terça-feira, 24 de dezembro de 2024

NO CARAÇA... CRIME REAL?


Por Francisco José dos Santos Braga

I. INTRODUÇÃO
 
Na década de 50 do século passado ou mesmo antes, quando os pais falavam em Caraça com seus filhos, era sempre em tom de ameaça, lembrando-lhes que se tratava de uma “casa de correção”, citada como exemplo de internato situado em antigo monastério, perdido no coração das montanhas e completamente isolado do mundo exterior. Segundo eles, lá estudavam jovens que eram considerados desajustados socialmente, a serem submetidos a uma disciplina rígida para que pudessem algum dia se reintegrarem à sociedade. Ficava subentendido que no educandário imperava a austeridade e se praticava disciplina estrita, com sua metodologia de ensino que incluía castigos severos aos meninos danados, arteiros, levados ou indisciplinados. Com esse quadro formado na mente dos miúdos do sexo masculino, estes entendiam que, se a situação já não andava nada favorável em casa, podia ainda piorar muito, caso não corrigissem seu comportamento. Portanto, a ameaça de levá-los para o Caraça equivalia a ficarem presos e quase incomunicáveis até completar-se a sua formação. 
Nas casas em que predominava esse “mito”, chegava a haver mesmo uma encenação de despedida dos travessos, com arrumação de malas para a longa viagem rumo ao desconhecido, mas perfeitamente imaginado. Prontas as malas, a mãe era portadora da boa notícia de que “seu pai decidiu dar mais uma chance a vocês para que emendem seu proceder”. Os pais entendiam tudo aquilo como um “jogo” ou encenação, mas os meninos o levavam a sério, vertendo muitas lágrimas antes da ameaçada despedida da casa paterna. A boa notícia materna era o prenúncio da “pax domestica” que de novo se instalava no convívio familiar, com a promessa dos pequenos “delinquentes” de emendarem seu procedimento, até aquele momento considerado reprovável. 
Pe. José Tobias Zico, no seu livro abaixo referenciado, comenta, en passant, que houve um tempo em que reinou no Caraça a palmatória, especialmente na época em que eram superiores o Pe. Clavelin ou Pe. Boavida. O Pe. Júlio José Clavelin, 8º Superior do Caraça com a duração de 1867 a 1885, que estava nesta posição quando  da visita de D. Pedro II, e o Pe. Luiz Gonzaga Boavida, 10º Superior, de 1885 a 1895 e de 1897 a 1898. Pe. Zico refere-se aos dois com as seguintes palavras: “É claro que a palmatória, que deu a muitos jovens juízo e vontade de estudar, não era objeto de museu como atualmente no Caraça, mas o “inferno” não podia ser tão dantesco com superiores como Pe. Clavelin e Pe. Boavida.” (p. 99)
Proponho que voltemos nossa atenção para a história impressionante desta suposta “casa de correção”.
Colégio do Caraça, entre Catas Altas e Santa Bárbara-MG
 
II. A FAMÍLIA REAL EM VISITA AO CARAÇA
 
Tenho em mãos o livro “Caraça e a Família Real” de Pe. José Tobias Zico, CM. ¹ Segundo o prefaciador Waldemar de Almeida Barbosa, “neste livro, o autor narra com minúcias a história da fundação do Colégio do Caraça (em 1820). Certos episódios que relata dos primeiros anos após a independência nacional e mesmo depois da abdicação de D. Pedro I, confirmam a onda de nacionalismo exaltado que invadiu a mente dos brasileiros de então, e a ojeriza dos mesmos aos estrangeiros em geral e aos portugueses em particular. Um extremismo nativista abalou o país de Norte a Sul. No Rio, na Bahia, em Minas, no Pará, no Maranhão, em Pernambuco, distúrbios sérios e conflitos populares abalaram a nação. O português lembrava o domínio luso que havíamos suportado e, por isso, era o mais visado. (...)” (p. 8) 
Segundo o Padre Zico, “há 200 anos, tornou-se o Caraça centro de atração para quantos desejam rezar e estudar, passear e repousar. Inúmeros visitantes deixaram curiosos depoimentos sobre os dias aqui passados. Cientistas como Augusto de Saint-Hilaire e George von Langsdorff, Martius e Spix (...). As visitas, porém, mais importantes foram as de Suas Majestades: D. Pedro I e Dona Amélia em 1831 e D. Pedro II e Dona Teresa Cristina em 1881.” (p. 37) 
Vejamos o que o Padre extraiu do Diário de D. Pedro II, seguindo as suas anotações: 
Saindo do Palácio de São Cristóvão, no Rio, no dia 26 de março, veio de trem a Comitiva Imperial até Barbacena e continuou a cavalo em direção a Ouro Preto. 
No dia 2 de abril, começa uma viagem de 15 dias, contornando a serra do Caraça: Cachoeira do Campo, Sabará, Caeté, Caraça, Catas Altas, Mariana e novamente Ouro Preto. Especialmente os dias 11 (2ª feira) e 12 (terça-feira) ² são descritos no livro, com o incidente da aula de Direito Canônico em que o imperador protestou contra o que se ensinava no Caraça sobre o poder eclesiástico e o poder civil. (pp. 39 a 42 e 60 a 63)
Sobre essa visita de D. Pedro II ao Caraça, importa reter a impressão do próprio Imperador: Só o Caraça paga toda a viagem a Minas.” (p. 74)
Mas o que mais atraiu minha atenção no livro de Pe. Zico, foram o título e o conteúdo do capítulo “No Caraça... crime real?”, onde fica evidente que o autor exerce seus dotes de exímio historiador que segue à risca a lição de Louis Halphen: “Pas de documents, pas d'Histoire”. 
Assim começa o Padre Zico seu capítulo: “Com as alvissareiras notícias sobre a reconstrução do prédio da biblioteca do Caraça têm aparecido na imprensa, ao lado de boas reportagens, afirmações gratuitas, destituídas de qualquer sombra da verdade.” (p. 51) 
Considerou verídica a informação dada pelo periódico mineiro: “D. João VI foi ao Caraça... e paraninfou a primeira turma do Colégio.” “Documentos feitos por S. Tomás de Aquino, a próprio punho, foram perdidos no incêndio.” (ESTADO DE MINAS, 10/10/1974). 
Em contrapartida, “o conceituado Jornal do Brasil, em 21/02/1984, ao noticiar as promessas da reconstrução do prédio da biblioteca, preferiu, entre tantos assuntos, ressuscitar a lenda, que julgamos injuriosa ao nosso Imperador Dom Pedro II. Teria este surrupiado um incunábulo, “um exemplar da História Natural de Plinius Secundus, impresso poucos anos após Gutemberg ter inventado o primeiro sistema de impressão”. Continua ainda o Jornal, na página 6 do 1º caderno do JB, com o título “CRIME REAL”: 
“O lugar do livro na estante ficou vago, durante oito décadas, com um aviso: O livro que tinha aqui foi roubado por D. Pedro II, quando visitou o Caraça. O incêndio apagou também a pista deixada do crime de nosso último Imperador.”
Voltando ao Padre Zico: “São lendas que se vão criando, aumentando e enfeitando.”
Para bem da verdade... e da gramática, julgou relevante fazer três observações: 
1) A lenda sobre o desaparecimento do livro refere-se ao incunábulo "Chronicon” de Eusebius, impresso em 1483 e não à "História Natural” de Plinius. 
2) Uma ofensa injuriosa foi cometida contra o nosso segundo Imperador. 
3) Em uma visita à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, o autor localizou na folha de rosto do livro “Chronicon” de Eusebius Pamphili, bispo de Cesareia, a simples e delicada dedicatória, feita pelo Pe. Superior do Caraça. Não está assinada, mas pelo arquivo caracense facilmente se prova ser a letra do Pe. Júlio Clavelin, superior ou diretor de 1867 a 1885. A dedicatória, escrita em francês, é a seguinte: À SA MAGESTÉ D. PEDRO II, EMPEREUR DU BRÉSIL, LE COLLÈGE DU CARAÇA RECONNAISSANT. 12 AVRIL 1881” (vide abaixo).
 
Dedicatória em francês na folha de rosto do livro "Chronicon" de 1483, doado a D. Pedro II.
 
Pode-se indagar o porquê da dedicatória em francês.
A resposta está didaticamente exposta no capítulo intitulado 
Caraça, herança portuguesa em Minas Gerais (pp. 89 a 103), onde Pe. Zico mostra as várias fases da história do Caraça, segundo sua visão:
1ª fase: Caraça do Irmão Lourenço
2ª fase: Caraça Português, quando a maioria dos professores era de portugueses
3ª fase: Caraça Francês, com a gloriosa invasão dos padres franceses, numerosos e sábios
4ª fase: Caraça Brasileiro, já neste século (XX), quando os padres eram quase todos brasileiros.
Mas mesmo no Caraça Francês e no Caraça Brasileiro, a influência portuguesa foi notória, graças aos portugueses que foram selecionados, entre os numerosos professores de onze nacionalidades, que, no Caraça, uniram suas forças para a grandeza de nossa Pátria.
(pp. 90-91)
 
E conclui o Pe. Zico acerca da visita de D. Pedro II ao Caraça:
É muito natural tivesse havido, no momento da visita, tal gesto de generosidade por parte da direção da Casa, ante a admiração do Imperador e de sua Comitiva, admiração, aliás, registrada tanto no caderno de “Diário" de D. Pedro como na crônica do Colégio, escrita por um aluno. É verdade que o Imperador, tão meticuloso no seu “Diário”, não anotou a doação, como também não anotou o presente de “uma rica pedra composta de três diferentes minerais, o que de bom grado lhe foi ofertado”. Em assunto de doação, o registro, feito pelo doador, tem mais força do que se feito pelo beneficiado.
Hoje, no museu provisório do Caraça, o visitante poderá ver não só a “História Natural” de Plínio, mas também um álbum com várias páginas fotocopiadas do famoso livro “Chronicon” de Eusébio, mostrando além de sua classificação entre os incunábulos da Biblioteca Nacional (C.I.B.N. nº 58), a letra do Superior do Caraça, na folha de rosto, documentando a doação do livro a D. Pedro II, livro que “de bom grado lhe foi ofertado”, conforme registro em dois lugares: no próprio livro, deixado no Brasil e na Crônica do Colégio do Caraça.

 

III. DADOS HISTÓRICOS E GEOGRÁFICOS SOBRE O CARAÇA E SEU COLÉGIO
 
Este colégio fica situado numa área de 11.233 hectares na Estrada do Caraça km 9, entre os Municípios de Catas Alta e Santa Bárbara, a mais de 1.400 metros de altitude, no centro do Estado de Minas Gerais, a 120 km de Belo Horizonte, no chamado “quadrilátero ferrífero, rodeado por empresas mineradoras, que exploram ferro, manganês, ouro, etc. Ele pertence à Congregação do Brasil (Lazaristas ou Vicentinos), com sede em Roma. 
Em meados do século XVIII, a Capitania de Minas foi marcada pela intensa atuação dos devotos leigos, especialmente através das irmandades e confrarias, e das iniciativas individualizadas de alguns eremitas. Estes foram fundadores de importantes comunidades religiosas em Minas, como foi o caso do Santuário do Caraça. O fundador do Caraça foi um português de origem nebulosa, Irmão Lourenço de Nossa Senhora, segundo ele mesmo se denominou. Antes de iniciar sua obra eremítica na Serra do Caraça, fundando a Irmandade de Nossa Senhora Mãe dos Homens, Irmão Lourenço permaneceu alguns anos no Arraial do Tejuco (atualmente Diamantina). A licença para arrecadação de esmolas e a provisão para ereção da capela datam de 1774, quando são iniciadas as obras, também dirigidas para a edificação do “hospício”, ou seja, a hospedagem destinada aos companheiros eremitas e peregrinos.
Todos estes bens foram doados pelo Irmão Lourenço a D. João VI em seu testamento de 1806, sob a condição que ali se estabelecesse uma missão religiosa ou um seminário, objetivo maior perseguido pelo fundador do Caraça desde o começo de sua obra. Depois da morte de Irmão Lourenço em 1819, já em 1820 D. João VI entrega as terras e o eremitério à Congregação da Missão (Padres Lazaristas), cujos primeiros membros  Padres Leandro Rebelo Peixoto e Castro e Antônio Ferreira Viçoso  chegaram ao Brasil em 1820. De imediato, os padres transformaram o eremitério em Colégio.
 O Caraça, ao abrir sua escola em 1820 para as crianças e jovens do Brasil  durante o tempo do Império e a Primeira República  dá início à primeira experiência de ensino médio sistemático no País, após a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759. Uma experiência que se propagou e serviu de referência para a criação e estruturação de outros colégios importantes como o de Congonhas do Campo, o Assunção de Ouro Preto, o de Campo Belo da Farinha Podre no Triângulo Mineiro, o Pedro II no Rio de Janeiro, que teve um dos diretores do Caraça (Padre Leandro Rebelo Peixoto, como Vice-Reitor por dois anos).
No século XIX, o colégio foi visitado pelos Imperadores Dom Pedro I e Dom Pedro II, cujas impressões ainda podem ser vistas no Museu do Colégio ou ainda na Biblioteca. 
No início do século XX, o Colégio é transformado em “Escola Apostólica (seminário) da Congregação da Missão. O Santuário foi tombado pelo IPHAN em 1955, conforme o Livro Histórico e o Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.
Em maio de 1968, um violento incêndio concorreria para o paulatino abandono do ensino leigo no Caraça. Neste incêndio, o prédio construído pelos padres Clavelin e Boavida viria a ser inteiramente destruído, inclusive sua biblioteca, onde se perdeu mais da metade do seu acervo, então com 30.000 volumes, em parte composta por obras dos séculos XVII e XVIII.
 
 
IV. NOTAS EXPLICATIVAS

 

¹ Seus livros tornaram mais conhecida e documentada a fama do Colégio do Caraça e as benemerências da Congregação. Seu autor aceitou, como homenagem ao Caraça, a honra de ser membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e membro também da Academia Mineira de Letras.
 
² Consta que no dia 12 de abril de 1881, Dom Pedro II visitou o Colégio do Caraça reconhecendo a biblioteca como uma das mais importantes do Império. Mas não apenas isso, ele deixou algumas anotações no “Conselheiro Francisco José Furtado: biografia e estudo de história política contemporânea”, escrita por Tito Franco de Almeida e publicada em 1867, com algumas discordâncias que ele tinha em relação ao autor. Com isso temos o registro histórico de sua letra. Mas, além desse livro, há ainda outras relíquias. 

 

V. AGRADECIMENTO

O gerente do Blog agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação do registro fotográfico (da dedicatória em francês) utilizado neste trabalho.
 
 
VI. BIBLIOGRAFIA
 
 
IPHAN: Catas Altas - Colégio do Caraça
 
JESUS, Felipe de: Santuário do Caraça: Há 53 anos um incêndio reduziu o local a cinzas, Culturaliza BH, edição de 25 de maio de 2021
Link: https://culturalizabh.com.br/index.php/2021/05/25/santuario-do-caraca-ha-53-anos-um-incendio-reduziu-o-local-a-cinzas/ 
 
SANTUÁRIO DO CARAÇA: Biblioteca do Santuário do Caraça guarda preciosidades.
 
WIKIPÉDIA: Colégio do Caraça

ZICO, Pe. José Tobias: Caraça e a família imperial. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 1991, 104 p. 
 

 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

AS BRONTËS NO PALCO: UMA ENTREVISTA COM BLAKE MORRISON

Por VALTER HENRIQUE DE CASTRO FRITSCH *
Tradução do inglês e comentários por Francisco José dos Santos Braga 
Dedico este trabalho de tradução e comentários ao Prof. JOSÉ CIMINO por sua trajetória de docente em vários educandários, em especial por ter sido incentivador da arte cênica por onde passou, a começar por São João del-Rei, tendo criado nesta cidade o TUNIS-Teatro Universitário Sanjoanense na década de 60 do século passado. O grupo projetou-se em âmbito estadual e nacional, tendo sido vencedor do Festival Nacional de Teatro Amador com a peça Morte e Vida Severina, no Rio de Janeiro, em 1968. No ano seguinte, venceu o Festival de São Carlos/SP com a mesma peça. Posteriormente, como Diretor da Escola Agrotécnica de Rio Verde/GO (1975-1989), continuou a incentivar a encenação de peças teatrais nas festas juninas. Essa sua passagem por Rio Verde rendeu-lhe ser agraciado com a medalha CONDAF pelo Ministério da Educação por relevantes serviços prestados à Educação Rural e Agrotécnica no Brasil e com o título de cidadão honorário de Rio Verde em 1988. Tradutor: Francisco Braga  
 
As irmãs Brontë, pintadas pelo irmão Patrick Branwell, em 1834. Da esq. p/ dir.: Anne, Emily e Charlotte (entre elas, a sombra de Branwell / Crédito: Wikipedia

 
I. INTRODUÇÃO
 
(...) Somos Três Irmãs é o tema da presente entrevista, uma obra teatral escrita por Blake Morrison, que escolheu usar As Três Irmãs de Tchekhov como um texto-modelo. Blake Morrison espelhou muitos dos diálogos, traduzindo-os para se adequarem aos detalhes específicos da vida no Curato ¹ de Brontë. Ele manteve a estrutura de As Três Irmãs como um andaime em torno do qual ele constrói a história das Brontës. Morrison funde as Brontës e Tchekhov, biografia e ficção, num artesanato complicado, juntando peças e retalhos de tecido muito diferentes para criar uma peça que extrapola os limites do teatro, porque lida com diferentes camadas que apresentam uma peça de literatura que também é um quebra-cabeça a ser resolvido.
Morrison viu as conexões óbvias entre a vida das irmãs Brontë e a peça de Tchekhov  as três irmãs que se apoiam, um irmão problemático com problemas de bebida, pais mortos, o sentimento de distanciamento do centro, um velho servo que também é considerado parte da família e todos os temas que dizem respeito à cultura, literatura, trabalho, direitos das mulheres, amor e casamento, que são discutidos tanto por Tchekhov quanto pelas Brontës. Em 4 de fevereiro de 2015, visitei Blake Morrison em seu escritório no Goldsmith College, quando ele me concedeu uma entrevista muito generosa. Ele foi muito gentil em responder às minhas muitas perguntas sobre sua peça Somos três Irmãs. O texto a seguir é a transcrição de uma entrevista que Blake Morrison me concedeu, em seu escritório no Goldsmith College da Universidade de Londres, em fevereiro de 2015:
    
II. ENTREVISTA COM BLAKE MORRISON
 
FRITSCH: Minha primeira pergunta é sobre sua escolha de gênero (literário). Você é escritor; você escreve poesia, romances e peças teatrais. Por que você escolheu contar essa história em forma de drama? 
MORRISON: Boa pergunta. Há uma companhia de teatro em particular com a qual trabalho. Eu não me chamaria de dramaturgo, porque eu só traduzi, transpus e adaptei peças do alemão e do grego antigo e sempre para a mesma companhia de teatro sediada no norte da Inglaterra, não muito longe de Haworth e do Curato de Brontë, em Halifax. E uma amiga minha, que é crítica de teatro do jornal Observer (chama-se Susannah Clapp), tinha visto algumas dessas produções que eu tinha feito, e ela me perguntou se eu já tinha pensado em adaptar As Três Irmãs de Tchekhov, porque “me parece”, ela disse, “que há muita coisa ali que lembra as Brontës”. Bem, eu pensei, essa é uma ideia interessante. Então, sugeri ao diretor de Northern Broadsides e ele concordou que era bem interessante. Então, eu tive que ir, mas achei os obstáculos muito grandes com que começar. Achei que as diferenças entre a peça de Tchekhov e a vida das Brontës eram muito grandes, então, por um tempo, deixei de lado. Então, voltei a ela, porque ele disse, “bem, você sabe que deveríamos encená-la”. E quando voltei a ela, comecei a ver maneiras pelas quais eu poderia ficar verdadeiro, de certa forma fiel a Tchekhov, à estrutura da peça de Tchekhov, mas realmente torná-la a história das Brontës. Então, para mim, nunca foi uma escolha  uma peça, um poema ou um romance... não, não... Sempre foi Tchekhov. Eu poderia usar Tchekhov como referencial para contar a história das Brontës? 
FRITSCH: Quão profundo era seu conhecimento sobre a biografia das Brontës quando você começou a escrever a peça? Além disso, quanto tempo você pesquisou para se preparar? 
MORRISON: Bem, eu não sou um especialista nas Brontës, nem mesmo tinha, quando comecei, qualquer tipo de expertise. Eu tinha, é claro, lido Jane Eyre, O Morro dos Ventos Uivantes e alguns dos outros romances, mas quando comecei minha pesquisa, usei particularmente o livro de Juliet Barker ², que está logo atrás de você nas prateleiras, porque é o mais detalhado, e eu particularmente gosto de uma coisa que ela enfatiza, eu acho, em sua biografia, na verdade duas  uma é que as Brontës não estavam isoladas do mundo, como Elizabeth Gaskell apresenta em sua biografia ³, mas elas tinham uma vida intelectual em torno de Haworth; e em segundo lugar, a história delas não era apenas sobre tragédia, melancolia e desespero, mas havia alguma leveza nela também. Então, achei o livro dela muito útil, e de fato enviei a ela um rascunho da peça, que ela não gostou muito, porque estava muito longe da verdade da história das Brontës. Depois disso, enviei outros rascunhos e segui alguns conselhos dela, e então ela começou a apreciar, a gostar. Ela também mora perto de Haworth e da companhia de teatro, então se tornou uma apoiadora da peça e do projeto. E também devorei muitas biografias das Brontës, li muitos livros, li todos os romances, li mais sobre Anne, porque não tinha lido muito dela, comecei, suponho, a usar alguns insights das biografias, mas também lendo as cartas e lendo os romances  para pegar falas, frases delas, que eu achava que poderiam ser representativas do que Charlotte, Emily e Anne acreditavam, pensavam e sentiam e usei na peça algumas dessas falas. Então, a resposta breve é, eu cresci naquela parte do mundo, perto das Brontës, eu vivi como se elas vivessem no topo de uma vila, então eu também usei esses paralelos. Eu não era um especialista. Estava apenas interessado, como qualquer um poderia estar, nelas. Bem, fiz a pesquisa, mas não como um acadêmico faria, mas como um escritor criativo, procurando coisas que pudesse usar.
FRITSCH: Minha terceira pergunta é sobre Tchekhov. Quer dizer, por que Tchekhov? Sei que você já disse que As Três Irmãs explora temas que preocupavam as Brontës, mas esse é um imenso desafio, especialmente se você pensar no contexto russo que dá suporte à peça. 
MORRISON: Pareceu-me, quando a ideia me foi sugerida pela primeira vez... Isso é extravagante demais, isso é ridículo demais, isso é diferente demais... Mas, claro, é uma peça maravilhosa e a estrutura da peça é um modelo fantástico para usar de qualquer maneira. E, embora seja ambientada na Rússia, há paralelos suficientes com que trabalhar. Então, para dar um exemplo, a fala que todos lembram de As Três Irmãs é "Moscou, Moscou, Moscou". Então, isso me fez pensar qual era a relação das Brontës com Londres. Bem, ambivalente, eu acho. Há uma carta que Charlotte escreveu onde ela conta a seus amigos que estão visitando Londres sobre as coisas maravilhosas e majestosas na capital que você pode ver. E, claro, há aquela famosa viagem que fizeram a Londres para declarar suas identidades aos editores, ou seja, Anne e Charlotte; Emily ficou para trás. E elas tinham, como qualquer pessoa que cresceu na zona rural de Yorkshire, como eu, sempre desconfiamos um pouco da capital  Londres. Então, a atração pela cidade e essa leve resistência que achei interessante explorar na relação com a obra de Tchekhov. E, também, há conexões óbvias: três irmãs, um irmão artista problemático, pais mortos, o sentimento de distanciamento do centro, um velho criado e muita discussão sobre trabalho, casamento e amor. Uma coisa que acho que é comum na obra de Tchekhov e nas Brontës é a posição das mulheres na sociedade. Em Tchekhov, vemos uma classe de mulheres que estão frustradas com a vida que têm, embora seja uma vida privilegiada. As Brontës também estavam, eu acho, frustradas com a posição das mulheres na sociedade, mas, claro, a grande diferença era que elas trabalhavam. Trabalhavam muito. Trabalhavam muito duro para dar conta de seus deveres e de seu trabalho de escrita. Então, embora haja semelhanças na posição das mulheres na sociedade, a maneira como elas abordam o assunto não é a mesma. 
FRITSCH: Você mencionou Os Brontës de Juliet Barker na introdução da cópia impressa da peça. E eu pergunto o quão importante foi esse livro para sua escrita? Você já falou sobre isso, mas há algo que gostaria de acrescentar? 
MORRISON: Bem, há coisas específicas de que eu me lembre, por exemplo, sobre a questão de quão isoladas estavam as Brontës da sociedade intelectual e do mundo, que é o que Elizabeth Gaskell sugere. Juliet Barker enfatiza como eram ativas em ir às bibliotecas e como eram de fato. Esses são os tipos de detalhes que eu pude usar. Ela também conta a história sobre uma imensa tempestade, uma catástrofe que aconteceu quando as Brontës eram jovens; casas foram destruídas, e assim por diante. Eu percebo que seria uma oportunidade de explicar um problema que tive no terceiro ato, que corresponde na peça de Tchekhov a um incêndio. Localmente, é um desastre e as pessoas estão ajudando, as irmãs estão ajudando, e eu me preocupei em como lidar com isso, porque não havia incêndio equivalente em Haworth. Mas a tempestade, como coletada por Juliet Barker, me ajudou a encontrar um equivalente para o incêndio, a destruição em uma comunidade local, as irmãs ajudando a resolver o problema. Então, achei o livro de Juliet Barker o mais útil que li, e foi de Elizabeth Gaskell que realmente obtive a imagem , que é muito importante na produção da peça, talvez não tanto no texto , das três irmãs andando ao redor da mesa, conversando à noite depois que seu pai foi para a cama. Isso realmente veio de Gaskell. 
FRITSCH: E quanto às obras literárias das Brontës? Você me disse que leu todos os romances. Eles ajudaram você a construir seu próprio texto ou de que forma os romances afetaram você e sua escrita? 
MORRISON: Eles não afetaram a estrutura, mas afetaram as falas. Eu consegui captar, em particular, eu acho, ideias sobre amor, casamento e romance. Há muitas falas nos romances sobre esses assuntos de todos os três escritores, na verdade. Então, eu consegui pegar frases dos romances e usá-las na peça. Eu também peguei frases das cartas, particularmente as de Charlotte, e as coloquei na peça. Eu peguei uma coisa muito comovente que Anne deve... Eu acho que deve ter sido uma carta que Anne escreveu quando ela soube que estava correndo o risco de morrer, estava no fim de sua vida, e ela diz “Eu não tenho medo de morrer, mas há tanta coisa que eu quero fazer, tantos projetos, tantas coisas que eu quero realizar, é por isso que eu não quero morrer.” Foi bem no final da minha peça que escrevi algumas falas para Anne abordando essa questão. Então, dos romances e das cartas, consegui extrair algumas ideias e falas, mas há outra peça de Polly Teale , e ela fez uma peça sobre as Brontës, nada a ver com Tchekhov, e ela sai da história das Brontës transformando Charlotte em Jane Eyre , ou Emily se transformando em Cathy . De repente, os personagens da vida real se tornam personagens fictícios, e esse é o elemento de fantasia da peça de Teale. Eu não queria fazer isso. Fiquei perto de Tchekhov, a peça realista, e não abordei os romances do jeito de Teale. Abordei os romances usando algumas ideias e algumas palavras realmente usadas. Quer dizer, só para dar mais um exemplo, em Jane Eyre há um ponto em que Jane diz a Rochester “você acha que eu sou uma autômata, sem sentimentos?”, e pensei que isso poderia ser usado na peça. E, quando tivemos um ensaio, lá na casa paroquial, estava cheio de fãs, admiradores e entendidos de Brontë, e durante o coquetel de recepção, um deles veio até mim e disse: “Bem, eu gostei, mas a linguagem parece errada, por exemplo, a palavra autômato, ninguém diria autômato no século XIX”. E então eu disse: “Mas está em Jane Eyre”.
FRITSCH: Bem, você está na verdade respondendo a minhas perguntas antecipadamente. Em As Três Irmãs de Chekhov, Moscou é um símbolo do que Olga, Irina e Masha querem e podem nunca alcançar. Em Somos Três Irmãs, você usa Londres em vez de Moscou; você acha que funciona da mesma forma? Você acha que Londres seria a Moscou das Brontës? 
MORRISON: Bem, você tem razão, em Tchekhov, elas estavam em Moscou no início, e isso é muito diferente das Brontës, que não tinham ligação anterior com Londres. Mas, seria o mesmo hoje para qualquer um em Yorkshire; a capital ainda tem uma espécie de glamour sobre ele. Embora as Brontës sejam meio puritanas e sua resistência à superficialidade associada à sociedade de Londres, outra parte delas era chamada pela capital. Mais importante, talvez, elas dependiam de Londres se quisessem que suas obras fossem publicadas. Londres era, você sabe, onde os livros eram publicados, e elas tinham ambições de ser escritoras. Então, elas tiveram que ter um relacionamento com Londres para se tornarem escritoras publicadas. E, mais tarde na vida, depois que Anne e Emily morreram, Charlotte passou algum tempo em Londres. Claro, ela não era membro da sociedade londrina, mas conheceu um pouco dela. Mas o ponto-chave foi a viagem, quando Charlotte e Anne decidiram ir e ser honestas com seus editores: “Não somos homens chamados Bell, somos mulheres chamadas Brontë”. Isso é lindamente descrito na biografia de Elizabeth Gaskell, e é muito detalhado em Juliet Barker, falando sobre os trens que pegaram, os lugares onde ficaram, os editores que ficaram chocados, como se apresentaram e, quando voltaram, como Emily ficou revoltada por querer permanecer anônima, e agora os editores sabiam que eram mulheres. Bem, essa cena teve que ser adicionada, não há nada assim em Tchekhov, e pensando no título da peça, é daí que vem Somos Três Irmãs. Senti que tinha que incluir essa cena, porque era uma cena dramática muito boa. A outra coisa, e desculpe, não faz parte da sua pergunta, mas pense nos problemas de transpor Tchekhov: Masha, como a figura de Emily, é casada; Branwell também é casado, então eu tive que mudar isso obviamente. Branwell é interessante, porque ele teve um caso com uma mulher, a Sra. Robinson, e ela se tornou o equivalente a Natasha. As três irmãs (de Tchekhov) resistem a Natasha, tal como as Brontës resistem à Sra. Robinson. O problema que eu tive foi por causa da encenação da minha peça, tudo acontece na casa paroquial; então a viagem para os editores de Londres é relatada, recontada, e uma coisa semelhante acontece com Branwell, porque eu não poderia ter Branwell na casa da Sra. Robinson. Eu tive que colocar a Sra. Robinson na casa paroquial, o que na verdade nunca aconteceu; na realidade ela nunca veio. Claro, era altamente implausível na realidade, mas isso é ficção.
FRITSCH: Quando abordamos a peça, vemos que você usou Tchekhov como uma espécie de andaime para trazer esta versão de As Três Irmãs. Por exemplo, Olga é Charlotte, Masha é Emily e Irina é Anne, então eu gostaria que você comentasse como você fez as conexões considerando suas personalidades. Olga e Charlotte são bem parecidas em muitos aspectos, mas, e Emily e Anne? Como funciona para você fazer essas conexões e estabelecer os paralelos? 
MORRISON: Eu acho que há paralelos, mas para mim o que foi muito importante no final foi o fato de que as Brontës deveriam ser como entendemos que as três irmãs Brontë são. Se elas não correspondem exatamente às três irmãs em Tchekhov, que assim seja. O mais importante é que elas sejam reconhecíveis, a irmã mais velha como a controladora, a racional, a guardiã da reputação das outras duas; Emily, um pouco selvagem e tipo solitária; Anne, a caçula, sendo às vezes ressentida por ser a mais nova. Bem, eu não pretendo que a representação das três irmãs seja nova, porque eu já tinha muito trabalho transpondo Tchekhov. Eu não queria fazer nenhuma interpretação radical, como pegar as Brontës e apresentá-las de uma forma muito diferente do que o público espera. Há um livro, que eu li durante minha pesquisa, que diz que Emily deve ter tido problemas semelhantes à anorexia; este é o livro de Catherine Frank. No entanto, eu não estava interessado em nenhuma interpretação radical nova, eu quero que as pessoas sintam como “Ah sim, essa é Charlotte, essa é Emily, essa é Anne, é assim que eu sempre pensei nelas”. Sem dúvida, há paralelos, mas no final, o principal era ser como as três irmãs Brontës como as conhecemos. 
FRITSCH: As três irmãs de Tchekhov eram órfãs, mas as Brontës não. Como foi importante esse fato na construção desses personagens em sua peça? 
MORRISON: Bem, o começo da peça de Tchekhov inclui nostalgia, lembrando do pai que estava morto; o pai de Brontë, Patrick, viveu mais do que todos os seus filhos, então não há paralelo. Mas, a mãe morreu, e as duas irmãs mais velhas morreram e me parece bem possível que as irmãs Brontë tivessem memórias e tristes memórias de sua mãe e de suas irmãs falecidas, então no começo da minha peça não é a lembrança do pai, é a lembrança da mãe. Em Tchekhov, isso está acontecendo num dia onomástico, e eu o fiz como aniversário - o que é bem diferente para a cultura russa. Elas não eram órfãs, mas perderam a mãe, então encontrei correspondência sobre isso.
FRITSCH: Você também disse na introdução da edição impressa de Somos Três Irmãs que a história de Brontë é geralmente envolta em escuridão e miséria, e que sua peça tenta dispersar a melancolia e destacar a resiliência. E então, isso é apenas alimento para o pensamento, mas você não acha que As Três Irmãs de Tchekhov é tão sombrio quanto o que estamos acostumados a pensar sobre as vidas das Brontë? Quero dizer, por que você escolheu uma peça como essa para funcionar como um texto sombra se sua intenção era deixar entrar um pouco de leveza, como você também disse antes? 
MORRISON: Sim! Você poderia dizer que há uma melancolia envolvendo As Três Irmãs, o final é trágico. Mas até Tchekhov considerou a peça como uma tragicomédia e ele a chamou de tragicomédia, e há humor ali, há muito humor. Talvez venha mais dos homens na peça do que das três irmãs (Olga, Irina e Masha). Não foi tão difícil usar essa peça, porque há leveza em Tchekhov, e eu queria que as Brontës tivessem essa mesma leveza também. Então, acho que foi perfeitamente aceitável usar Tchekhov como comédia e tragédia, pois ambas participaram da vida das Brontës. 
FRITSCH: Essa questão é particularmente importante para mim. Minha dissertação de doutorado analisa algumas imagens oferecidas por Somos Três Irmãs, destacando seu potencial simbólico. Em algumas passagens, você fala sobre tipos de flores e compara alguns personagens a flores, e eu gostaria de saber se isso foi intencional ou apenas um produto de sua abordagem poética à escrita. 
MORRISON: É interessante, mas eu não tinha pensado muito sobre isso. Claro, como você pode ver, se for a Haworth e ao Curato, além dos pântanos, você se torna muito consciente do mundo natural ao seu redor e da variedade de flores e pássaros diferentes lá. Quando você cresce em um lugar como este, e eu cresci, você se torna muito consciente da natureza, pássaros, flores, vida animal e árvores. As Brontës costumavam caminhar nos pântanos; Emily em especial tinha esse amor apaixonado pela vida natural. Então, eu não acho que tenha racionalmente enfatizado pássaros ou flores; é apenas a paisagem e parcialmente o fato de crescer em um lugar como aquele. 
FRITSCH: Li em uma entrevista anterior que você não se considera um dramaturgo. Posso perguntar por quê? 
MORRISON: Bem, porque sempre trabalho com um texto existente. Na verdade, acho que isso é o mais próximo que eu chegaria de me chamar de dramaturgo, porque há muita coisa envolvida na criação e invenção de uma peça. Eu tinha o que você chamou de andaime. Eu tinha o andaime da peça original. E isso é o mesmo quando trabalho com Antígona, Greve Sexual de Lisa e todas as minhas outras peças. Sempre uso o original para trabalhar na transposição. Acho que Somos Três Irmãs pode ser minha transposição mais radical.
FRITSCH: E quanto ao gênero da peça? Você disse que gosta de realismo e que queria ficar perto do realismo de Tchekhov. Pode falar um pouco sobre isso? 
MORRISON: Eu não estava interessado em transpor cenas da ficção. Eu queria que essa história fosse a história da vida das Brontës. Não era uma adaptação de um romance. Eu não estava tentando confundir Charlotte e Jane, Emily e Cathy. Não. Eu estava contando a história da vida real das irmãs. Eu queria que parecesse uma versão realista plausível de suas vidas, e essa é uma tradição com a qual Tchekhov também está trabalhando  Realismo. Então, não é surreal, não é fabulista e não é uma alegoria; é um drama realista. 
FRITSCH: O teatro britânico contemporâneo é uma teia complexa. Quero dizer, é composto de propósitos artísticos e estéticos compartilhando o mesmo lugar. Há nomes como Beckett, Pinter, Stoppard, John Osborne e Sarah Kane, que representam uma abordagem diferente do teatro, muito distante do que Tchekhov fez. Qual é a sua opinião sobre esse choque de visões estéticas? Você acha que ainda há espaço para o realismo no palco britânico? E como seu trabalho interage com a cena contemporânea? 
MORRISON: Bem, acho que pode ser visto como uma peça antiquada, especialmente porque o assunto que importa é o início do século XIX, o cenário e assim por diante. Por outro lado, você poderia dizer que também é metaficcional ou pós-modernista na medida em que estou trabalhando com textos originais, transpondo-os e reinventando-os. Reinventando e reinterpretando um texto original. Uma das primeiras peças que me impressionou foi Rosencrantz e Guildenstern estão mortos, de Stoppard. A ideia deles saindo da peça de Shakespeare e falando sobre coisas, um personagem secundário sendo trazido para o centro do palco, para mim foi ótimo. É um tipo de jogo, trabalhar com um texto original e tentar fazer algo com esse texto original, sabe, de um contexto diferente. Então, eu não sei como minhas peças realmente se encaixam no drama britânico contemporâneo. Como eu disse, eu nem me considero um dramaturgo, mas um poeta e romancista. Então, eu nunca pensei realmente sobre meu relacionamento com o teatro britânico contemporâneo. Uma coisa que eu deveria acrescentar é  porque eu trabalho com essa companhia de teatro e diretor em particular, Barrie Rutter, que está atualmente ensaiando Rei Lear, e ele tem exigências e preconceitos sobre o que o teatro deve ser. Primeiro de tudo, discurso coloquial autêntico; era importante que as irmãs Brontë soassem como pessoas que viviam no início do século 19 em Yorkshire; elas têm aqueles sotaques; elas usam os idiomas daquela época. Segundo, cenário realista simples; sem vídeos, sem efeitos de iluminação extravagantes e também uma grande importância para a pronúncia correta do inglês. A maneira como as pessoas educadas falavam naquela época; proferindo o texto e a linguagem corretamente. Rutter acredita que muitas escolas de teatro não estão preparando os atores para pronunciar o texto corretamente; as pessoas não pronunciam as falas como deveriam. Então, ele se concentra nisso; ele se concentra na clareza. Se você for a uma produção da Northern Broadsides, você ouve cada palavra. E isso é maravilhoso para o escritor, porque o público vai ouvir cada palavra. Então, eu acho que trabalhar com ele e sua companhia também foi uma influência na minha escrita de peças; saber exatamente o que ele estava esperando e o que ele queria fazer provavelmente influenciou a peça.
 
(Fim da Entrevista)
 

 

Professor do Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).   

 
III. NOTAS EXPLICATIVAS
 
¹ Parsonage: termo traduzido por curato; às vezes, por casa paroquial ou presbitério. Patrick Brontë era curador (espécie de vigário) da Igreja da Inglaterra e casou-se com Maria Branwell. O casal gerou seis filhos: Maria, Elizabeth, Charlotte, Anne, Emily e Patrick Branwell Brontë. A família morou em Thornton, Yorkshire, na Inglaterra, e em 1820 mudou-se para Haworth, onde Patrick Brontë (pai) assumiu a função de curador da paróquia local, e foi nestes arredores que o talento literário das três irmãs (Charlotte, Anne e Emily) floresceu. Em 1846 as três irmãs conseguiram editar seu primeiro livro de poemas compartilhado sob pseudônimos masculinos de Currer (Charlotte), Ellis (Emily) e Acton (Anne) Bell.
 
² The Brontës (1994) by Juliet Barker.
 
³ A primeira biografia das Brontës, The Life of Charlotte Brontë, foi escrita por Elizabeth Cleghorn Gaskell a pedido de Patrick Branwell Brontë, e publicada em 1857, ajudando a criar o mito de uma família de gênio condenado, vivendo numa solidão dolorosa e romântica. Depois de ter permanecido em Haworth diversas vezes e ter hospedado Charlotte em Plymouth Grove, Manchester, e ter-se tornado sua amiga e confidente, a sra. Gaskell certamente tinha a vantagem e o privilégio de conhecer a família.
 
A peça Brontë (2005), por Polly Teale, explora as vidas das três irmãs bem como os personagens que elas criaram.
 
Jane Eyre: uma autobiografia (1846) é o romance de Charlotte Brontë escrito sob o pseudônimo masculino de Currer Bell foi lançado originalmente em Londres em 3 volumes. Além de Jane Eyre, Charlotte Brontë escreveu outras novelas: Shirley (1849), Villette (1853) e O Professor (1857).
 
No Morro dos Ventos Uivantes (1847) de Emily Brontë (Wuthering Heights em inglês), escrito sob o pseudônimo masculino de Ellis Bell, foi lançado originalmente em Londres e publicado como dois volumes de um conjunto de três que incluía Agnes Grey de Anne Brontë sob o pseudônimo masculino de Acton Bell. 
No romance de Emily, sua personagem Catherine (apelidada Cathy) era uma criança difícil e espirituosa, uma fonte constante de problemas. Esta descrição revela o caráter obstinado de Cathy, ao mesmo tempo que reflete as expectativas sociais da época, quando se esperava que as crianças, especialmente as meninas, fossem reservadas e respeitosas. A autora, através de Cathy, quebra esse molde, destacando-a como uma personagem forte e impactante no romance, o que, afinal, correspondia ao caráter da própria autora. 
A segunda novela de Anne Brontë é The Tenant of Wildfell Hall (A Inquilina de Wildfell Hall em português) (1848) e foi publicada em três volumes com o mesmo pseudônimo masculino de Acton Bell. Esta é bem mais ambiciosa do que a sua primeira, Agnes Grey. O tema principal é o alcoolismo que causa a ruína de sua família. Hoje, essa novela é considerada pela maioria dos críticos como sendo uma das primeiras em defesa do feminismo. Sua personagem central é Helen Graham, que, diante do comportamento violento devido ao alcoolismo do marido Arthur Huntingdon, é obrigada a romper com as convenções sociais que a prenderiam num lar que tinha se tornado um inferno, e o abandona com seu bebê para procurar refúgio secreto numa velha casa de Wildfell Hall. Quando o álcool causou o declínio final do marido, ela retorna ao lar para cuidar dele em total abnegação até sua morte.
 
Lisa's Sex Strike é uma nova adaptação da comédia de Aristófanes, Lysistrata, escrita especialmente para a Northern Broadsides Theatre Company por Blake Morrison. Nesta nova versão, mulheres de duas comunidades unem forças para acabar com a guerra entre seus homens organizando uma greve sexual. 
Nesta adaptação, o cenário é uma cidade atual no norte da Inglaterra, onde as mulheres são brancas e muçulmanas e o seu esforço de paz envolve a ocupação de uma fábrica local de componentes. 
 
 
IV. BIBLIOGRAFIA

 
FRITSCH, V. H. de C.: THE BRONTËS ON THE STAGE: AN INTERVIEW WITH BLAKE MORRISON. Organon, Porto Alegre, v. 33, n. 65, p. 10, 2018. DOI: 10.22456/2238-8915.88815. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/organon/article/view/88815. (texto em inglês) Acesso em: 16 dez. 2024.
 
Podcast apresentado por BRADFORD LITERATURE FESTIVAL, no qual Blake Morrison e a atriz Yusra Warsama exploram o notável legado das irmãs Brontës. Com transcrição disponível.
 
WIKIPEDIA: verbete Brontë family
 
___________: verbete Emily Brontë
 
___________: verbete Charlotte Brontë
 
___________: verbete Anne Brontë

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

CHARLES DARWIN, O ABOLICIONISTA


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Dedico esta crônica ao Prof. Heitor Garcia de Carvalho, que me envia textos de inexcedível riqueza, obtidos de fontes confiáveis, inspirando-me a aprofundar minha pesquisa para produzir os meus próprios, como é o caso presente.

 

A chegada de Darwin ao Rio de Janeiro, a bordo do HMS Beagle, um navio da Marinha Real Britânica, está descrita em sua correspondência à sua irmã Caroline Darwin, datada de 2-6 de abril de 1832, conforme se lê à página 59 do livro As cartas de Charles Darwin. Uma seleta, 1825-1859, editadas por Frederick Burkhardt, em tradução do inglês por Vera Ribeiro e publicado pela Editora UNESP (2000):

(...) Navegamos à toda durante a noite passada, porque o Comandante estava decidido a que víssemos o porto do Rio e fôssemos vistos, nós mesmos, em plena luz do dia. A paisagem é magnífica e melhora à medida que vai sendo conhecida; no momento, é por demais inédito fitar Montanhas escarpadas como as do País de Gales, mas revestidas de uma vegetação perene e com seu topos ornamentados pela forma leve da Palmeira. A cidade, vistosa em suas torres e Catedrais, situa-se na base dessas montanhas, e domina uma vasta baía, crivada de vasos de guerra cujas bandeiras são indicativas de todas as nações.
 
O HMS Beagle, navio da Marinha Real / Crédito: Wikimedia Commons
 
O prefaciador do referido livro, Stephen Jay Gould, declara:
Como estudante de medicina pouco entusiasmado em Edimburgo, logo antes de seu 17º aniversário, ele (Darwin) escreveu à sua irmã Susan sobre uma grande oportunidade de adquirir novos conhecimentos em sua verdadeira paixão pela história natural (e por um custo baixo e pouco doloroso para o bolso de seu pai abastado, ainda que sempre paciente). Vou aprender a empalhar pássaros com um negro africano... o que recomenda isso é o fato de ser barato, já que ele cobra apenas um guinéu por hora, todos os dias, durante dois meses" (p. 39). (As aulas de Darwin com John Edmonstone, um escravo alforriado, representaram seu primeiro contato conhecido com os negros, e essa experiência positiva contribuiu para instaurar suas ideias liberais sobre a raça.) Aos 19 anos, já estudando no Christ's College, de Cambridge (em 12 de junho de 1828), ele escreveu a seu primo, William Darwin Fox, sobre a solidão de não ter ninguém com quem conversar sobre os insetos (p. 41).
Na mesma carta, ele manifesta sua tristeza por ter sido informado por suas duas irmãs, Caroline e Charlotte, do noivado repentino de sua amada da juventude, Fanny Owen, com Robert Myddelton Biddulph em sua ausência: talvez, se a Fanny não fosse neste momento a Sra. Biddulph, eu dissesse ‘pobre da minha querida Fanny’ até adormecer. Sinto-me muito inclinado a filosofar, mas não sei o que pensar ou dizer; embora, desmanchando-me realmente em ternura, eu chore minha querida Fanny, pergunto-me porquê... (pp. 60-1)

O já citado prefaciador do mesmo livro comenta às páginas 15-16:
Darwin abominava particularmente a escravatura e a má utilização de provas científicas para defendê-la. Em 1850, a propósito da defesa que Agassiz fizera da poligenia  a doutrina de que as raças humanas representariam espécies separadas , escreveu em carta de 04/09/1850 a seu primo supracitado: Pergunto-me se as questões... a respeito das distinções específicas das raças humanas são um reflexo das Palestras de Agassiz nos Estados Unidos, nas quais ele tem sustentado a doutrina das diversas espécies  para grande alegria, diria eu, dos sulistas escravocratas (p. 182 do livro).
Também tenho em mãos o livro Viagem de um naturalista ao redor do mundo ¹ de Charles Darwin, publicado pela Abril Cultural com base no seu diário (cognominado diário do Beagle), em tradução do inglês por J. Carvalho. Nele podemos apreciar suas anotações em que figuram não só registros de fatos corriqueiros, mas principalmente suas observações e análises sobre tudo o que encontrava, sobretudo muitos espécimes da flora e fauna exóticas, recifes de coral, ossos e fósseis que encontrou em suas escavações e pássaros empalhados que trouxe para casa. Sua passagem pelo Rio de Janeiro está descrita em seu diário no Capítulo II,  do qual seleciono as seguintes datas: 

4 de abril a 5 de julho de 1832 - Alguns dias depois da nossa chegada, travei conhecimento com um inglês, dono de uma fazenda situada ao norte de Cabo Frio, a mais de cento e sessenta quilômetros de distância da capital. Como (ele) estivesse se preparando para ir visitá-la convidou-me a lhe fazer companhia, o que aceitei de bom grado. 

8 de abril - A nossa caravana consistia de sete pessoas. O primeiro percurso foi muito interessante. O dia estava excessivamente quente, e ao passarmos pelos bosques encontramos tudo imóvel, com exceção de algumas borboletas grandes e brilhantes que preguiçosamente esvoaçavam de um lado para outro. O panorama que se descortinava das colinas de detrás da praia Grande (Niterói) era deslumbrante, pela intensidade das cores que  prevalecia um tom azul escuro: embaixo, as águas tranquilas da baía (Guanabara) disputavam com o céu a supremacia do esplendor. Depois de havermos atravessado algumas áreas de terra cultivada, embrenhamo-nos por uma floresta, cujos recantos eram de inexcedível grandiosidade. Ao meio-dia chegamos a Itacaia (atual Itaocaia), pequena aldeia situada numa planície. Em torno da casa principal (Darwin está falando da Fazenda Itaocaia localizada na base da Pedra), ali existente, viam-se as choupanas dos negros. A forma e a posição desses casebres fizeram lembrar-me das gravuras que vi de habitações hotentotes na África do Sul. Como a lua nascesse cedo, resolvemos partir na mesma tarde, a fim de pernoitarmos na lagoa Maricá. Estando a cair a noite, passamos sob uma das íngremes colinas de granito maciço, tão comuns neste país. É notório este lugar pelo fato de ter sido, durante muito tempo, o quilombo de alguns escravos fugidos que, cultivando pequeno terreno próximo à vertente, conseguiram suprir-se do necessário sustento. Mas foram, um dia, descobertos e reconduzidos dali por uma escolta de soldados. Uma velha escrava, no entanto, preferindo a morte à vida miserável que vivia, lançou-se do alto do morro, indo despedaçar-se contra as pedras da base. Se se tratasse de alguma matrona romana, esse gesto seria interpretado como nobilitante amor à liberdade, mas, numa pobre negra, não passava de simples caturrice de bruto. Continuamos cavalgando várias horas. No decurso dos primeiros quilômetros a estrada emaranhava-se por um deserto de lagunas e pântanos, dando ao cenário banhado de luar o aspecto mais desolador que se podia imaginar. Alguns pirilampos cruzavam o ar perto de nós, e a nosso ouvido chegava o gemido da narceja, que fugia à nossa passagem. As ondas que se quebravam nas praias longínquas mandavam-nos, através do silêncio da noite, o seu marulhar surdo e monótono. (...)

Pedra de Itaocaia
 
Apesar de não constar desse livro (Viagem de um naturalista ao redor do mundo”), Darwin registrou em seu diário em 3 de julho de 1832 impressões sobre as maravilhas naturais do Brasil, mas não poupou críticas aos brasileiros:
Os brasileiros, até onde vai minha capacidade de julgamento, possuem somente uma pequena fatia daquelas qualidades que dão dignidade à humanidade. Ignorantes, covardes, indolentes ao extremo; hospitaleiros e amáveis à medida que isso não lhes dê trabalho; temperamentais e vingativos, mas não brigões. Satisfeitos consigo mesmos e com seus costumes, respondem a todas as observações com a pergunta: 'Por que não podemos fazer como nossos avós antes de nós fizeram? ²
Resumidamente, abaixo são descritas as principais escalas do Beagle na viagem de circunavegação, da qual Darwin participou na sua segunda expedição. A cada escala do ‘Beagle’, Darwin desembarcava, explorava o interior da região a pé ou cavalo, atravessava planícies desertas, escalava montanhas, atravessava rios, explorava florestas.
27/12/1831: partida de Devonport, Inglaterra
16/01/1832: arquipélago de Cabo Verde (ilha Porto Praia)
jan 1832: Ilhas Canárias
16/02/1832: adentrando o Atlântico, rochedos de São Paulo
Essa primeira parada no Brasil teve a duração de 4 meses e meio:
20/02/1832: ilha de Fernando de Noronha
arquipélago de Abrolhos
29/02/1832: Salvador, Bahia
18/03/1832: saída da Bahia
04/04/1832: chegada ao Rio de Janeiro
05/07/1832: saída do Rio de Janeiro
26/07/1832: chegada a Montevidéu e viagem a Maldonado e pelo Rio de La Plata
03/08/1832: da Foz do Rio Negro a Bahia Blanca
20/09/1832: Buenos Aires
27/09/1832: Santa Fé
verão de 1833: Patagônia e ilhas de Falkland
17/12/1832: Terra do Fogo
23/07/1832: Valparaíso, Chile
24/11/1832: ilhas de Chiloé, Chile
set 1835: arquipélago de Galápagos
nov 1835: Taiti
fins de dez 1835: Nova Zelândia
jan 1836: Austrália
fins de maio de 1836: Cabo da Boa Esperança, no extremo sul da África
jul 1836: ilha de Santa Helena
Ilha da Ascensão, navega de volta à costa da América do Sul antes de chegar em 2/10/1836 a Falmouth na Cornualha, Inglaterra 

Na autobiografia de Darwin escrita para seus filhos, no capítulo referente à Viagem do Beagle de 27 de dezembro de 1831 a 2 de outubro de 1836, ele reconheceu que
a viagem do Beagle tem sido, de longe, o evento mais importante na minha vida, e determinou toda a minha carreira (...).
Essa afirmação foi precedida no mesmo capítulo por um comentário muito digno a respeito do capitão do ‘Beagle’, Robert Fitz-Roy:
O temperamento de Fitz-Roy era o que podia haver de mais azarado. Era geralmente pior no início da manhã, e com seu olho de águia geralmente pronto para detectar algo errado sobre o navio, foi, então, magnânimo em sua culpa. Ele era muito gentil comigo, mas era um homem muito difícil de conviver em termos pessoais que necessariamente se seguiram a nossa trapalhada em nossa cabine. Tivemos várias discussões; por exemplo, no início da viagem na Bahia, no Brasil, ele defendeu e elogiou a escravatura, que eu abominava, e me disse que ele tinha acabado de visitar um grande senhor de escravos, que tinha convocado muitos de seus escravos e perguntou-lhes se eram felizes, e se queriam ser livres, e todos responderam Não. Então lhe perguntei, talvez com algum sarcasmo, se ele achava que a resposta de escravos na presença de seu dono tinha algum valor? Isso o deixou excessivamente zangado, e ele disse que, como eu duvidava de sua palavra, nós não poderíamos conviver por mais tempo. Eu pensei que eu estava sendo obrigado a deixar o navio; mas, assim que a notícia se espalhou, o que se fez rapidamente, como o capitão mandou chamar o primeiro-tenente para aplacar a sua ira por me tratar mal, eu fiquei profundamente gratificado por receber um convite de todos os oficiais para compartilhar de sua mesa no refeitório. Mas depois de algumas horas, Fitz-Roy mostrou sua magnanimidade habitual enviando um oficial até mim com um pedido de desculpas e de desagravo para continuar a conviver com ele. Seu caráter era em vários aspectos um dos mais nobres que eu tenho conhecido.
No Brasil, ocorreu um dos únicos desentendimentos entre Darwin e o capitão do Beagle, FitzRoy: a questão da escravidão. Mesmo dentro da mentalidade de um homem branco da elite inglesa do período vitoriano, na qual visões preconceituosas eram frequentes, Darwin questionava a escravidão, uma vez que ele vinha de uma família de tradição abolicionista e considerando que, à época, o Brasil ainda era um país escravocrata. O naturalista britânico se incomodava, sobretudo, pela crueldade com que se tratavam os negros no Brasil, postura abolicionista que parecia enfurecer o capitão do Beagle.
 
Sobre a importância do capitão FitzRoy para o crescimento intelectual de Darwin, [BROWNE, 2007, 15-41] ainda relata que
O gosto de FitzRoy pela ciência o estimulou a equipar o navio para a segunda viagem ³ com vários instrumentos sofisticados e muitos cronômetros para fazer medidas de longitude ao redor do globo. A viagem durou de dezembro de 1831 a outubro de 1836. Durante esse tempo, visitaram as ilhas de Cabo Verde, as Falkland — ou Malvinas —, muitos locais litorâneos na América do Sul, entre os quais o Rio de Janeiro, Buenos Aires, a Terra do Fogo, Valparaíso e a ilha de Chiloé, seguidos das ilhas Galápagos, Taiti, Nova Zelândia, Austrália e Tasmânia — esta muito brevemente —, e as ilhas Cocos, no oceano Índico, concluindo com o cabo da Boa Esperança, ilha de Santa Helena e ilha da Ascensão. Por conta própria, Darwin fez inúmeras expedições longas ao interior de países na América do Sul, entre elas uma excursão até os Andes. Sempre que possível, combinava com FitzRoy para ser deixado e apanhado depois em pontos diversos.
Sobre a importância do capitão FitzRoy para o crescimento intelectual de Darwin, [Idem, ibidem, 15-41] relata que
“Naquela época, porém, FitzRoy era um entusiasmado geólogo amador com idéias nada bíblicas e bastante avançadas. Deu a Darwin o primeiro volume da obra fundamental de Charles Lyell, The Principles of Geology (1830-33), e discutiu com ele algumas das teorias contidas no livro. Darwin recebeu os outros dois tomos durante a viagem. (...) Na volta para a Inglaterra, Darwin e FitzRoy escreveram juntos um pequeno artigo elogiando o trabalho dos missionários anglicanos no Taiti .

No mesmo capítulo, [Idem, ibidem, 15-41] também mostra como

“os cinco anos de viagem no Beagle fizeram de Darwin a pessoa que foi. (...) Em Montevidéu, os homens do Beagle rumaram para a cidade armados até os dentes para sufocar uma insurreição política. Na Tasmânia, assistiram a um excelente concerto. No extremo sul, quase naufragaram por causa de uma geleira que se desprendeu. Na floresta perto de Concepción, Darwin sentiu a terra tremer sob seus pés num grande terremoto. Nadou em lagunas de coral, extasiou-se com o canto dos pássaros na floresta tropical e contemplou as estrelas do alto de um desfiladeiro na cordilheira dos Andes. No Brasil, seu coração apaixonado ardeu de indignação ante a escravidão, sistema ainda legal sob o domínio português, e registrou histórias horríveis em seu diário: fatos tão revoltantes, disse, que se os tivesse escutado na Inglaterra pensaria que haviam sido urdidos para efeito jornalístico. A autora também questiona a razão por que “o crescimento intelectual de Darwin durante a viagem não seja devidamente reconhecido.
A situação dos escravos brasileiros deixou Darwin tão horrorizado que prometeu nunca mais por os pés num país escravagista, conforme anotou em seu diário. 

Há outra passagem no seu diário que reflete o horror que teve perante uma senhora idosa no Brasil que usava tarrachas de polegar para punir seus escravos. 

Ele também escreveu:
Imagine uma contingência, sempre pairando sobre a gente, de sua esposa e seus filhos pequenos... serem arrancados da gente e vendidos ao maior lance! E essas ações são feitas... por homens que professam amar seus próximos como a si mesmos... e rezam para que a vontade de Deus seja feita na Terra! Isso faz o sangue da gente ferver.
Em outra ocasião, Darwin teve um vislumbre das atitudes dos escravos: um dia, ainda no Brasil, quando era transportado através de um rio por um barqueiro negro, acenou os braços para apontar as direções e ficou horrorizado ao ver o homem se agachar de medo porque pensou que levaria uma pancada.

Nessa linha de pensamento, ainda no mesmo diário fez sua previsão a respeito de nossa nação: que os negros escravizados um dia tomariam o poder, tornando-se seus líderes políticos.

Eu não posso deixar de pensar que eles serão, no fim das contas, os governantes. Presumo isso por serem numerosos, por seu excelente porte atlético (especialmente em contraste com os brasileiros), observando que estão em um clima agradável e por ver claramente que sua capacidade intelectual foi muito subestimada. Eles são a mão de obra eficiente em todo o comércio necessário. Se os negros libertos crescerem em número (como deve acontecer), o tempo de libertação total não estará muito distante.


II. OS PRECONCEITOS DE DARWIN

 
Apesar de seus posicionamentos progressistas em relação à abolição da escravatura, ele não estava livre de preconceitos, algo típico não só de Darwin, mas também de muitos autores do século XIX, todos herdeiros do kit completo de preconceitos da era vitoriana. A Inglaterra, sua terra natal, legislou contra o envolvimento com o tráfico negreiro em 1807, decisão que encheu sua população de orgulho antiescravista. Mas apenas em 1832 foi expedido o Ato de Emancipação, no momento em que os movimentos filantrópicos de massa atingiram o ápice na Grã-Bretanha que contemplou  a emancipação dos escravizados; mesmo assim, foi uma providência bastante precoce em relação a outras nações como o Brasil, que só aboliu a escravatura 55 anos depois. Os britânicos tendiam a encarar essa condição como "uma evidência de como a civilização inglesa era superior às demais", sentimento que foi herdado por Darwin. 
 
Além disso, Darwin lançou seu livro A Descendência do Homem em 1871, em dois volumes, doze anos após o seu aclamado tratado A origem das espécies, de 1859. No novo livro, Darwin postulou que as "raças humanas" se formaram a partir das diferenças entre os sexos, onde revela grande dose de sexismo e de racismo, pelo que passou a sofrer muita contestação por parte dos antrópologos e outros estudiosos modernos. 
Em A Descendência do Homem, Darwin aplica a teoria evolucionária à evolução humana, e também explica sua teoria da seleção sexual. Ele pensou que os dois tópicos estavam intimamente ligados. 

A historiadora da ciência já citada neste trabalho, Janet Browne, utiliza as últimas descobertas em áreas como genética, paleontologia, bioarqueologia, antropologia e primatologia; por outro lado, aborda as ideias darwinianas e as problemáticas que suscitam em Um problema muito interessante – Em que a Descendência do Homem de Darwin acertou e errou a respeito da evolução humana (trad.), livro lançado em 2020 pela Princeton University Press. Segundo [BROWNE, 2021, 258 p.], no seu livro Darwin propunha que "a seleção sexual foi instrumental em explicar a origem do que ele chamava 'raças' humanas, e do progresso cultural" e para ele "a seleção sexual entre os humanos podia também afetar características mentais como inteligência e amor materno" e considera ainda mais polêmico o que ele escreveu: "O homem é mais corajoso, pugnaz e enérgico do que a mulher, e tem mais gênio inventivo."
Ela entende a argumentação de Darwin como uma tentativa de "explicar as raízes biológicas do desenvolvimento histórico da civilização. Ele achava que a seleção sexual era um fator importante também no desenvolvimento da mente humana", o que é passível de contestação.
A autora considera tais ideias problemáticas – e crê que não está só.
Holly Dunsworth, bioantropóloga da Universidade de Rhode Island e também colaboradora do livro em que Janet Browne assina a Introdução, aborda o problema mais frontalmente, considerando que foram "os homens e as tradições patriarcais" que impediram as cientistas do sexo feminino de se destacarem no tempo de Darwin.
 

III. NOTAS EXPLICATIVAS


¹  O título em português (Viagem de um naturalista ao redor do mundo”) tem pouco a ver com a edição inglesa. Em 1839 Darwin publicou esse seu livro clássico sob seu título original: "Journal of Researches" (Diário de Pesquisas ou Diário de Investigações). O livro foi republicado mais tarde como "The Voyage of the Beagle" (A Viagem do Beagle), e permanece assim impresso até hoje. Até o Projeto Gutenberg adotou este último título (The Voyage of the Beagle) para o e-book da obra darwiniana de 1839. O livro é um relato animado e encantador das viagens de Darwin, escrito com inteligência e ocasionais lampejos de humor.
 
² Muitas das passagens anotadas no diário por Darwin acabariam de fora de seus livros. É o caso do trecho em questão, registrado em 03/07/1832 apenas no seu diário.
Cf. LIMA, Cláudia de Castro in Aventuras na História: Diário do Beagle: de barco rumo ao Sul, publicado em 22/05/2019
 
³ As viagens do Beagle, um navio da Marinha Real Britânica, serviam para atualizar mapas litorâneos de locais como África, Oceania e América do Sul - incluindo o Brasil. A viagem da qual Darwin participou – e que, nas suas palavras, foi o evento mais importante na sua vida – foi a segunda de três expedições empreendidas pelo HMS Beagle. [BROWNE, 2007, 15-41] esclarece que a expedição do Beagle cumpria ordens muito estritas emanadas do Almirantado Britânico:
Hoje, a fama dessa viagem torna por vezes difícil lembrar que sua finalidade não era conduzir Darwin em uma volta ao mundo, mas cumprir instruções do Almirantado britânico. O navio fora encarregado de completar e ampliar um levantamento hidrográfico anterior, realizado de 1825 a 1830, das águas sul-americanas. FitzRoy assumiu o comando do Beagle dois anos depois dessa primeira viagem se iniciar. A área era importante para o governo por questões comerciais, nacionais e navais, reforçadas pelo acentuado entusiasmo do Almirantado pelo progresso científico prático e sua preocupação com cartas navais exatas e o registro de portos seguros. De fato, o Gabinete do Hidrógrafo se notabilizou pelo envio de grande número de expedições de levantamento durante a calmaria que se seguiu às guerras napoleônicas para promover e explorar os interesses britânicos no estrangeiro.

Darwin viajou a bordo do Beagle na condição de cavalheiro passageiro”, por indicação de seu professor John Steven Henslow.

O tradutor e escritor Caetano Waldrigues Galindo afirma: “A viagem fez o Darwin que viríamos a conhecer. O jovem que sai da Inglaterra no Beagle era um geólogo promissor, e os primeiros registros nos diários confirmam essa inclinação e esse talento. No entanto, as observações e coletas que ele faz durante a viagem vão tornando inevitável sua dedicação a questões de biologia,” embora, durante a viagem, Darwin tenha feito observações significativas sobre a formação de montanhas, terremotos e a elevação de ilhas. Seu trabalho sobre os recifes de corais, onde propôs que os atóis se formam a partir do afundamento de ilhas vulcânicas, foi uma contribuição significativa para a geologia, reconhecida até hoje. 
 
O título do artigo é The Moral State of Tahiti e Darwin tinha apenas 29 anos, quando escreveu esse seu primeiro artigo, muito antes de fazê-lo sobre evolução.
 
Trata-se de um novo trecho extraído do diário de Darwin, mas não publicado em livro, em conformidade com o seu registro em 03/07/1832, além do já citado na Nota nº 1. 
 

IV. BIBLIOGRAFIA
 
 
ABBANY, Zulfikar: Teorias de Darwin sobre sexo e raça revoltam pesquisadores, Deutsche Welle, publicado em 24/02/2021
 
BROWNE, Janet: A Origem das Espécies de Darwin (uma biografia), Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2007,  169 p.

______________ et alii: A most interesting problem: what Darwin's Descent of man got right and wrong about human evolution, Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2021 (Obs. A biógrafa de Darwin, Janet Browne, assina a Introdução, e Jeremy DeSilva, o prefácio, além de outros colaboradores)
 
DARWIN, Charles: As cartas de Charles Darwin. Uma seleta, 1825-1859, editadas por Frederick Burkhardt, prefácio de Stephen Jay Gould e em tradução do inglês por Vera Ribeiro e publicado pela Editora UNESP (2000), 339 p.

_______________: Viagem de um naturalista ao redor do mundo (trechos escolhidos), publicado pela Abril Cultural com base no seu diário (cognominado diário do Beagle), em tradução do inglês por J. Carvalho
 
_______________: The descent of man, and selection in relation to sex,  publicado por John Murray em 1871, no Reino Unido. 

LIENHARD, John H.: Darwin and Racism

__________________: Darwin Boards the Beagle