Por SAUL JAY SINGER *
Tradução do inglês e comentários por Francisco José dos Santos Braga
Matéria publicada no JEWISH PRESS.com em sua edição de 16/01/2019.
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Crédito pelas fotos: Jewish Press |
FRANZ KAFKA (1883-1924) foi um dos romancistas mais influentes do século XX, com obras como A Metamorfose (1915) e O Processo (1925) consideradas entre as mais originais da literatura ocidental. Seus temas apresentam a experiência do isolamento total do homem e sua prisão em um labirinto que desafia a compreensão. Seus contos imaginativos, com sua mistura enigmática do ordinário e do bizarro, levaram a uma infinidade de interpretações, e seus personagens são frequentemente pessoas perplexas, traídas por uma sociedade sem sentido e absurda.
Assim, o termo "kafkiano" passou a significar a impotência terrivelmente fantástica do homem diante de forças poderosas e desconhecidas que o perseguem sem razão.
Criado em Praga, onde se formou em Direito, trabalhou para uma seguradora. Kafka começou a publicar contos em 1907, mas praticamente todas as suas principais obras foram publicadas após sua morte prematura por tuberculose, aos 41 anos. Após sua morte, ele deixou instruções para que seus escritos fossem destruídos, mas seu amigo, Max Brod, editou e publicou suas obras, incluindo O Processo, O Castelo e A Metamorfose.
De acordo com os próprios relatos de Kafka, seu pai patriarcal, trabalhador e dominador, era um forte integracionista e laicista; a família ia à sinagoga apenas em ocasiões especiais, e mesmo essas eram mais como visitas de rotina do que encontros sérios com a tradição judaica. Kafka via as poucas práticas religiosas de seu pai como hipócritas e sem sentido, e se sentia impedido de pertencer à comunidade judaica apática de Praga, que não era apenas irreligiosa, mas ativamente antirreligiosa.
O interesse de Kafka pelo judaísmo foi despertado quando ele acompanhou Brod a uma apresentação de uma companhia de teatro iídiche de Lvov, e sua identidade judaica se aprofundou após seu contato com os atores iídiches do Leste Europeu, que ele caracterizou como "pessoas que são judias em uma forma especialmente pura porque vivem apenas na religião, fazendo-o sem esforço, compreensão ou angústia".
Por meio deles, ele passou a admirar os judeus da Europa Oriental, que começaram a afluir a Praga no início da Primeira Guerra Mundial, como "ligados uns aos outros por sua judaicidade em um grau desconhecido para nós". Ele escreveu que "o judaísmo não é meramente uma questão de fé; é acima de tudo uma questão da prática de um modo de vida em uma comunidade condicionada pela fé".
Esses judeus estrangeiros saciaram sua sede de comunidade judaica em sua vida. Kafka os observou e entrevistou longamente e, embora nunca tivesse se envolvido em nenhuma leitura significativa da Escritura Judaica e textos relacionados, seus diários começaram a refletir exposições sobre a lei rabínica, discussões sobre atividades comunitárias judaicas, reflexões sobre o discurso talmúdico e, mais particularmente, contos populares hassídicos e contos de maravilhas envolvendo rabinos místicos (incluindo um relato notável de sua visita ao Belzer Rebbe).
Há também referências substanciais em sua correspondência, especialmente com Brod, ao seu sonho sionista de fazer aliyah ¹. Kafka era muito atraído pelo sionismo, mas de uma perspectiva cultural e humanista. Ele era amigo íntimo de muitos sionistas fervorosos, incluindo Brod, leu relatos sobre colônias agrícolas judaicas em Eretz Yisrael ² com grande interesse, participou de debates no 11º Congresso Sionista em Viena em 1913, comprou um anúncio em Die Weld para sua fábrica de amianto, e algumas de suas histórias podem ser lidas como reflexo de uma perspectiva sionista.
Ele se tornou relativamente proficiente em hebraico, na esperança de se comunicar com os judeus em Eretz Yisrael quando fizesse aliyah e, antes de morrer, falava constantemente de Jerusalém.
Por outro lado, com a típica ambiguidade kafkiana, criticou o movimento sionista organizado e declarou: "Admiro o sionismo e sinto náuseas por ele". Considerava-se um pária devido ao seu "judaísmo tosco", que ressaltava seu dilema existencial central – sua alienação da ortodoxia judaica, que o deixava autoidentificado com a comunidade judaica, mas de alguma forma fora do povo judeu.
De qualquer forma, não há dúvida de que seu judaísmo desempenhou um papel fundamental em sua vida e obra, e que grande parte de seus escritos é uma análise simbólica da condição do judeu no mundo moderno. Embora existam inúmeras referências a judeus e ao judaísmo em suas cartas e diários, suas histórias se destacam pela ausência de um único judeu (exceto — possivelmente — sua discussão em "O Julgamento dos pogroms russos" ³). Em última análise, um ponto que muitos de seus biógrafos ignoram: Kafka era mais um judeu que costumava escrever em alemão do que um escritor alemão que era judeu.
Assinaturas originais de Kafka são muito raras, em parte devido à demanda e em parte porque ele morreu tão jovem. Cito, por exemplo, um envelope de 9 de agosto de 1916, assinado e endereçado à mão por Kafka, que ele enviou de Praga para sua noiva, Felice Bauer, em Westland. Kafka conheceu Felice na casa dos pais de Max Brod, foi noivo dela duas vezes (em 1914 e 1917) e, embora tenha dedicado a ela sua primeira obra adulta, O Veredito (1913), o romance deles se desfez definitivamente em 1917 e as núpcias nunca se realizaram.
O relacionamento entre o casal evidenciou o conflito em curso em sua vida e foi um fator importante em seu desenvolvimento como escritor. Quando um livro com as cartas de amor de Kafka para Felice foi publicado em 1967 (cerca de quatro décadas após sua morte), ele já era considerado um dos escritores mais excêntricos da história, mas ninguém estava preparado para o compêndio de tormento e culpa que o jovem escritor havia enviado à sua amante.
Curiosamente, um ano antes de sua morte, Kafka se apaixonou pela filha de 19 anos de judeus hassídicos, com quem frequentou aulas de Talmude, e fez planos de se mudar para Tel Aviv; como Brod descreveu, Kafka ficou encantado com seu "rico tesouro de tradição religiosa judaica". No entanto, quando pediu permissão ao pai dela para se casar, o rabino da família vetou o casamento porque Kafka era um "judeu ocidental".
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Apesar de suas muitas realizações como romancista, poeta, compositor e músico, MAX BROD (1884-1968) é talvez mais conhecido como amigo, apoiador e patrono de Kafka. Brod foi o primeiro a reconhecer e divulgar a grandeza de Kafka, sobre quem escreveu seu romance Das Zauberreich der Liebe (O Reino mágico do Amor, 1928) e uma biografia (1937). Brod também organizou a publicação das obras de Kafka na década de 1930, uma década depois de ter proferido o elogio fúnebre no funeral do amigo. Em particular, Brod salvou O Processo e O Castelo — duas vezes: uma, das mãos do próprio Kafka e outra, dos nazistas.
Nascido em Praga, Brod estudou Direito na universidade alemã e ingressou no Prager Tagblatt como editor teatral e musical em 1924. Ajudou a fundar o Conselho Nacional dos Judeus na Tchecoslováquia em 1918 e, posteriormente, representou a facção judaica no parlamento tcheco. Brod foi um sionista ativo, até mesmo militante, que mais tarde descobriu Deus em geral e o Deus judeu em particular. Fixou residência em Tel Aviv em 1939, onde trabalhou como crítico musical e consultor de teatro para a Habimah.
A prolífica obra de Brod inclui poesia, ficção, peças teatrais, crítica literária e ensaios sobre filosofia, política e sionismo. Suas obras mais conhecidas incluem seus 20 romances — alguns românticos, outros históricos, incluindo Unambo (1949), um relato da guerra de independência de Israel — e muitas de suas obras foram traduzidas para o hebraico.
Suas composições musicais incluem o Requiem Hebraicum, um quinteto para piano, e muitas canções, peças para piano e danças israelenses. Um conceito fundamental em grande parte de seus escritos é o problema do dualismo, ou seja, a dificuldade de conciliar a crença em Deus com o mal que existe no mundo. Ele acreditava que o judaísmo é o caminho para alcançar a tarefa suprema do homem: a busca pela perfeição.
Na nota de 26 de julho de 1951 para a Sra. Harrari, mostrada acima, Brod escreve — em hebraico (o que era bastante incomum para ele): “Muito obrigado pelo seu convite. Para meu grande pesar, estou doente e, como tal, estou profundamente perturbado por não poder comparecer. Com grande respeito.”
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Abaixo, uma magnífica fotografia original da lápide de Kafka em Praga. A imagem foi encontrada entre os pertences de Brod após sua morte.
Durante sua vida, Kafka queimou aproximadamente 90% de sua própria obra e, após sua morte aos 41 anos, uma carta foi descoberta em sua escrivaninha em Praga, endereçada a Brod, solicitando que ele queimasse todos os seus diários, manuscritos e cartas restantes. Brod, no entanto, ignorou seu pedido e preparou e publicou edições póstumas de algumas das obras mais importantes de Kafka. Em 1939, carregando uma mala abarrotada de papéis de Kafka, Brod partiu para Eretz Israel no último trem a deixar Praga — cinco minutos antes de os nazistas fecharem a fronteira tcheca.
O conteúdo da mala de Brod tornou-se objeto de mais de 50 anos de disputas judiciais. Os documentos permaneceram em posse de Brod até sua morte em Israel em 1968, quando foram passados por meio de seu testamento de 1961 para sua secretária Esther Hoffe, a quem Brod também havia designado como executora de seu espólio. No entanto, ele também havia previsto que, após a morte de Hoffe, todos os documentos literários de Kafka seriam transferidos para um arquivo público em Israel. Hoffe, porém, já havia vendido e leiloado parte do material, e seu testamento deixou o espólio para suas duas filhas.
Quando Hoffe faleceu em 2008, suas filhas iniciaram o processo de inventário, mas surgiu uma disputa entre elas e o Estado de Israel, que argumentava que o testamento de Brod deveria ser cumprido e que os arquivos de Kafka eram um tesouro nacional e um recurso essencial para a compreensão da vida judaica pré-Holocausto. A reivindicação de Israel baseava-se, em parte, nos planos de Brod, que ele havia discutido publicamente, de depositar os documentos de Kafka na biblioteca da Universidade Hebraica de Jerusalém, onde Hugo Bergmann, amigo em comum dele e de Kafka, era então bibliotecário e reitor.
Após anos de acirradas disputas, o Tribunal de Família do Distrito de Tel Aviv decidiu que o testamento de Brod deveria ser mantido e que seu espólio, incluindo obras de Kafka, fosse doado à Biblioteca Nacional. Também concedeu às filhas de Hoffe um direito limitado de receber royalties.
* Este autor atua como consultor sênior de ética jurídica na Ordem dos Advogados do Distrito de Columbia e é um colecionador de raros documentos e cartas judaicas originais.
II. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Esta palavra hebraica literalmente significa “subida”, mas por gerações foi usada para significar “imigração para Israel”. Israel tem sido sempre o centro do universo judaico, mas por séculos o sonho de mudar-se para Israel foi apenas isso, um sonho.
² O conceito de “Terra de Israel” corresponde ao de Terra Prometida por Deus aos descendentes de Abraão.
³ Segundo [LÖWY, 47] apud [FERENCZI, Anemarie, 1975], a fonte de inspiração para a trama de O Processo, foram fatos históricos contemporâneos a Kafka. Entre esses fatos, os grandes processos antissemitas de sua época eram um exemplo flagrante da injustiça de Estado. Os mais célebres foram o processo Tisza (Hungria, 1882), o processo Dreyfus (França, 1894-99), o processo Hilsner (Tchecoslováquia, 1899-1900) e o processo Beilis (Rússia, 1912-13). Apesar das diferenças entre as formas de Estado — absolutismo, monarquia constitucional, república — o sistema judiciário condenou, por vezes à pena de morte, vítimas inocentes, cujo único crime era o de serem judeus.
[LÖWY, 48] transcreve um trecho do livro de Ferenczi: “Kafka não quis, pois, ser o profeta de catástrofes futuras, limitou-se a decifrar os aspectos da desgraça do seu tempo. Se as suas descrições aparentam ser, com frequência, efetivamente proféticas, é porque épocas ulteriores constituem sequências lógicas da de Kafka.“
Além disso, o filme "O Processo" (1962) dirigido por Orson Welles, baseado no romance homônimo de Kafka, teve em alguns personagens a participação de Anthony Perkins (como Josef K.), Jeanne Moreau, Romy Schneider e o próprio Orson Welles. A sinopse do filme pode ser assim descrita: numa certa manhã, Josef K. é acusado de um crime que, supostamente, sequer sabe que cometeu. Terá que lutar para se defender e, para isso, investigar por que está sendo investigado.
[LÖWY, 43] descreve o filme da seguinte forma: “Orson Welles apropriou-se do romance de Kafka para recriá-lo nos seus próprios termos. O romance de Kafka não exprime uma mensagem política ou doutrinária, mas, sobretudo, um certo estado de espírito antiautoritário. Reencontramos, sob uma outra forma, e com outros meios estéticos, esse mesmo estado de espírito no filme.”
III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA sugerida pelo tradutor
EMBAIXADA DA REPÚBLICA TCHECA EM WASHINGTON D.C.: 100 ANOS SEM FRANZ KAFKA (1924-2024), matéria transcrita no Blog do Braga em 24/07/2024
FERENCZI, Anemarie: Kafka. Subjectivité, Histoire et Structures, Paris: Klincksiek, 1975
LÖWY, Michael: Escritas de Luz: Der Prozess - The Trial, revista Terceira Margem da UFRJ (online) – ano XVII, nº 28 /jul.-dez. 2013, pp. 43-78
5 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Em 29 de junho de 1912, o escritor Max Brod chegou ao escritório de seu editor alemão em Leipzig com o firme propósito de apresentar a ele um novo talento, o jovem Franz Kafka.
Às vésperas de completar 29 anos e com várias histórias dormitando na gaveta, Kafka nunca havia publicado um livro. Brod, diferentemente, apesar de ser um ano mais novo, desfrutava desde 1908 do sucesso de seu primeiro romance, Schloß Nornepygge (Castelo Nornepygge), saudado como uma fulgurante estreia na literatura expressionista, então em voga.
Quem recebeu os dois autores tchecos foi Kurt Wolff, um dos sócios da editora Ernst Rowohlt e que, décadas mais tarde, observou que "na despedida, naquele dia de junho de 1912, Kafka disse algo que jamais ouvi de nenhum autor, nem antes, nem depois dele: ‘Agradeceria ao senhor ainda mais pela devolução do manuscrito do que pela publicação’”.
É sobre esses dois amigos a matéria de SAUL JAY SINGER publicada no Blog do Braga para sua apreciação, traduzida e comentada por mim.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2025/04/franz-kafka-e-max-brod.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
Obrigado, mestre Braga.
Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...
Bom saber esses começos, caro Francisco Braga.
E como Kafka influenciou toda a literatura moderna.
Saudações literárias,
Raquel Naveira
Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...
Bom dia, Braga.
Que maravilha! A verdade é que "a vida tem dessas coisas". Acreditem ou não, o inusitado, o inexplicável ato de ser-e-estar no mundo, o ato de tratar "as coisas sensíveis", está por toda parte. É preciso "olhos de ver". A Arte compreende (quero dizer reúne) tudo o que não podemos ver, mas podemos imaginar. Seu belíssimo trabalho nos remete à História, à importância e à grandeza de espírito de alguém que de fato existiu como ser humano em permanente ebulição criadora e em conflitos que fizeram dele, Kafka, um escritor especial. Salve Franz Kafka! Salve Max Brod! O viver, a par de ser uma coisa de fato inusitada, é capaz de transformar sensações e fatos e coisas e pensamentos em obra de Arte.
Desculpe o comentário esquisito feito por aqui. Na verdade, uma digressão, que não consegui postar diretamente no seu blog.
Finalmente, vale repetir: Em verdade, o Blog do Braga é, de fato e de direito, expressão de cultura. Cumpre festejá-lo.
Forte abraço poético de Geraldo Reis.
Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga
Dados bastante interessantes sobre Kafka nesta publicação de Saul Singer, ressaltando como o universo judaico restrito do escritor pode de fato ter sentido universal e atual.
Cumprimentos pela sua tradução e divulgação.
Grato, Cupertino
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