Por Francisco José dos Santos Braga
I. INTRODUÇÃO
Na década de 50 do século passado ou mesmo antes, quando os pais falavam em Caraça com seus filhos, era sempre em tom de ameaça, lembrando-lhes que se tratava de uma “casa de correção”, citada como exemplo de internato situado em antigo monastério, perdido no coração das montanhas e completamente isolado do mundo exterior. Segundo eles, lá estudavam jovens que eram considerados desajustados socialmente, a serem submetidos a uma disciplina rígida para que pudessem algum dia se reintegrarem à sociedade. Ficava subentendido que no educandário imperava a austeridade e se praticava disciplina estrita, com sua metodologia de ensino que incluía castigos severos aos meninos danados, arteiros, levados ou indisciplinados. Com esse quadro formado na mente dos miúdos do sexo masculino, estes entendiam que, se a situação já não andava nada favorável em casa, podia piorar muito, caso não corrigissem seu comportamento. Portanto, a ameaça de levá-los para o Caraça equivalia a ficarem presos e quase incomunicáveis até completar-se a sua formação.
Nas casas em que predominava esse “mito”, chegava a haver mesmo uma encenação de despedida dos travessos, como arrumação de malas para a longa viagem rumo ao desconhecido, mas perfeitamente imaginado. Prontas as malas, a mãe era portadora da boa notícia de que “seu pai decidiu dar mais uma chance a vocês para que emendem seu procedimento”. Os pais entendiam tudo aquilo como um “jogo” ou encenação, mas os meninos o levavam a sério, vertendo muitas lágrimas antes da ameaçada despedida da casa paterna. A boa notícia materna era o prenúncio da “pax domestica” que de novo se instalava no convívio familiar, com a promessa dos pequenos “delinquentes” de emendarem seu procedimento, até aquele momento considerado reprovável.
Proponho que voltemos nossa atenção para a história impressionante desta suposta “casa de correção”.
II. A FAMÍLIA REAL EM VISITA AO CARAÇA
Tenho em mãos o livro “Caraça e a Família Real” de Pe. José Tobias Zico, CM. ¹ Segundo o prefaciador Waldemar de Almeida Barbosa, “neste livro, o autor narra com minúcias a história da fundação do Colégio do Caraça (em 1820). Certos episódios que relata dos primeiros anos após a independência nacional e mesmo depois da abdicação de D. Pedro I, confirmam a onda de nacionalismo exaltado que invadiu a mente dos brasileiros de então, e a ojeriza dos mesmos aos estrangeiros em geral e aos portugueses em particular. Um extremismo nativista abalou o país de Norte a Sul. No Rio, na Bahia, em Minas, no Pará, no Maranhão, em Pernambuco, distúrbios sérios e conflitos populares abalaram a nação. O português lembrava o domínio luso que havíamos suportado e, por isso, era o mais visado. (...)” (p. 8)
Segundo o Padre Zico, “há 200 anos, tornou-se o Caraça centro de atração para quantos desejam rezar e estudar, passear e repousar. Inúmeros visitantes deixaram curiosos depoimentos sobre os dias aqui passados. Cientistas como Augusto de Saint-Hilaire e George von Lagsdorff, Martius e Spix (...). As visitas, porém, mais importantes foram as de Suas Majestades: D. Pedro I e Dona Amélia em 1831 e D. Pedro II e Dona Teresa Cristina em 1881.” (p. 37)
Vejamos o que o Padre extraiu do Diário de D. Pedro II, seguindo as suas anotações:
Saindo do Palácio de São Cristóvão, no Rio, no dia 26 de março, veio de trem a Comitiva Imperial até Barbacena e continuou a cavalo em direção a Ouro Preto.
No dia 2 de abril, começa uma viagem de 15 dias, contornando a serra do Caraça: Cachoeira do Campo, Sabará, Caeté, Caraça, Catas Altas, Mariana e novamente Ouro Preto.
Especialmente os dias 11 (2ª feira) e 12 (terça-feira) ² são descritos no livro, com o incidente da aula de Direito Canônico em que o imperador protestou contra o que se ensinava no Caraça sobre o poder eclesiástico e o poder civil. (pp. 39 a 42 e 60 a 63)
Sobre essa visita de D. Pedro II ao Caraça, importa reter a impressão do próprio Imperador: “Só o Caraça paga toda a viagem a Minas.” (p. 74)
Mas o que mais atraiu minha atenção no livro de Pe. Zico, foram o título e o conteúdo
do capítulo “No Caraça... crime real?”, onde fica evidente que o autor exerce seus dotes de exímio historiador que segue à risca a lição de Louis Halphen: “Pas de documents, pas d'Histoire”.
Assim começa o Padre Zico seu capítulo: “Com as alvissareiras notícias sobre a reconstrução do prédio da biblioteca do Caraça têm aparecido na imprensa, ao lado de boas reportagens, afirmações gratuitas, destituídas de qualquer sombra da verdade.”(p. 51)
Considerou verídica a informação dada pelo periódico mineiro: “D. João VI foi ao Caraça... e paraninfou a primeira turma do Colégio.” “Documentos feitos por S. Tomás de Aquino, a próprio punho, foram perdidos no incêndio.” (ESTADO DE MINAS, 10/10/1974).
Em contrapartida, “o conceituado Jornal do Brasil, em 21/02/1984, ao noticiar as promessas da reconstrução do prédio da biblioteca, preferiu, entre tantos assuntos, ressuscitar a lenda, que julgamos injuriosa ao nosso Imperador Dom Pedro II. Teria este surrupiado um incunábulo, “um exemplar da História Natural de Plinius Secundus, impresso poucos anos após Gutemberg ter inventado o primeiro sistema de impressão”. Continua ainda o Jornal, na página 6 do 1º caderno do JB, com o título “CRIME REAL”:
“O lugar do livro na estante ficou vago, durante oito décadas, com um aviso: O livro que tinha aqui foi roubado por D. Pedro II, quando visitou o Caraça. O incêndio apagou também a pista deixada do crime de nosso último Imperador.”
Voltando ao Padre Zico: “São lendas que se vão criando, aumentando e enfeitando.”
Para bem da verdade... e da gramática, julgou relevante fazer três observações:
1) A lenda sobre o desaparecimento do livro refere-se ao incunábulo "Chronicon” de Eusebius, impresso em 1483 e não à "História Natural” de Plinius.
2) Uma ofensa injuriosa foi cometida contra o nosso segundo Imperador.
3) Em uma visita à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, o autor localizou na folha de rosto do livro “Chronicon” de Eusebius Pamphili, bispo de Cesareia, a simples e delicada dedicatória, feita pelo Pe. Superior do Caraça. Não está assinada, mas pelo arquivo caracense facilmente se prova ser a letra do Pe. Júlio Clavelin, superior ou diretor de 1867 a 1885. A dedicatória, escrita em francês, é a seguinte: “À SA MAGESTÉ D. PEDRO II, EMPEREUR DU BRÉSIL, LE COLLÈGE DU CARAÇA RECONNAISSANT. 12 AVRIL 1881” (vide abaixo).
Pode-se indagar o porquê da dedicatória em francês.
A resposta está didaticamente exposta no capítulo intitulado “Caraça, herança portuguesa em Minas Gerais” (pp. 89 a 103), onde Pe. Zico mostra as várias fases da história do Caraça, segundo sua visão:
1ª fase: Caraça do Irmão Lourenço
2ª fase: Caraça Português, quando a maioria dos professores era de portugueses
3ª fase: Caraça Francês, com a gloriosa invasão dos padres franceses, numerosos e sábios
4ª fase: Caraça Brasileiro, já neste século (XX), quando os padres eram quase todos brasileiros.
Mas mesmo no Caraça Francês e no Caraça Brasileiro, a influência portuguesa foi notória, graças aos portugueses que foram selecionados, entre os numerosos professores de onze nacionalidades, que, no Caraça, uniram suas forças para a grandeza de nossa Pátria.
A resposta está didaticamente exposta no capítulo intitulado “Caraça, herança portuguesa em Minas Gerais” (pp. 89 a 103), onde Pe. Zico mostra as várias fases da história do Caraça, segundo sua visão:
1ª fase: Caraça do Irmão Lourenço
2ª fase: Caraça Português, quando a maioria dos professores era de portugueses
3ª fase: Caraça Francês, com a gloriosa invasão dos padres franceses, numerosos e sábios
4ª fase: Caraça Brasileiro, já neste século (XX), quando os padres eram quase todos brasileiros.
Mas mesmo no Caraça Francês e no Caraça Brasileiro, a influência portuguesa foi notória, graças aos portugueses que foram selecionados, entre os numerosos professores de onze nacionalidades, que, no Caraça, uniram suas forças para a grandeza de nossa Pátria.
E conclui o Pe. Zico acerca da visita de D. Pedro II ao Caraça:
“É muito natural tivesse havido, no momento da visita, tal gesto de generosidade por parte da direção da Casa, ante a admiração do Imperador e de sua Comitiva, admiração, aliás, registrada tanto no caderno de “Diário" de D. Pedro como na crônica do Colégio, escrita por um aluno. É verdade que o Imperador, tão meticuloso no seu “Diário”, não anotou a doação, como também não anotou o presente de “uma rica pedra composta de três diferentes minerais, o que de bom grado lhe foi ofertado”. Em assunto de doação, o registro, feito pelo doador, tem mais força do que se feito pelo beneficiado.
Hoje, no museu provisório do Caraça, o visitante poderá ver não só a “História Natural” de Plínio, mas também um álbum com várias páginas fotocopiadas do famoso livro “Chronicon” de Eusébio, mostrando além de sua classificação entre os incunábulos da Biblioteca Nacional (C.I.B.N. nº 58), a letra do Superior do Caraça, na folha de rosto, documentando a doação do livro a D. Pedro II, livro que “de bom grado lhe foi ofertado”, conforme registro em dois lugares: no próprio livro, deixado no Brasil e na Crônica do Colégio do Caraça.
III. DADOS HISTÓRICOS E GEOGRÁFICOS SOBRE O CARAÇA E SEU COLÉGIO
Este colégio fica situado numa área de 11.233 hectares na Estrada do Caraça km 9, entre os Municípios de Catas Alta e Santa Bárbara, a mais de 1.400 metros de altitude, no centro do Estado de Minas Gerais, a 120 km de Belo Horizonte, no chamado “quadrilátero ferrífero”, rodeado por empresas mineradoras, que exploram ferro, manganês, ouro, etc. Ele pertence à Congregação do Brasil (Lazaristas ou Vicentinos), com sede em Roma.
Em meados do século XVIII, a Capitania de Minas foi marcada pela intensa atuação dos devotos leigos, especialmente através das irmandades e confrarias, e das iniciativas individualizadas de alguns eremitas. Estes foram fundadores de importantes comunidades religiosas em Minas, como foi o caso do Santuário do Caraça. O fundador do Caraça foi um português de origem nebulosa, Irmão Lourenço de Nossa Senhora, segundo ele mesmo se denominou. Antes de iniciar sua obra eremítica na Serra do Caraça, fundando a Irmandade de Nossa Senhora Mãe dos Homens, Irmão Lourenço permaneceu alguns anos no Arraial do Tejuco (atualmente Diamantina). A licença para arrecadação de esmolas e a provisão para ereção da capela datam de 1774, quando são iniciadas as obras, também dirigidas para a edificação do “hospício”, ou seja, a hospedagem destinada aos companheiros eremitas e peregrinos.
Todos estes bens foram doados pelo Irmão Lourenço a D. João VI em seu testamento de 1806, sob a condição que ali se estabelecesse uma missão religiosa ou um seminário, objetivo maior perseguido pelo fundador do Caraça desde o começo de sua obra. Depois da morte de Irmão Lourenço em 1819, já em 1820 D. João VI entrega as terras e o eremitério à Congregação da Missão (Padres Lazaristas), cujos primeiros membros — Padres Leandro Rebelo Peixoto e Castro e Antônio Ferreira Viçoso — chegaram ao Brasil em 1820. De imediato, os padres transformaram o eremitério em Colégio.
O Caraça, ao abrir sua escola em 1820 para as crianças e jovens do Brasil — durante o tempo do Império e a Primeira República — dá início à primeira experiência de ensino médio sistemático no País, após a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759. Uma experiência que se propagou e serviu de referência para a criação e estruturação de outros colégios importantes como o de Congonhas do Campo, o Assunção de Ouro Preto, o de Campo Belo da Farinha Podre no Triângulo Mineiro, o Pedro II no Rio de Janeiro, que teve um dos diretores do Caraça (Padre Leandro Rebelo Peixoto, como Vice-Reitor por dois anos).
No século XIX, o colégio foi visitado pelos Imperadores Dom Pedro I e Dom Pedro II, cujas impressões ainda podem ser vistas no Museu do Colégio ou ainda na Biblioteca.
Em maio de 1868, um violento incêndio concorreria para o paulatino abandono do ensino leigo no Caraça. Neste incêndio, o prédio construído pelos padres Clavelin e Boavida viria a ser inteiramente destruído, inclusive sua biblioteca, onde se perdeu mais da metade do seu acervo, então com 30.000 volumes, em parte composta por obras dos séculos XVII e XVIII.
No início do século XX, o Colégio é transformado em “Escola Apostólica” (seminário) da Congregação da Missão. O Santuário foi tombado pelo IPHAN em 1955, conforme o Livro Histórico e o Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.
IV. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Seus livros tornaram mais conhecida e documentada a fama do Colégio do Caraça e as benemerências da Congregação. Seu autor aceitou, como homenagem ao Caraça, a honra de ser membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e membro também da Academia Mineira de Letras.
² Consta que no dia 12 de abril de 1881, Dom Pedro II visitou o Colégio do Caraça reconhecendo a biblioteca como uma das mais importantes do Império. Mas não apenas isso, ele deixou algumas anotações no “Conselheiro Francisco José Furtado: biografia e estudo de história política contemporânea”, escrita por Tito Franco de Almeida e publicada em 1867, com algumas discordâncias que ele tinha em relação ao autor. Com isso temos o registro histórico de sua letra. Mas, além desse livro, há ainda outras relíquias.
V. BIBLIOGRAFIA
IPHAN: Catas Altas - Colégio do Caraça
SANTUÁRIO DO CARAÇA: Biblioteca do Santuário do Caraça guarda preciosidades.
WIKIPÉDIA: Colégio do Caraça
ZICO, Pe. José Tobias: Caraça e a família imperial. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 1991, 104 p.
6 comentários:
Prezad@,
Valho-me de um de um dos livros de Pe. JOSÉ TOBIAS ZICO, CM., intitulado Caraça e a Família Imperial, em especial um de seus capítulos, para forjar uma pequena crônica, histórico-literária, para a qual conto com sua costumeira generosidade.
Afinal, caro leitor, na época natalina, essa qualidade nobre é mais pronunciada no comportamento, atitudes e sentimentos quando todos fazem votos de Feliz Natal.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/12/no-caraca-crime-real.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Artur Cláudio da Costa Moreira (professor e presidente do IHG de São João del-Rei) disse...
Tive o prazer de conhecer o Padre Tobias e privar de conversas longas com ele. Uma inteligência ímpar!
Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...
Agradeço, Francisco.
A você e esposa os meus votos de feliz Natal e um magnífico 2025.
Abraços,
Anderson.
Dr. Francisco, paz, saúde e alegria!
Obrigada pelo seu presente natalino. Li com prazer e muita atenção seu rico e bem elaborado texto sobre o Colégio Caraça.
Parabéns pelas suas pesquisas sobre tão importante educandário mineiro e por publicá-las!
Gostei da maneira como abordou o assunto: “No Caraça... crime real?”.
Fui muito amiga do Pe. Tobias Zico, autor do livro que o senhor muito citou. Roque e eu, sempre, íamos ao Caraça para visitá-lo.
Tentarei conseguir o livro de pesquisas: "Caraça: Centro Mineiro de Educação e missão", de autoria do meu cunhado, prof. Maurílio Camello, que lecionava no Colégio, quando aconteceu o incêndio, em 1968. O livro é excelente, talvez seja o primeiro escrito por um historiador que pesquisou em muitas fontes primárias e viveu no Caraça.
Já enviei uma mensagem para meu amigo, Dr. José Pedro Araújo Silva, autor do livro: “Da arte de educar – A escola do Caraça”, solicitando-o um exemplar, desse livro, para lhe enviar. Ele é ex-aluno caracense, que analisa com profundidade o que foi o trabalho educacional realizado no Caraça desde 1820. É um livro delicioso de se ler, além da sua experiência de ter passado 9 anos interno naquele importante educandário, José Pedro Araújo é um homem muito culto e tem um texto muito bom.
Um dos dois fundadores do Caraça, foi o português, Dom Antônio Ferreira Viçoso, o “Santo Particular”, da família do poeta, Carlos Drumond de Andrade, que lhe dedicou uma poesia com esse nome.
Dom Viçoso é o meu santo de devoção. Este faleceu na Cartuxa, em Mariana, em 07 de julho de 1875.
E, viva o Caraça de Dom Viçoso e do Pe. Tobias Zico!
Merania Oliveira
Rafael dos Santos Braga (pesquisador, graduado em Filosofia na UFSJ) disse...
Obrigado Franz ! Um abraço meu e da Lourdes lhes desejando um feliz Natal e um grande 2025 ! Abraços !
Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga
Fascinante matéria sobre esse fabuloso patrimônio mineiro e brasileiro. Aproveito o ensejo para lhes desejar um 2025 com muita saúde e boa continuidade de seu edificante trabalho nesta página, assim como parabenizá-los por mais um ano de dedicada atividade cultural.
Saudações.
Cupertino
Postar um comentário