terça-feira, 22 de abril de 2025

JOSÉ MINDLIN E AS DUAS MISSAS PERNAMBUCANAS DE 1772


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Certo dia,  lendo um livro do saudoso bibliófilo José Mindlin sobre seu acervo bibliográfico particular, reconhecidamente o maior do Brasil, deparei-me com um assunto que mereceu do seu autor um destaque todo especial: a sua descoberta de duas missas pernambucanas de 1772. Não só pelas imagens ali estampadas, mas também por um único encarte gigantesco usado no seu livro para cativar a atenção do leitor, entre as páginas 150 e 151, percebi logo tratar-se de objeto para uma maior investigação, embora Mindlin tenha apresentado esse material com uma explicação insuficiente, em minha opinião, além de não ter mostrado interesse de dar qualquer destaque à partitura das missas, nem à interpretação do encarte.
Segundo sua descrição, convenci-me de que ele não tinha percebido que se tratava de um material esotérico principalmente por trás das imagens e do soneto do encarte fornecidos, que necessitavam de mais acurada observação.
Esse meu texto se destina a esclarecer apenas os elementos que encontrei no livro Uma Vida entre Livros,  sem ter tido acesso à biblioteca do saudoso Mindlin. 
Resta ainda dizer que, não satisfeito com a exposição do próprio Mindlin no referido livro, busquei outro livro dele  Memórias Esparsas de uma Biblioteca , onde também localizei menção às duas missas pernambucanas.
Para apreciação do leitor, transcrevo a exata descrição dele sobre a sua descoberta das duas missas pernambucanas no primeiro livro: 
 [MINDLIN, 1997, 150] assim se expressou sobre esses itens de seu acervo: 
“(...) Há vários outros manuscritos na biblioteca, mas mencionarei apenas os seguintes: duas missas pernambucanas, de 1772, uma muito refinada, e outra mais rústica, mas ambas com ilustrações, bela caligrafia, e notações musicais, as duas na encadernação original em veludo vermelho: um conjunto de Louvações a Luis Antonio de Souza Botelho Mourão, Morgado de Matteus (antepassado do editor de Os Lusíadas de 1817), quando assumiu o governo da Capitania de São Paulo, em meados do século XVIII. Trata-se de uma coleção de grande interesse gráfico, além de histórico, pois algumas das "louvações" são de bela caligrafia e ilustração, como se pode ver pelo "soneto diacróstico esférico" que vai reproduzido, e, além disso, mostra que a bajulação aos políticos em altos cargos vem de longe...”

Vejamos agora como [MINDLIN, 2004, 70-71] se refere a essas obras de seu acervo no segundo livro: 
(...) Houve outra ocasião em que fiquei sem duas obras importantes, mas aí a história foi diferente. Eu tinha ido ao Rio ver duas missas manuscritas, de Olinda, século XVIII, que me tinham sido oferecidas por um colecionador, que as havia descoberto anos antes. Achei lindos os manuscritos e ia comprá-los na hora, quando o livreiro Walter Cunha, que estava conosco no apartamento, me sugeriu dizer ao vendedor que ia pensar, pois como ele ia comprar muitas outras coisas, certamente poderia adquirir as missas para mim por preço bem menor. Fui na conversa e quando liguei dias mais tarde, por falta de notícias, o colecionador me informou que as missas tinham sido vendidas, mas sem dizer a quem. Não me lembro se falei ou não com o Walter. É bem provável que sim, mas não fiquei sabendo o que tinha acontecido e restou uma frustração. Acontece que uns dez anos mais tarde, estando na livraria do Walter Cunha, ele me perguntou se eu teria interesse em comprar... duas missas pernambucanas que um irmão dele, também livreiro, tinha oferecido à Biblioteca Nacional, mas que não tinha vendido por falta de verba da Biblioteca. Eram as próprias! A sorte me favoreceu mais uma vez, mas depois disso passei a não me esquecer da lição. Nunca cheguei a saber o que realmente aconteceu, mas comprei os manuscritos pelo mesmo preço, em dólares, que me tinha sido pedido originalmente. (...)”
 
Nas linhas abaixo vou, além de reproduzir as imagens, o soneto e a Esfera Sefirótica publicados por Mindlin, comentar sobre a riqueza de cada um deles, oferecendo a minha  hipótese para a versão do seu idealizador: o Mestre Sapateiro ¹ Manoel Pereira Chrispim (1727-1792), reinol, natural da freguesia do Santíssimo Sacramento, em Lisboa, o qual, emigrou para o Brasil Colônia, desembarcando no Rio de Janeiro, aí ficando durante um mês. Foi como tropeiro para Minas Gerais, de onde partiu em 1748 para São Paulo em caráter definitivo até sua morte em 22 de agosto de 1792. Consta que, entre 1765 e 1776, sustentou sua família com o ofício de sapateiro na maior parte do tempo. ²
 
Missa na festividade do Corpo de Deus que Ao Sr. Capitão-Mor Joseph Timoteo Pereira de Bastos, O.D.C. Caetano da Silva, Cônego na Catedral de Olinda 1772. Obs.: O.D.C. = Ordo Discalceatorum Carmelitarum ou Ordem dos Carmelitas Descalços
 
 
II. Elogio, Panegírico, Endecassílabo, Diacróstico, Esférico. Ao Illustríssimo e Excelentíssimo, Senhor Dom Luis Antonio de Souza, Botelho Mouram. Capitam General de S. Paulo. Exª.
 



Transcrição do Soneto: 
Esta Esfera Sefir. ³ que bem compostas, 
De Republica fatal tam elegante,
Hé Vossa Excelência o seu Atlante,
Uma tem a cargo, e esta as costas.
 
Agora vejo já nessas maons postas,
A Esfera de que a vejo mais lustrante,
Basta por vossos raios, luz brilhante,
E ilustrá-la por nam ficar de costas.
 
Pare a Esfera aqui, pare lustrosa,
Nam seja ao seu Atlante carregada,
Mostre a magnificemcia coriosa.
 
Poblique, que seu Atlante, a tem honrada;
A República, e a Esfera luctuosa,
A nossos hombros está munto ilustrada. 
 
Embaixo do soneto, encontra-se a representação da Esfera Sefirótica com suas emanações primárias e secundárias, assim constituída:
a) no centro, a figura de um sol sob uma letra E, da qual emana o acróstico já visto formado pelo nome de
b) Dom Luis Antonio de Souza Botelho Mourão.
c) Desde a letra E até o acróstico, parte um raio para cada letra do acróstico formando uma primeira irradiação (no mundo espiritual).
d) Em sequência, desde cada letra do acróstico, parte um segundo raio formando uma segunda irradiação (no mundo físico).

Ass.: Manoel Pereira Chrispim - Mestre Sapateiro de Sua Excelência

 

Emanação primária de um feixe de raios do mundo espiritual representando a esfera da transcendência, partindo do E central para formar o acróstico abaixo:

DominantE
OrizontE
MartE
 
LuzentE
VibrantE
IustificantE
SapientE

AstroluzentE
Numen, brilhantE
TutelantE
Omen, ConstantE
No castigo, severantE
Iá premiantE
OnrantE
 
DiligentE
EminentE
 
Sol flamantE
ObedientE
ValentE
ZelantE
ArrogantE
 
BibliotecantE
OuvintE
TementE
EspedientE
LustrantE
HonorificantE
OcultantE
 
MilitantE
OstentantE
VelantE
RespeitantE
AmantE
MercuriantE 

Emanação secundária (do mundo físico) de um feixe de raios representando a esfera da imanência, partindo do acróstico abaixo:

Dominai Senhor, em Régio Colo,
Onde o Orizonte faz o polo, Apolo.
Marte, que em valor a Marte topa,

Luzindo vossos Rayos dessa Europa.
Vibrando Resplendor tam apresado,
Iusto em obrar, proceder justificado.
Saber, Resolver, e Executar,

Astro girando, vendo, e mandar.
Numen, sacro desta Esfera bela,
Todos em vós tem sua tutela.
Omem, fiel ao Rey, sois tão constante,
No obrar, castigar culpas severante.
Iá premiando serviços diligente,
Onrando, enobrecendo muy patente.

Diligente em saber o que hé aumento,
Eminente em descobrir com muito tento.

Sol Diamantino da Coroa Portuguesa,
Obedece ao preceito Régio, com pureza.
Valor, e mais valor, em toda a empresa,
Zelador da honra, e da Nobreza.
Arrojo no que determina, e manda,
 
Bem que nas Sacras letras, hé em quem anda.
Oouvindo aos Nobress e aos pequenos,
Todos temem a Justiça, por quem a vemos.
Espedindo as ordens arrogante,
Lutando ao inconstante, com constante.
Hé quem honra ao Rey, dá glória a Deus,
Oculto tesouro, e patente para os céus.

Milita em seu peito tais ardores,
Ostenta das Régias cinzas, os verdores.
Vela contínuo em contínua devoçam,
Respeita ao Santo Coro da oraçam.
Amador da paz, terror na guerra,
Mercúrio, em artes, a sombra da terra.
 

III. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação do registro fotográfico utilizado neste trabalho. 
 
 
IV. NOTAS EXPLICATIVAS


¹ Cabe aqui lembrar que há na cidade de Nüremberg, na Alemanha, um símile para o mestre sapateiro de profissão que se tornou poeta: Hans Sachs (1494-1576), um  mestre sapateiro de profissão que se tornou mestre cantor, imortalizado por Richard Wagner na ópera Die Meistersinger von Nürenberg (“Os Mestres Cantores de Nüremberg”). Em homenagem a Hans Sachs, a cidade de Nüremberg mandou erigir sua estátua. Sobre essa estátua há um estranho fato carregado de simbolismo: em meio à ruína e aos escombros, o destino quis assegurar a sobrevivência milagrosa da estátua do mestre cantor, em janeiro de 1945, durante a II Guerra Mundial. Pois bem. Ela permaneceu intacta, mesmo após o devastador bombardeio anglo-americano ter sido despejado sobre a cidade em janeiro de 1945. Tudo ao redor do pedestal onde o artista permanecia sentado foi destruído. Ruínas e escombros estendiam-se até onde o horizonte alcançava. Só ele lá restou imóvel, sereno, reflexivo e bonachão em meio à catástrofe total, empunhando a sua lira, como que esperando que os alemães, como em tantas outras vezes na sua história, voltassem a por em pé tudo de novo.
 
² Para uma breve biografia deste personagem, queira consultar o item 262 constante do link: http://marcopolo.pro.br/genealogia/cof/cofn12.htm

³ Entendo que se trata de uma abreviação para “sefirot” (fem. plural combinando com “compostas”, também no plural).
Para a cabala hebraica, as dez sefirot  são canais através dos quais a Energia Divina flui, permeia e se torna parte de cada coisa que existe, criando assim uma corrente espiritual que liga e vivifica todas as coisas, impregnando-as da Essência Divina. 
Outro conceito possível para as sefirot é que “são emanações divinas que representam diferentes aspectos da natureza de Deus e da realidade cósmica. Cada sefirá (singular de sefirot) é considerada um ponto de ligação entre o mundo físico e o mundo espiritual, e juntas elas formam a Árvore da Vida.” 
Para os cabalistas, Deus é Ein Soph, cujo significado é o Infinito.
 
Em latim, primitivamente o J não se distinguia do I. Assim,  onde se lêem IustificantE e Iá, leiam-se JustificantE e Já.
 
Em latim, V era a notação primitiva do U. Assim, onde se lê SOVZA, leia-se SOUZA.
 
Em português do século XVIII, onde se lê Movram, leia-se Mourão. 


V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


MINDLIN, José: Uma Vida entre Livros: Reencontros com o tempo por José Mindlin, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Companhia das Letras, 1997, 231 p.
 
_____________: Memórias Esparsas de uma Biblioteca com José Mindlin, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, Coleção Memória do Livro vol. 2, 125 p.

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Benjamin Batista (fundador de diversas Academias de Letras na Bahia, presidente da Academia de Cultura da Bahia, showman e barítono de sucesso) disse...
Bravo!

Francisco José dos Santos Braga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco José dos Santos Braga disse...

Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
Obrigado, mestre.

Francisco José dos Santos Braga disse...

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga

Seu interesse revelou também a riqueza dessa coleção hoje abrigada na USP, além das muitas histórias que o próprio acervo poderá contar.
Parabéns pelo estudo competente desse material admirável.
Grato,
Cupertino