Dedico esta crônica ao Prof. Heitor Garcia de Carvalho, que me envia textos de inexcedível riqueza, obtidos de fontes confiáveis, inspirando-me a aprofundar minha pesquisa para produzir os meus próprios, como é o caso presente.
A chegada de Darwin ao Rio de Janeiro, a bordo do HMS Beagle, um navio da Marinha Real Britânica, está descrita em sua correspondência à sua irmã Caroline Darwin, datada de 2-6 de abril de 1832, conforme se lê à página 59 do livro As cartas de Charles Darwin. Uma seleta, 1825-1859, editadas por Frederick Burkhardt, em tradução do inglês por Vera Ribeiro e publicado pela Editora UNESP (2000):
“(...) Navegamos à toda durante a noite passada, porque o Comandante estava decidido a que víssemos o porto do Rio e fôssemos vistos, nós mesmos, em plena luz do dia. A paisagem é magnífica e melhora à medida que vai sendo conhecida; no momento, é por demais inédito fitar Montanhas escarpadas como as do País de Gales, mas revestidas de uma vegetação perene e com seu topos ornamentados pela forma leve da Palmeira. A cidade, vistosa em suas torres e Catedrais, situa-se na base dessas montanhas, e domina uma vasta baía, crivada de vasos de guerra cujas bandeiras são indicativas de todas as nações.”
“Como estudante de medicina pouco entusiasmado em Edimburgo, logo antes de seu 17º aniversário, ele (Darwin) escreveu à sua irmã Susan sobre uma grande oportunidade de adquirir novos conhecimentos em sua verdadeira paixão pela história natural (e por um custo baixo e pouco doloroso para o bolso de seu pai abastado, ainda que sempre paciente). “Vou aprender a empalhar pássaros com um negro africano... o que recomenda isso é o fato de ser barato, já que ele cobra apenas um guinéu por hora, todos os dias, durante dois meses" (p. 39). (As aulas de Darwin com John Edmonstone, um escravo alforriado, representaram seu primeiro contato conhecido com os negros, e essa experiência positiva contribuiu para instaurar suas ideias liberais sobre a raça.) Aos 19 anos, já estudando no Christ's College, de Cambridge (em 12 de junho de 1828), ele escreveu a seu primo, William Darwin Fox, sobre a solidão de não ter ninguém com quem conversar sobre os insetos” (p. 41).
“Darwin abominava particularmente a escravatura e a má utilização de provas científicas para defendê-la. Em 1850, a propósito da defesa que Agassiz fizera da poligenia — a doutrina de que as raças humanas representariam espécies separadas —, escreveu em carta de 04/09/1850 a seu primo supracitado: “Pergunto-me se as questões... a respeito das distinções específicas das raças humanas são um reflexo das Palestras de Agassiz nos Estados Unidos, nas quais ele tem sustentado a doutrina das diversas espécies — para grande alegria, diria eu, dos sulistas escravocratas” (p. 182 do livro).
“4 de abril a 5 de julho de 1832 - Alguns dias depois da nossa chegada, travei conhecimento com um inglês, dono de uma fazenda situada ao norte de Cabo Frio, a mais de cento e sessenta quilômetros de distância da capital. Como (ele) estivesse se preparando para ir visitá-la convidou-me a lhe fazer companhia, o que aceitei de bom grado.
8 de abril - A nossa caravana consistia de sete pessoas. O primeiro percurso foi muito interessante. O dia estava excessivamente quente, e ao passarmos pelos bosques encontramos tudo imóvel, com exceção de algumas borboletas grandes e brilhantes que preguiçosamente esvoaçavam de um lado para outro. O panorama que se descortinava das colinas de detrás da praia Grande (Niterói) era deslumbrante, pela intensidade das cores que prevalecia um tom azul escuro: embaixo, as águas tranquilas da baía (Guanabara) disputavam com o céu a supremacia do esplendor. Depois de havermos atravessado algumas áreas de terra cultivada, embrenhamo-nos por uma floresta, cujos recantos eram de inexcedível grandiosidade. Ao meio-dia chegamos a Itacaia (atual Itaocaia), pequena aldeia situada numa planície. Em torno da casa principal (Darwin está falando da Fazenda Itaocaia localizada na base da Pedra), ali existente, viam-se as choupanas dos negros. A forma e a posição desses casebres fizeram lembrar-me das gravuras que vi de habitações hotentotes na África do Sul. Como a lua nascesse cedo, resolvemos partir na mesma tarde, a fim de pernoitarmos na lagoa Maricá. Estando a cair a noite, passamos sob uma das íngremes colinas de granito maciço, tão comuns neste país. É notório este lugar pelo fato de ter sido, durante muito tempo, o quilombo de alguns escravos fugidos que, cultivando pequeno terreno próximo à vertente, conseguiram suprir-se do necessário sustento. Mas foram, um dia, descobertos e reconduzidos dali por uma escolta de soldados. Uma velha escrava, no entanto, preferindo a morte à vida miserável que vivia, lançou-se do alto do morro, indo despedaçar-se contra as pedras da base. Se se tratasse de alguma matrona romana, esse gesto seria interpretado como nobilitante amor à liberdade, mas, numa pobre negra, não passava de simples caturrice de bruto. Continuamos cavalgando várias horas. No decurso dos primeiros quilômetros a estrada emaranhava-se por um deserto de lagunas e pântanos, dando ao cenário banhado de luar o aspecto mais desolador que se podia imaginar. Alguns pirilampos cruzavam o ar perto de nós, e a nosso ouvido chegava o gemido da narceja, que fugia à nossa passagem. As ondas que se quebravam nas praias longínquas mandavam-nos, através do silêncio da noite, o seu marulhar surdo e monótono. (...)”
Pedra de Itaocaia |
“Os brasileiros, até onde vai minha capacidade de julgamento, possuem somente uma pequena fatia daquelas qualidades que dão dignidade à humanidade. Ignorantes, covardes, indolentes ao extremo; hospitaleiros e amáveis à medida que isso não lhes dê trabalho; temperamentais e vingativos, mas não brigões. Satisfeitos consigo mesmos e com seus costumes, respondem a todas as observações com a pergunta: 'Por que não podemos fazer como nossos avós antes de nós fizeram?” ²Resumidamente, abaixo são descritas as principais escalas do Beagle na viagem de circunavegação, da qual Darwin participou na sua segunda expedição. A cada escala do ‘Beagle’, Darwin desembarcava, explorava o interior da região a pé ou cavalo, atravessava planícies desertas, escalava montanhas, atravessava rios, explorava florestas.
27/12/1831: partida de Devonport, Inglaterra
16/01/1832: arquipélago de Cabo Verde (ilha Porto Praia)
jan 1832: Ilhas Canárias
16/02/1832: adentrando o Atlântico, rochedos de São Paulo
Essa primeira parada no Brasil teve a duração de 4 meses e meio:
20/02/1832: ilha de Fernando de Noronha
arquipélago de Abrolhos
29/02/1832: Salvador, Bahia
18/03/1832: saída da Bahia
04/04/1832: chegada ao Rio de Janeiro
05/07/1832: saída do Rio de Janeiro
26/07/1832: chegada a Montevidéu e viagem a Maldonado e pelo Rio de La Plata
03/08/1832: da Foz do Rio Negro a Bahia Blanca
20/09/1832: Buenos Aires
27/09/1832: Santa Fé
verão de 1833: Patagônia e ilhas de Falkland
17/12/1832: Terra do Fogo
23/07/1832: Valparaíso, Chile
24/11/1832: ilhas de Chiloé, Chile
set 1835: arquipélago de Galápagos
nov 1835: Taiti
fins de dez 1835: Nova Zelândia
jan 1836: Austrália
fins de maio de 1836: Cabo da Boa Esperança, no extremo sul da África
jul 1836: ilha de Santa Helena
Ilha da Ascensão, navega de volta à costa da América do Sul antes de chegar em 2/10/1836 a Falmouth na Cornualha, Inglaterra
“a viagem do ‘Beagle’ tem sido, de longe, o evento mais importante na minha vida, e determinou toda a minha carreira (...)”.Essa afirmação foi precedida no mesmo capítulo por um comentário muito digno a respeito do capitão do ‘Beagle’, Robert Fitz-Roy:
“O temperamento de Fitz-Roy era o que podia haver de mais azarado. Era geralmente pior no início da manhã, e com seu olho de águia geralmente pronto para detectar algo errado sobre o navio, foi, então, magnânimo em sua culpa. Ele era muito gentil comigo, mas era um homem muito difícil de conviver em termos pessoais que necessariamente se seguiram a nossa trapalhada em nossa cabine. Tivemos várias discussões; por exemplo, no início da viagem na Bahia, no Brasil, ele defendeu e elogiou a escravatura, que eu abominava, e me disse que ele tinha acabado de visitar um grande senhor de escravos, que tinha convocado muitos de seus escravos e perguntou-lhes se eram felizes, e se queriam ser livres, e todos responderam “Não”. Então lhe perguntei, talvez com algum sarcasmo, se ele achava que a resposta de escravos na presença de seu dono tinha algum valor? Isso o deixou excessivamente zangado, e ele disse que, como eu duvidava de sua palavra, nós não poderíamos conviver por mais tempo. Eu pensei que eu estava sendo obrigado a deixar o navio; mas, assim que a notícia se espalhou, o que se fez rapidamente, como o capitão mandou chamar o primeiro-tenente para aplacar a sua ira por me tratar mal, eu fiquei profundamente gratificado por receber um convite de todos os oficiais para compartilhar de sua mesa no refeitório. Mas depois de algumas horas, Fitz-Roy mostrou sua magnanimidade habitual enviando um oficial até mim com um pedido de desculpas e de desagravo para continuar a conviver com ele. Seu caráter era em vários aspectos um dos mais nobres que eu tenho conhecido.”
“O gosto de FitzRoy pela ciência o estimulou a equipar o navio para a segunda viagem ³ com vários instrumentos sofisticados e muitos cronômetros para fazer medidas de longitude ao redor do globo. A viagem durou de dezembro de 1831 a outubro de 1836. Durante esse tempo, visitaram as ilhas de Cabo Verde, as Falkland — ou Malvinas —, muitos locais litorâneos na América do Sul, entre os quais o Rio de Janeiro, Buenos Aires, a Terra do Fogo, Valparaíso e a ilha de Chiloé, seguidos das ilhas Galápagos, Taiti, Nova Zelândia, Austrália e Tasmânia — esta muito brevemente —, e as ilhas Cocos, no oceano Índico, concluindo com o cabo da Boa Esperança, ilha de Santa Helena e ilha da Ascensão. Por conta própria, Darwin fez inúmeras expedições longas ao interior de países na América do Sul, entre elas uma excursão até os Andes. Sempre que possível, combinava com FitzRoy para ser deixado e apanhado depois em pontos diversos.”
“Naquela época, porém, FitzRoy era um entusiasmado geólogo ⁴ amador com idéias nada bíblicas e bastante avançadas. Deu a Darwin o primeiro volume da obra fundamental de Charles Lyell, The Principles of Geology (1830-33), e discutiu com ele algumas das teorias contidas no livro. Darwin recebeu os outros dois tomos durante a viagem. (...) Na volta para a Inglaterra, Darwin e FitzRoy escreveram juntos um pequeno artigo elogiando o trabalho dos missionários anglicanos no Taiti ⁵.”
No mesmo capítulo, [Idem, ibidem, 15-41] também mostra como
“os cinco anos de viagem no Beagle fizeram de Darwin a pessoa que foi. (...) Em Montevidéu, os homens do Beagle rumaram para a cidade armados até os dentes para sufocar uma insurreição política. Na Tasmânia, assistiram a um excelente concerto. No extremo sul, quase naufragaram por causa de uma geleira que se desprendeu. Na floresta perto de Concepción, Darwin sentiu a terra tremer sob seus pés num grande terremoto. Nadou em lagunas de coral, extasiou-se com o canto dos pássaros na floresta tropical e contemplou as estrelas do alto de um desfiladeiro na cordilheira dos Andes. No Brasil, seu coração apaixonado ardeu de indignação ante a escravidão, sistema ainda legal sob o domínio português, e registrou histórias horríveis em seu diário: fatos tão revoltantes, disse, que se os tivesse escutado na Inglaterra pensaria que haviam sido urdidos para efeito jornalístico.” A autora também questiona a razão por que “o crescimento intelectual de Darwin durante a viagem não seja devidamente reconhecido.”
Há outra passagem no seu diário que reflete o horror que teve perante uma senhora idosa no Brasil que usava tarrachas de polegar para punir seus escravos.
“Imagine uma contingência, sempre pairando sobre a gente, de sua esposa e seus filhos pequenos... serem arrancados da gente e vendidos ao maior lance! E essas ações são feitas... por homens que professam amar seus próximos como a si mesmos... e rezam para que a vontade de Deus seja feita na Terra! Isso faz o sangue da gente ferver.”
Nessa linha de pensamento, ainda no mesmo diário fez sua previsão a respeito de nossa nação: que os negros escravizados um dia tomariam o poder, tornando-se seus líderes políticos.
“Eu não posso deixar de pensar que eles serão, no fim das contas, os governantes. Presumo isso por serem numerosos, por seu excelente porte atlético (especialmente em contraste com os brasileiros), observando que estão em um clima agradável e por ver claramente que sua capacidade intelectual foi muito subestimada. Eles são a mão de obra eficiente em todo o comércio necessário. Se os negros libertos crescerem em número (como deve acontecer), o tempo de libertação total não estará muito distante.” ⁶
III. NOTAS EXPLICATIVAS
“Hoje, a fama dessa viagem torna por vezes difícil lembrar que sua finalidade não era conduzir Darwin em uma volta ao mundo, mas cumprir instruções do Almirantado britânico. O navio fora encarregado de completar e ampliar um levantamento hidrográfico anterior, realizado de 1825 a 1830, das águas sul-americanas. FitzRoy assumiu o comando do Beagle dois anos depois dessa primeira viagem se iniciar. A área era importante para o governo por questões comerciais, nacionais e navais, reforçadas pelo acentuado entusiasmo do Almirantado pelo progresso científico prático e sua preocupação com cartas navais exatas e o registro de portos seguros. De fato, o Gabinete do Hidrógrafo se notabilizou pelo envio de grande número de expedições de levantamento durante a calmaria que se seguiu às guerras napoleônicas para promover e explorar os interesses britânicos no estrangeiro.”
Darwin viajou a bordo do Beagle na condição de “cavalheiro passageiro”, por indicação de seu professor John Steven Henslow.
10 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de enviar-lhe meu artigo sobre as impressões do naturalista inglês CHARLES DARWIN sobre o Brasil escravagista e sua população. Ele formou sua convicção quando aqui passou, numa escala do navio Beagle, por nosso país em 1832, numa estadia de 4 meses e meio (de 20 de fevereiro a 05 de julho).
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/12/charles-darwin-o-abolicionista.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
Obrigado, mestre!
Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...
Bom dia, amigo. Seu belo trabalho tem como destaque, sempre, a divulgação de cultura. Mais uma vez, o Braga chega didaticamente. Mostrando-se necessário, faz a costumeira diferença. Parabéns!
Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008)) disse...
Obrigado pela homenagem!
Heitor
Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga
Excelente sua abordagem sobre esse tema cujo conhecimento tanto desgosta a visão que temos do passado de nós mesmos enquanto sociedade. A polêmica entre Fitzroy e Darwin não deixa de nos incomodar ainda hoje. Congratulações!
Muito agradecido.
Cupertino
António Valdemar (jornalista e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-cadeira nº 3) disse...
Caro Francisco,
É notável o seu artigo sobre as impressões de Darwin acerca do Brasil escragista e sua população. Parabéns!
Que referências fez Darwin a propósito de Portugal e das ilhas dos Açores?
E aquele abraço do
António Valdemar
Maurilio Camello (licenciado em História do Cristianismo pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1970), mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1975) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1983). Atualmente é professor da Faculdade Dehoniana) disse...
Parabéns pelo artigo: verdadeiro documento para o conhecimento de nossa história. Maurilio Camello.
Paulo Miranda (escritor, professor e diplomata, é presidente da AMULMIG e membro da ADL-Academia Divinopolitana de Letras) disse...
Prezado Confrade Francisco:
Boa noite!
Estou dando ampla divulgação a este seu excelente artigo sobre Charles Darwin, de relevantes interesses:antropológico. histórico, cultural e científico.
Parabéns !
Cordialmente,
Paulo Miranda
Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...
Muito interessante essas questões sobre a visita de Darwin ao Brasil, caro Francisco Braga.
Saudações literárias,
Raquel Naveira
Hugo Napoleão (escritor com destaque para seu livro Fatos da História do Piauí, advogado, ex-ministro das Comunicações do governo Itamar Franco, nascido em Portland (USA) e membro do IHGDF) disse...
Eminente: riquíssimo!
Meus cumprimentos.
Hugo Napoleão
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