chefes de família eram os sacerdotes dos penates de sua própria casa. O seu culto estava ligado a Vesta e aos Lares. O altar da deusa Vesta localizado no centro da casa comportava também os Lares e dois Penates.
⁹ Ursa Maior é uma das constelações mais antigas, conhecidas e facilmente identificáveis no céu noturno. É composta por um grande número de estrelas e localiza-se no céu do norte. Era conhecida como Ursa de Arcádia ou de Parrhasia, em latim Parrhasis Ursa ou Parrhasis Arctos.
Na mitologia grega, a constelação representa a ninfa Calisto, filha de Licáon, rei da Arcádia, transformada em urso pela deusa Hera como punição por ter-se envolvido romanticamente com Zeus.
Na mitologia grega, a constelação representa a ninfa Calisto, filha de Licáon, rei da Arcádia, transformada em urso pela deusa Hera como punição por ter-se envolvido romanticamente com Zeus.
A Ursa Menor, segundo uma lenda grega, é Arcas, filho da deusa Calisto e colocado no céu por Zeus. Ele e sua mãe seguem-se mutuamente de forma eterna em redor do Polo Norte celeste.
No referido verso, Ovídio teve a impressão de que a constelação de Ursa Maior tinha girado sobre seu eixo, ou dito de outra forma, parecia-lhe que ela tinha se afastado da região em que se encontrava na véspera, indicando assim que a manhã se aproximava.
¹⁰ Ovídio fora degredado de Roma para Cítia, entre os bárbaros da margem setentrional do Mar Negro.
¹¹ Teseu e Pirítoo eram tidos como companheiros inseparáveis. Na mitologia clássica, Pirítoo foi um rei dos Lápitas, antigo povo da Tessália, que desafiou Teseu para um duelo. Prestes a se enfrentarem na região de Maratona, Teseu e Pirítoo, seduzidos pela beleza um do outro, acabaram por apertar as mãos, jurando amizade eterna. Segundo a lenda, Teseu chegou a acompanhar seu amigo Pirítoo na viagem a Hades.
¹² Para os romanos, Lúcifer ("portador da luz" em latim) era o nome do planeta Vênus, embora muitas vezes fosse personificado como uma figura masculina carregando uma tocha. O nome grego para este planeta era tanto Fósforo (também significando "portador da luz") quanto Heósforo (significando "portador da aurora").
¹³ Mécio Fufécio, general dos Albanos (da velha cidade de Alba Longa, fundada por Ascânio e terra natal de Rômulo e Remo), infiel às promessas, teve como vingadoras de sua traição duas quadrigas que marchavam em sentido contrário amarradas, uma às pernas, e outra à cabeça. Ovídio o chama Mettus.
Tito Lívio (Ab urbe condita I, 28) relata a história de Mécio, um general albano que rompeu um tratado de amizade com Roma e o rei Túlio Hostílio, depois de derrotá-lo, mandou esquartejá-lo atando seus braços e pernas a quatro cavalos.
Além disso, cf. Virg. Eneida, VIII, 642-5.
¹⁴Sobre o longo trecho iniciado pelo verso “Tanto a noite adiantada impedia qualquer atraso” até este ponto, cabe destacar o contraste entre a meticulosa descrição psicológica da relutância do poeta em partir definitivamente com a brusquidão dos dois versos subsequentes que interrompem a cena em seu clímax. Até o último momento, Ovídio é falador, não para de se despedir, de justificar-se por não ter ido embora, de dar recados, mas no final se cala repentinamente, como única forma possível de acabar com a situação.
O último verso (dos dois subsequentes) descreve com maestria aquela “última olhada” antes de partir.
¹⁵Por causa das vantagens que sua permanência em Roma podia trazer-lhes.
¹⁶Nesta última cena, Ovídio descreve minuciosamente o instante mesmo da separação, no qual cria um novo clímax que se resolve com o “Parto” (“Egredior” em latim). Ovídio utiliza duas comparações: a de Mécio para descrever o seu estado de espírito e a da pira funerária para descrever o da sua esposa, para encerrar a ideia de funeral que vem desenvolvendo desde o início.
A nova alusão aos lamentos de fundo dos “seus” contribui para aumentar a tensão do momento.
¹⁷Exceto pelos dois versos finais, todo este epílogo é uma série de versos dependente de “Conta-se que ela” (“Illa narratur” em latim), ou seja, aqui Ovídio está contando o que lhe foi dito que sua esposa fez após sua partida.
III. BIBLIOGRAFIA
ANO
NOTAS EXPLICATIVAS
BRAGA, F.J.S.: RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 16: OVÍDIO: OS TRISTES, LIVRO I, 1ª ELEGIA
BURETTE, Th. & VERNADÉ, A.: OVIDE: oeuvres choisies Les Fastes. Les Tristes, traduction de la Collection Panckoucke, Paris: Librairie Garnier Frères, 1861, 554 p.
COMBA, J.: GYMNASIUM: 3º e 4º ano de Latim, Niterói: Escola Industrial Dom Bosco, 2ª edição, 1953, 200 p.
HARMSEN, B.H.: OVÍDIO, Coleção Clássicos Vozes, Série Latina, Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1962, 111 p.
RIPERT, Émile: OVIDE: Les Tristes, Les Pontiques, Ibis, Le Noyer, Halieutiques, Paris: Librairie Garnier Frères, 1937, 566 p.
SIEGLAR, A. T.: ANTOLOGIA LATINA para as 4 séries do curso ginasial, São Paulo: Saraiva & Cia., 1943, 383 p.
VELLOSO, A.: TRISTIUM (Tradução Literal de Augusto Velloso), Rio de Janeiro: Edição da "Organização Simões", 2ª edição, 1952, 223 p.
5 comentários:
Prezad@,
Na 3ª elegia do livro I de OS TRISTES, o poeta romano OVÍDIO conta a consternação que houve em sua casa, quando recebeu ordem de César Augusto para partir para o exílio no ano de 8 d.C. Nesta 3ª elegia, ele descreve a última noite que passou em Roma e narra o desespero de sua mulher e de todos os seus. É sobre tal poema que se lerá em minha tradução. O poeta nunca mais tornaria a ver a Urbe, vindo a falecer na ilha de Tomis na atual Romênia, em algum momento de 17-18 d.C.
Ovídio compôs no exílio cinco livros de elegias intitulados Os Tristes, que enviou a Roma sequencialmente entre 9 e 12 d.C. Além desses, ele compôs outras elegias, como as Cartas de Ponto, Íbis e A nogueira; ainda compôs Haliêutica, em hexâmetros dactílicos, um pequeno tratado didático sobre a pesca na região.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/11/recupere-seu-latim-parte-20-ovidio-os.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Danilo Gomes ((escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras, Marianense de Letras e Brasiliense de Letras) disse...
Mestre Braga, vou ler. Parabéns pela tradução! Ovídio é grande, imortal ! Augusto foi, em geral, um ditador e a Pax Augusta não foi um mar de rosas, o tempo todo, para o povo romano. Terminaram as guerras civis ( Sila x Mário , César x Cneu Pompeu ), mas o trono imperial nunca foi democrático. Ovídio sofreu muito, no exílio, como todos sabem.
Abraço do Danilo.
Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga
Para quem nunca estudou o Latim é muito mais do que uma Recuperação. É Admiração !
Grato,
Cupertino
Benjamin Batista (fundador de diversas Academias de Letras na Bahia, presidente da Academia de Cultura da Bahia, showman e barítono de sucesso) disse...
Bravo!
Abraço
Róbson Abrantes disse:
Obrigado pelo contato.
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