sábado, 23 de janeiro de 2010

2010 - ANO CHOPIN > > > Parte 3 > > > "CORAÇÃO DO GÊNIO", por Janusz Ekiert (2ª Parte)


Por Francisco José dos Santos Braga



Nesta Parte 3 da série de ensaios dedicados a 2010 - ANO CHOPIN, trago minha tradução para esta 2ª parte (em continuação) do ensaio intitulado "Coração do Gênio", de autoria do musicólogo polonês Janusz Ekiert, como parte das homenagens que o Blog do Braga presta ao 200º aniversário do nascimento do grande pianista e compositor polonês Fryderyk Chopin.

Réplicas

Chopin era um perspicaz observador, a seu redor, dos fenômenos da moda, sobretudo artística, e dos debates entre classicistas e românticos de Varsóvia.
Às vezes tentava esconder os estímulos artísticos pelos quais foi impelido, outras vezes não. Mas pôde e desejou muito, em plena consciência, deixar sua marca individual em seus impulsos criadores.

Sem dúvida, o Romantismo não inventou a divisão em corpo e alma, mas certamente a ampliou, ou talvez só a tenha destacado. Conventos, por um lado, e prostíbulos, por outro, foram o resultado, lamentava George Sand. Chopin cedeu a essa visão do mundo dualística, quando chamava - com boa dose de senso prático - de "irmãs de caridade" as mulheres de programa de Varsóvia, e Constanza Gladkowska - de seu ideal. (Inspirado por esse romance platônico, ele escreveu o larghetto do Concerto nº 2 em Fá Menor, o Romanze para o Concerto nº 1 em Mi Menor, seus primeiros Noturnos e a Valsa em Ré Bemol Maior op. 70 nº 3. Quando estava compondo inspiradas harmonias e melodias, e quando estava negociando preço com os editores de Paris ou Leipzig, tanto numa quanto noutra situação não tinha convicções firmes quanto a essas questões. Só não gostava quando tentavam reconhecer em suas obras-primas um reflexo de realidades concretas ou de conteúdos literários. Irritou-se com George Sand quando, em Majorca, George Sand descreveu como "harmonia imitativa" em relação ao repetido lá bemol e, depois, sol sustenido, no "Prelúdio da Gota d' Água¹ ", como que imitando as gotas de chuva caindo.
Tais opiniões incomodavam-no, pois, ao contrário da música de Schumann, Mendelssohn ou Liszt, sua música não emulava os fenômenos da natureza, não transplantava enredos literários, nem reflexões filosóficas, nem imagens à música. Não sucumbia à moda da época e nunca intitulava suas composições de uma forma que poderia sugerir uma situação, ocorrência, pessoa, paisagem específicas. Ainda assim, entregava-se à atmosfera de seu dia. Ele confessou a um amigo que o Romanze do Concerto Mi Menor constituía uma evocação de lugares e momentos que lhe eram caros; que na Marcha Fúnebre da Sonata em Si Bemol se pode ouvir o toque de sinos e o rufo de tambores. O lá bemol, repetido onze vezes no Prelúdio em Lá Bemol Maior², soa como o eco de onze batidas do relógio da torre, lembrando o momento da separação; o Trio do Prelúdio em Lá Bemol Maior sugere tropel de cavalos dos hussardos poloneses. No Estudo em Fá Menor (Opus 25 nº 2) criou, sabidamente, um retrato de Maria Wodzińska. Nos salões parisienses ficou famoso por seus retratos sonoros. Lembrando Chopin, Berlioz disse: "Isso acontecia frequentemente ao redor da meia-noite, quando Chopin se sentia mais à vontade. Quando haviam saído todos os peixes graúdos de salão, quando as questões políticas correntes já tinham sido examinadas, quando todos os plantadores de mexericos haviam terminado suas calúnias e estórias sobre aqueles ausentes, quando já haviam sido discutidas todas as perfídias e atos vis dos amigos e conhecidos, enfim, quando todos estavam cheios da monotonia, então ele, obediente à solicitação muda de um par de belos e inteligentes olhos, vinha ao piano". Improvisava retratos de convidados escolhidos, instando a platéia a advinhar a quem se referia.

Impulsos

Tanto tocar música de dança nos salões varsovianos, quanto improvisar retratos musicais faziam parte de um elegante lazer social. Mas quando Chopin compunha, a música era só sua própria reação intensa face aos incidentes e acontecimentos que o cercavam. As séries de concertos de Paganini em Varsóvia em 1829 deixaram-lhe uma forte impressão. Mas os dois ciclos (de 12 Estudos cada) que Chopin compôs não constituíram um retrato do fenomenal violinista, nem ainda uma imitação pianística de seus Capricci, nem enfim um tributo a seu virtuosismo. Os Estudos de Chopin foram compostos como uma resposta ao fenômeno Paganini. E que réplica espantosamente individual! Chopin transformou a acrobacia dos dedos do pianista em uma poesia de cores de sons e de sentimentos. Foram uma revelação que até hoje mantém a platéia encantada: as harmonias originais combinadas com a nova substância sonora no piano, tanto com novas estruturas de acompanhamento, distantes do estereótipo, quanto com as dos arpejos incluindo notas não pertencentes ao acorde. Nessa situação, o acompanhamento adquire, frequentemente, um papel melódico. A revelação baseia-se no fato de que com Chopin os ornamentos e arpejos deixaram de ser um mero melisma e fina virtuosidade. Tornaram-se um meio de expressão e de uma cor do som pianística até então desconhecida. A ousada combinação de acordes, as escalas cromáticas de terças no Estudo em Sol Sustenido Menor³, a combinação de sons muito agudos com muito graves, arpejos varrendo todo o teclado no contexto de sons muito graves no baixo, presentes no Estudo nº 1 em Dó Maior⁴, tudo isso marca uma nova era na cor do piano. Posteriormente, críticos escreveram que os Estudos de Chopin foram para o desenvolvimento da cor do piano o que Berlioz e Wagner juntos representaram para o desenvolvimento da cor da orquestra.
Alguns eruditos sugerem que vários motivos em "Tristão e Isolda"de Wagner foram modelados pela melodia do baixo no Estudo em Mi Bemol Menor Opus 10 nº 6. Outros observam que, sem os Estudos de Chopin, teria sido impossível o aparecimento de várias obras de Débussy e Ravel.

Chopin escreveu a primeira série de seus Estudos em Varsóvia, Viena e Stuttgart, entre os 19 e 22 anos de idade; já o segundo - em Paris, entre os 20 e 26 anos de idade. É surpreendente que os Estudos, incluídos entre suas maiores obras-primas e que deram início a uma nova época do estilo pianístico, Chopin os tenha criado em tão tenra idade. Pela primeira vez, o estudo, ao mesmo tempo que persegue seu objetivo pedagógico, tornou-se fascinante obra de arte. Por causa de seu caráter excepcionalmente dramático, tentou-se dar o título de "revolucionário" a três deles. Ao lado do mais famoso, em Dó Menor do opus 10⁵, também os dois últimos do opus 25⁶, em Lá Menor e Dó Menor, foram chamados de "revolucionários"; para outros foram sendo inventados outro conteúdo ou imagens.

A caminho de Viena para Paris, Chopin deteve-se em Munique e Stuttgart, onde, em setembro de 1831, tomou conhecimento, através de jornais, que Varsóvia, após sangrenta luta, se rendera aos russos, e que a Insurreição de Novembro na Polônia havia malogrado. É possível ouvir seu desespero soar no Estudo Revolucionário em Dó Menor do opus 10 nº 12, composto então em Stuttgart. Observe-se que esse Estudo expressa apenas o estado de seu espírito, e não qualquer incidente, muito menos uma estória.

Pode ser que, sob a influência de sua inquietação acerca da sorte de seus amigos e parentes próximos durante a Insurreição, tenha composto o Estudo em Dó Menor opus 25 nº 12. Escreveu numa carta após retornar à casa depois de uma recepção: "No salão, finjo que estou calmo, mas ao retornar à casa, martelo as teclas do meu piano". Parece que Chopin confidenciou uma vez que, depois de compor o Estudo em Lá Menor, que incluiu no opus 25 como nº 11, durante uma noite de insônia, teve a idéia de escrever suplementarmente uma introdução em quatro compassos, precedendo um apaixonado fortissimo. Contudo, mesmo esse episódio sugere que Chopin planejou uma ação puramente musical ou, talvez, um drama psicológico mas sem quaisquer associações pictóricas.

¹ Prelúdio nº 15 em Ré Bemol Maior (Opus 28) [N.T.]
² Prelúdio nº 17
[N.T.]
³ Estudo op. 25 nº 6 [N.T.]
⁴ Estudo op. 10 nº 1 [N.T.]
⁵ Estudo op. 10 nº 12 [N.T.]
⁶ Estudo op. 25 nº 11 e nº 12 [N.T.]
(Continua na Parte 4 desta série)



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

Um comentário:

Sérgio de Vasconcellos-Corrêa (compositor e Membro da Academia Brasileira de Música) disse...

Prezado Braga,


Belo trabalho. Todos os pianistas deste pobre país deveriam ler e matutar sobre o conteúdo deste ensaio, tão bem traduzido pelo amigo que não ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente.
Sérgio de Vasconcellos-Corrêa