Por Francisco José dos Santos Braga
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Constantina Araújo (São Paulo, 1922-São Paulo, 1966)
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"Em homenagem ao historiador José Carlos Neves Lopes que faleceu em 1º de abril de 2021, vítima de Covid-19, aos 73 anos de idade, amante de óperas e profundo admirador do soprano lírico-spinto brasileiro, Constantina Araújo, de quem tomou conhecimento em 1990 e em cujo louvor criou um blog. Com muita paciência e disciplina, burilou seu diamante por 25 anos, do que resultou o melhor livro em português sobre a célebre cantora brasileira, intitulado 'Constantina Araújo: uma soprano brasileira (Álbum de recortes)' de 2015. O historiador atribuía à doação dos acervos de Cysalpino Maia Carvalho e da irmã caçula da cantora, Renata Araújo, a abrangência de seu livro (nomeadamente com base em fontes italianas e brasileiras), em formato digital, publicado sob os auspícios da UENP-Universidade Estadual do Norte do Paraná em coautoria com o professor da UENP, Newton C. Braga, a quem couberam a revisão, editoração, capa e diagramação."
Em outra seção deste Blog do Braga ¹, já tinha comentado o trabalho cultural inesquecível desenvolvido por Raphael e Ana Cilento durante o período em que permaneceu fechado o TMSP-Teatro Municipal de São Paulo para fins de reforma por pelo menos 4 anos (1984-1988). Um pouco antes, fundou e dirigiu seu Vídeo Verdi Ópera Club (outros nomes são conhecidos para o mesmo grupo) em São Paulo, com o objetivo de não deixar morrer a chama que se mantinha acesa durante a passagem de algum(a) grande regente ou cantor(a) por nossa terra e durante as tradicionais temporadas líricas, — então grande atração turística paulistana, — daquela casa de espetáculos. "Raphael Cilento foi grande conhecedor e colecionador de vídeos de óperas. Em VHS o homem era imbatível: tinha mais de duas mil óperas. Muitas delas no sistema PAL europeu, inacessível para a maioria dos brasileiros da época. Muitas das raridades de meu acervo devo a ele. Muito do que aprendi foi com ele. Seu Vídeo Verdi Ópera Club dos anos 80 foi um sucesso de público", narra Ali Hassan Ayache, em suas Crônicas Operísticas, no Blog Ópera & Ballet.
Depois de oferecer sua visão a respeito daquele grande melômano e empolgado divulgador de seu acervo operístico, Ayache passou a narrar uma aventura prosaica que ouvira de Cilento, sobre a aquisição de ingressos para Samsão e Dalila de Saint-Saëns com o tenor Jon Vickers, mezzo soprano Shirley Verret e barítono John Tomlinson, sob a regência de Sir Colin Davis (1917-2013), em apresentação pelo Royal Opera House, no Covent Garden em Londres, em 1981.
"(...) Estava Raphael Cilento e sua amada esposa na terra da rainha na época da apresentação de Samson et Dalila. (...) Cilento corre para a bilheteria do famoso teatro londrino, Royal Opera House, Covent Garden, suporta na fila o frio e a chuva da capital inglesa por eternas 3 horas. Com apenas três pessoas à sua frente vê decepcionado a placa de ingressos esgotados.
Cilento não se dá por vencido, roda a baiana londrina. Faz um escarcéu, ameaça chamar a Scotland Yard, diz que vai até à rainha se for preciso. Argumenta na bilheteria que veio do Brasil só pra assistir a ópera. A frieza do bilheteiro é gélida e bem britânica, ingressos esgotados e porta fechada na cara.
Um senhor inglês ouve todo o quiproquó e se sensibiliza com o brasileiro maluco. Lhe oferece seus dois únicos ingressos, o problema é o lugar, a galeria. Ruim com eles, pior sem eles. Cilento compra os ingressos do prestativo cidadão, assiste com sua esposa à récita da galeria..."
Além de mostrar quão determinado era Raphael Cilento, este meu texto faz questão de lembrar ainda quão grande era sua disposição de resgatar e valorizar artistas brasileiros(as) esquecidos(as), que tinham alcançado fama fora de nossas fronteiras.
Sobre a soprano CONSTANTINA ARAÚJO, Cilento relembrava, segundo [PERPÉTUO, 1998]:
"Era uma mulher belíssima, morena e alta", recorda Raphael Cilento, diretor do Vídeo Verdi Ópera Club, que obteve, em Nova York, o registro de "Ernani", que foi veiculado pela Cultura FM em 22/03/1998.
"A voz era muito boa", afirma Cilento, que a viu cantar a ópera "Cavalleria Rusticana", de Mascagni, com Beniamino Gigli, no Pacaembu. "Tinha um ligeiro vibrato, que não incomodava."
Reavivar a memória de CONSTANTINA ARAÚJO (1922-1966), que tinha um timbre especial de soprano lírico-spinto ², talvez tenha sido o exemplo maior do mencionado resgate de Raphael Cilento.
Constantina Araújo, entretanto, está longe de ser um caso isolado. Agnes Ayres e João Gibin poderiam encabeçar a longa lista de grandes artistas líricos brasileiros que caíram no esquecimento. Não pode ser omitido aqui o nome da capixaba Eliane Coelho, soprano da Ópera Estadual de Viena, que já cantou com Carreras, Domingo e Pavarotti, e continua em plena atividade na Áustria. Mas seu nome ainda é ignorado por aqui.
II. "Vita breve, arte lunga" de CONSTANTINA ARAÚJO ³
Estudou canto lírico no Conservatório Dramático e Musical, com o professor Francesco Murino, mestre italiano de muitos outros talentos paulistas.
Ela iniciou sua carreira musical inicialmente na Rádio Cultura por um breve período, mas principalmente na antiga Rádio Gazeta, emissora que dispunha de auditório onde eram levadas cortinas líricas e óperas completas em forma de concerto e onde participava do programa "Cortina Lírica", dirigido pelo maestro Armando Belardi.
Estreou no Teatro Municipal de São Paulo em 1947, fazendo o papel de Leonora na ópera Il Trovatore de Giuseppe Verdi. Em Porto Alegre cantou as óperas Otello, Il Trovatore e Aída.
Nas temporadas líricas de 1948 e 1949 do Teatro Municipal de São Paulo, atuou ao lado de Beniamino Gigli, Anna Raone e Paulo Ansaldi na ópera Cavalleria Rusticana de Mascagni, no papel de Santuzza, sob a regência de Edoardo de Guarnieri (19/08/1948) e de Armando Belardi (29/10/1949).
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Constantina Araújo como Santuzza na Cavalleria
Rusticana / Temporadas líricas oficiais de 1948 e 1949 do Teatro Municipal de São Paulo - Crédito: José Carlos Neves Lopes (1948-2021) |
Em conhecida crítica de Armando de Alcântara Pacheco à "Cavalleria Rusticana" pode-se ler num recorte do livro de [LOPES, 2015, 64], no que se refere a Constantina Araújo:
"No difícil papel de "Santuzza", saiu-se maravilhosamente bem a nossa conhecida Constantina Araújo. Dona de um impecável timbre de voz, Constantina Araújo, que se acha em plena juventude, está fadada a ser um soprano dramático de renome internacional. Ao lado de Assis Pacheco, ofereceu-nos uma grande interpretação e um formidável jogo de cena no célebre dueto. São poucos os artistas que conseguem viver os violentos momentos de uma paixão traída, tão bem retratada neste dueto formoso que Mascagni deu ao mundo. Constantina Araújo, cantando "Voi lo sapete, o mamma", nada mais fez do que repetir a sua grande interpretação, quando da representação da Cavalleria Rusticana no Pacaembu." (Permito-me acrescentar: no Pacaembu, ocasião em que Constantina Araújo contracenou com Beniamino Gigli.)
Ao final de sua crítica diz ainda:
"Antes de terminarmos as nossas impressões sobre o que foi a representação de "Cavalleria Rusticana", tomamos a liberdade de sugerir à direção da Rádio Gazeta, esforços no sentido de tornar conhecida em palcos da Europa, o soprano dramático Constantina Araújo. (...)"
Infelizmente, o recorte da crítica dessa apresentação escrito por Armando de Alcântara Pacheco, não traz o nome do órgão jornalístico que a publicou. Ele prognosticou o futuro próximo de Constantina, e talvez as suas palavras a respeito do desempenho da soprano a tenham influenciado na decisão de ir tentar a sorte na Itália.
Mas Constantina Araújo começou a ter problemas em 1950 dentro da Rádio Gazeta. Consta que teve uma briga com a soprano Agnes Ayres, razão pela qual foi despedida da Rádio. Ao mesmo tempo, foi rejeitada para as temporadas líricas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Em outubro do mesmo ano, resolveu tentar a sorte na Itália.
Quarenta dias após ter chegado (15/11/1950), numa substituição à última hora, no papel- título da ópera Aída encenada em Modena, mostrou para o que viera à Europa: deslanchar sua carreira, notadamente na Itália.
[LOPES, ibidem, 75-6] documenta a estreia de Constantina Araújo em Modena, Reggio-Emilia e Veneza:
"O acaso foi favorável a Constantina logo após sua chegada à Itália, em novembro de 1950. O acaso e a experiência de seu empresário, Carlo Tedeschi, o qual, aproveitando-se das oportunidades surgidas, conseguiu que Constantina se apresentasse nas montagens de Aída que os teatros dessas localidades haviam programado para o ano do cinquentenário da morte de Giuseppe Verdi.
No Teatro Comunale, de Modena, Constantina atuou ao lado de Mario Filippeschi, tenor, Anselmo Colzani, barítono, Giorgio Algorta, baixo, e Dora Minarchi, mezzo-soprano, sob a regência de Francesco Molinari Pradelli.
Com o mesmo elenco atuou na Aída montada na vizinha Reggio-Emilia, no Teatro Municipal.
E, por fim, no La Fenice, de Veneza, onde atuou pela primeira vez com a já famosa mezzo búlgara Elena Nicolai, o tenor Mirto Picchi, o barítono Ugo Savarese e o baixo Duilio Baronti, sob a regência de outro grande maestro italiano, Oliviero De Fabritiis."
Apontava o crítico de Gazzetino, de Veneza, in [LOPES, ibidem, 78]:
"La parte di “Aida” è stata sostenuta iersera con vivo successo dalla giovane artista brasiliana Constantina Araujo, la quale ha superato la prova con una fresca stesa, sicura voce, drammaticitá di accenti, e nonotevole morbidezza d’inflessioni. Vivi applausi le sono stati rivolti, specialmente al terzo atto, dal pubblico che esauriva il teatro e che la festeggiato insieme a lei anche gli altri interpreti e il maestro Oliviero De Fabritiis."
Dois meses depois, estreou na mesma ópera, no Teatro alla Scala de Milão, contracenando ao lado de Mario Del Monaco, Fedora Barbieri e Ugo Savarese, sob a regência do renomado Victor de Sabata, em montagem comemorativa aos 50 anos da morte de Verdi.
[PERPÉTUO, ibidem] dá informações complementares sobre a soprano brasileira quando conquistou o papel de Aída no palco do Scala de Milão:
"De Sabata estava com problemas com a famosa Renata Tebaldi, que não queria cantar "Aída'", afirma Renata Araújo, irmã da soprano brasileira. "Ela foi até o Scala para ser ouvida pelo maestro e acabou sendo a escolhida."
Na WORDPRESS.COM, [LOPES] documenta a sua aclamada entrada no alla Scala de Milão da seguinte forma:
"O alla Scala de Milão procurava um soprano para uma nova montagem de Aída em comemoração aos cinqüenta anos da morte de Giuseppe Verdi, já que tinha havido um desencontro entre Renata Tebaldi e o maestro Victor de Sabata. Constantina, credenciada por seus sucessos anteriores, apresentou-se ao grande maestro Victor de Sabata para uma audição. Dentre seis sopranos que foram ouvidos, foi a escolhida.
Em 20 de fevereiro de 1951, Constantina apresentava-se no palco da mais famosa casa de ópera da Europa, tendo ao seu lado Mario Del Monaco, Fedora Barbieri e Ugo Savarese.
O superintendente do Scala assim se manifestou a respeito da feliz escolha de Constantina Araújo para o papel de Aída:
“(...) abbiamo avuto la surpresa di scropire una giovane sudamericana, Constantina Araujo, che nella parte di Aida si è rivelata superba interprete, dotada de belissima voce, dosata com intelligenze, sicura nella intonazione, e che si è fatta ammirare anche per la sua grazia.”
Incluída a data de estreia, Constantina apresentou-se como Aída em seis récitas no Scala: 20, 22 e 25 de fevereiro, 1º, 4 e 6 de março de 1951, conforme [LOPES, ibidem, 80].
Conta [LOPES, ibidem, ibidem] que o crítico musical Gian Galezzo Severi escreveu na edição de 04/03/1951 da revista Omnibus um artigo intitulado "Un'Aida de Prima Grandezza", com um trecho referindo-se à artista brasileira:
"Le emissioni della Araujo sono di una perfezione esemplare e, poichè s'è parlato di respiri e di fraseggio, respiri e fraseggio hanno in lei naturalezza, una disinvoltura, una musicalità assolutamente insoliti, di questi tempi.
L'estensione di cotesta voce è notevole, raggiungendo con una facilità mirabile le note sopracute; i passaggi di registro sono impeccabili; i coloriti sempre apropriati e quasi direbbe matematici; finalmente la qualità di questa voce à preziosa per la retondità e la pastosità del timbro, per la pienezza dell'accento, per il sosaggio del volume.
[...] è ottima attrice..."
O “Alla Scala” abriu-lhe outras portas: Bari, Verona, Londres, Trieste, Montecarlo, Paris, Augsburg, Lisboa, Genova, Nápoles, Bolzano, Bolonha, Carpi, Salsomaggiore e outras cidades.
Seu repertório incluía Aída, Un Ballo in Maschera, I Vespri Siciliani, Ernani, La Vita Breve, Mefistofele, Madame Butterfly, L'Amore dei tre Re, Oberon e Cavalleria Rusticana."
[PERPÉTUO, ibidem] continua:
“A crítica da época, que chegou a chamá-la de "argentina" e "peruana", louvou a "soberba intérprete, dotada de uma voz belíssima, dosada com inteligência, segura na entonação". Sua "Aída" foi ouvida ainda na Ópera de Paris, no São Carlos de Lisboa, em Augsburg (Alemanha) e em Mônaco, além de teatros italianos como a Arena de Verona e o Carlo Felice, de Gênova. Continuou cantando papéis principais no Scala, destacando-se "Un Ballo in Maschera", de Verdi, ao lado de um dos maiores tenores do século, o sueco Jussi Bjorling. Após o "Ballo" do Scala, fez, com a mesma ópera, em 1952, sua tumultuadaestreia no Covent Garden, em Londres. A soprano que cantaria no teatro britânico adoeceu. A casa procurou mais nove cantoras até conseguir fechar com a brasileira, no dia da estreia. Não houve tempo para ensaios: Araújo desembarcou em Londres uma hora antes do espetáculo, enjoada depois de 11 horas de vôo. Mas sua atuação encantou o público, cujos aplausos a fizeram voltar dez vezes para agradecer.”
Para
imaginar quão hercúleos foram os seus esforços e quão retos os seus
propósitos para ela atingir o píncaro da glória de bem representar o
Brasil em palcos internacionais, vou adiantar aqui a listagem de todas
as apresentações de Constantina Araújo na Europa, conforme listagem
preparada por [LOPES, ibidem, 184-6], a fim de
formarmos uma ideia do empenho e realizações da soprano brasileira
durante os 8 anos ininterruptos nos palcos dos teatros europeus.
A despeito de sua inclinação para a música desde tenra idade,
reconhecida por todos os seus biógrafos, certamente sua mãe napolitana
foi um fator preponderante e hereditário que possibilitou o surgimento e
a persistência do seu amor individual à música. Respeitando seu pendor
para a música, seus pais a matricularam no Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo, onde estudou com Francesco Murino. Também
contribuíram muito para a obtenção de seu brilho vocal a sua passagem pela
Rádio Cultura e, a partir de 1943 até 1950, ter integrado o 'cast' da
Rádio Gazeta.
Nesta altura, vem muito a propósito o que escreveu o crítico musical do Correio da Manhã (RJ), Eurico Nogueira França, em "Catálise", em 24/03/1955, edição nº 19015, p. 15, ou seja, quando imagina que "nossos historiadores musicais do futuro olhariam com curiosidade e pasmo esta terra... porque não se podia negar a persistência do amor individual à música, que floresce no Brasil." No grupo de compositores, regentes e intérpretes que evidenciaram esse amor à música, ele citou duas cantoras, a saber: Bidu Sayão e Constantina Araújo, que ele chamou de "vozes privilegiadas, que adquiriram o prestígio estrangeiro dos rouxinóis." Como parágrafo final de sua crítica, recomenda que "as instituições musicais já existentes não se furtem a participar de uma inadiável experiência de laboratório, mas com o fim de produzir só produtos legítimos, não falsificados." Critica a Escola Nacional de Música em razão de permitir que "o governo desampare a causa das atividades musicais brasileiras, admitindo corte das subvenções, e retire um processo de regeneração urgente, deixando-a nas mãos de Joanídias ⁴ e Anes, e com uma dotação orçamentária ínfima." Finalmente, "enquanto não são criados outros empreendimentos em prol da música e, igualmente para servi-los, espera-se que o Teatro Municipal apóie compositores e intérpretes nacionais, lance um conjunto de câmara e ponha a funcionar a sua orquestra, o seu coro, o seu corpo de baile, com vistas a uma tanto quanto possível atualização e difusão da nossa cultura da música."
III. CONSTATINA ARAÚJO NO YOUTUBE
a) Aída, de Giuseppe Verdi, no Teatro Municipal, do Rio de Janeiro, em 1954; a ópera foi transmitida pelo rádio.
b)
Ernani, de Giuseppe Verdi, gravado nos estúdios da RAI, Coro e Orchestra
Sinfonica di Roma della RAI - Regente: Fernando Previtali, 1958
c) Obéron, de Weber em Paris - Live! (1955)
Constantina Araújo como “Reiza” - "Obéron", de Weber em Paris -Live! (1955)
IV. CONSTANTINA NO TEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO
[LOPES, 2015, 164-5] trata do contrato firmado entre a Comissão Artística e Cultural, da Prefeitura do Distrito Federal, e Constantina Araújo, e não encontra explicações por que a cantora, ao invés das seis récitas previstas para o período de 27 de setembro a 15 de outubro de 1954, só conseguiu cantar uma delas, quando se apresentou em Aída no dia 08/10/1954 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro:
"As negociações entre Constantina e o Teatro Municipal do Rio de Janeiro se iniciaram em 1953. O Teatro, cuja comissão recusara-se a ouvi-la em audição em 1950, agora ansiava por fechar um contrato com a soprano brasileira que tanto sucesso fazia na Europa.
Em 25 fevereiro de 1953, foi assinado um contrato entre a Comissão Artística e Cultural, da Prefeitura do Distrito Federal, e Constantina Araújo, pelo qual a soprano se obrigava 'a prestar o seu concurso, na Temporada Lírica Internacional a ser realizada no Teatro Municipal - Rio de Janeiro, em 1953, interpretando Aída, Un Ballo in Maschera, Lo Schiavo, Madame Butterfly, Il Trovatore e outras de seu repertorio habitual, num total de seis récitas'.
Pelas apresentações a Comissão lhe pagaria 'a quantia de cento e setenta mil cruzeiros', arcaria com uma passagem aérea Milão-Rio-Milão e se reservava “o direito de transmissão por rádio, ou televisão, das récitas que julgar convenientes, sem qualquer outra remuneração”. As récitas seriam realizadas num período de 30 dias, fixados entre 14 de agosto e 30 de setembro. A Comissão comunicaria à soprano o período de apresentação até 15 de abril de 1953.
Esse contrato não prosperou e não temos nenhum documento que aponte a causa.
O contrato que prosperou, levando-a a apresentar-se em”Aída” no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, é de junho de 1954. Por ele a soprano se obrigava a apresentar-se em seis récitas, recebendo por elas a quantia trezentos mil cruzeiros. Ela deveria cantar Aída, Trovatore, e qualquer outra de seu repertório, à exclusão de Madame Butterfly. Caso se dispusesse a cantar Lo Schiavo, de Carlos Gomes, lhe seriam pagos mais cinquenta mil cruzeiros. As récitas ocorreriam entre 27 de setembro e 15 de outubro de 1954.
No contrato de 1954 com a Réunion des Théatres Lyriques Nationaux, da França, foi assegurado a Constantina que suas récitas de Obéron, somente teriam início a partir de 16 de outubro. No entanto, Constantina apenas se apresentou em “Aída” Por que motivos?
No jornal, uma manifestação da cantora a respeito:
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Teatro dell'Opera - Paris - Constantina Araújo in "OBERON"
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Constantina Araújo, que vemos acima, na sua grande criação na Ópera de Paris, onde, durante a temporada deste ano, desempenhou 40 vezes o papel de Reiza, do "Oberon", de Weber, voltará à Europa no próximo sábado.
Em declarações feitas a este jornal, a grande cantora lamentou só lhe ter sido possível interpretar uma única ópera na temporada do Municipal. Só pôde cantar a "Aída", de Verdi. Isso ela atribuiu à desorganização do teatro, pois esteve para vir várias vezes, sendo, depois, obrigada a cancelar a licença obtida com tanto trabalho junto à direção da Ópera de Paris.
Espera voltar no ano que vem, sem os imprevistos e os adiamentos que prejudicaram sua atuação. Mesmo assim, seu sucesso na "Aída" foi absoluto."
A única apresentação brasileira de Constantina Araújo, após o início de sua carreira internacional, foi no papel-título "Aída", no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em outubro de 1954. "Foi o maior cachê que ela já recebeu", recorda a irmã Renata.
Reportagem assinada por Sula Jaffé, intitulada "Constantina Araújo na "Aída"" na coluna "Música" do jornal Última Hora do Rio de Janeiro (falta-nos a edição para informar) traz revelações sobre a vida pregressa da cantora que, segundo sua autora, não tivera oportunidade de mostrar sua arte ao público carioca até então e aponta as razões (Cf. LOPES, 2015, 174):
"Em 1950, em plena São Sebastião do Rio de Janeiro, era julgada incapaz de cantar no nosso Teatro Municipal uma ambiciosa cantora paulista, pouco tempo antes despedida do 'cast' da Rádio Gazeta de São Paulo, de que por vários anos fizera parte. Motivo? Não tinha voz... Seu nome? Não foi preciso esperar mais que um ano para que fosse dito e repetido nas grandes capitais europeias: Milão, Roma, Londres e, mais tarde, Paris. Chamava-se Constantina Araújo aquele soprano "destituído de voz" em 1950 no Rio de Janeiro e apenas alguns meses mais tarde dotado de uma voz que fazia vibrar os grandes centros líricos do mundo. É triste e depõe contra nós o fato de possuirmos uma Constantina Araújo e, talvez por ignorância dos responsáveis, forçá-la a ir buscar na Europa o que de direito merecia e aqui não podia conseguir: a glória.
Mas o tempo passou, o erro foi reconhecido e 1954 viu o mesmo Municipal, fechado quatro anos antes para a Araújo, ante sua arte curvar-se respeitoso e entusiasmado. A Aida de Verdi, última das 12 récitas de assinatura de gala da Temporada Lírica Internacional deste ano, marcou a estreia no Brasil de uma das maiores cantoras do cenário operístico atual: a brasileira Constantina Araújo. A grande expectativa daquele numeroso público que lotou nosso maior teatro na última sexta-feira foi plenamente correspondida. Constantina é realmente uma artista extraordinária. Não foi sem motivo que o Scala de Milão, o Covent Garden de Londres e a Ópera de Paris consagraram-na como soprano excepcional. Dona de uma voz belíssima, possui Constantina Araújo técnica das mais perfeitas, o que lhe permite dominar seu papel com extrema habilidade. Igualmente admirável é sua presença cênica, quer pela beleza e sinuosidade de seu porte, quer pela naturalidade e autenticidade de sua interpretação. À emoção de seu reaparecimento em pátria, podemos acreditar o ligeiro tremor de sua voz notado no início do espetáculo. Superado o nervosismo inicial porém, foi Constantina Araújo alvo das mais entusiásticas manifestações de apreço por parte do público."
Na edição de 10/10/1954 de O Jornal, o crítico musical Ayres de Andrade assim se expressou:
“(....) Constantina Araújo não decepcionou. Nenhuma cantora lírica brasileira, nestes últimos tempos, à exceção de Bidu Sayão, dispõe de um material artístico tão generoso, tão indicado a proporcionar à sua dona um renome internacional. A cantora possui voz extensa e brilhante: seu timbre cativa pela pureza: sua expressão denota o frescor peculiar ao intérprete ainda não contaminado pelos efeitos de habilidade profissional. Sua presença é atraente: seus gestos e atitudes têm a graça natural e insinuante da juventude. (...)”
Dois meses antes, a revista O Cruzeiro na edição de 07/08/1954 publicou texto intitulado “Constantina Araújo é o maior soprano dramático do mundo”, assinado por Luiz Carlos Barreto, resgatando os principais momentos de sua vitoriosa carreira.
Essa foi a última apresentação de Constantina Araújo, no Brasil.
No ano seguinte (1955), na reabertura do Teatro Municipal de São Paulo após reforma, foi escalada a soprano italiana Antonietta Stella para cantar em “Lo Schiavo” de Carlos Gomes, ópera que integrava o repertório de Constantina desde pelo menos 1947, como se vê no recorte do Departamento Municipal de Cultura apresentando a ópera “Lo Schiavo” no Teatro Municipal de São Paulo, tendo nos papéis de Iberê, Ilara e Américo: Paulo Ansaldi, Constantina Araújo e Assis Pacheco. (Cf. recorte in LOPES, 2015, 48)
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Lo Schiavo, no repertório de Constantina Araújo desde 1947
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Memorável também foi a sua atuação, no papel de Elvira, numa gravação célebre de "Ernani", de Verdi, feita nos estúdios da RAI de Roma, em 1958. Regida por Fernando Previtali, a ópera conta com alguns dos nomes do canto lírico nos anos 50: o tenor Mario del Monaco ("Ernani"), o baixo Cesare Siepi ("Don Silva") e o barítono Mario Sereni (Don Carlo).
"Em 2001, foi lançada uma gravação que Constantina fez em
1958, ao lado de Mario Del Monaco, Cesare Siepi e Mario Sereni,
sob a regência de Fernando Previtali, para uma transmissão radiofônica da RAI, da ópera Ernani de Giuseppe Verdi.
Trata-se de um documento raro que atesta a beleza e a qualidade de seu registro", segundo [LOPES, 2015, 13].
"Em outubro de 1954, Constantina foi convidada a apresentar-se no Rio de Janeiro, onde fez Aída, seu principal papel e o que cantou o maior número de vezes. Em 1954, apesar do sucesso internacional, as portas do Teatro Municipal de São Paulo ainda continuavam fechadas para Constantina Araújo. Numa montagem de Lo Schiavo, de Carlos Gomes, em comemoração ao 4º Centenário da Cidade de São Paulo, o Teatro trouxe Antonietta Stella, soprano italiano, para fazer o principal papel feminino dessa ópera", de acordo com [LOPES, ibidem, ibidem], apesar de que tal ópera integrasse o repertório de Constantina.
Em 1966, em plena atividade, ela veio ao Brasil para se operar de um fibroma (tumor benigno de tecido conjuntivo). "Ela queria fazer a cirurgia na Itália, mas nós sugerimos que ela viesse para cá, onde podíamos cuidar dela", diz a irmã.
Nesse mesmo ano, solteira, acabou falecendo bruscamente, em São Paulo, no dia 4 de março, de embolia pulmonar.
V. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Em 21/05/2012, publiquei no Blog do Braga um artigo intitulado Poder da Ópera de levar a um "sentir coletivo", que enaltecia as qualidades dos fundadores das associações Vídeo Verdi Ópera Club em São Paulo e Amigos da Ópera em Brasília e que tive o prazer de frequentar.
² Soprano dramático é uma classificação para uma voz mais possante e cheia. Soprano spinto também tem uma voz cheia, mas costuma ter uma qualidade amanteigada, por assim dizer. Devido a essa qualidade referida, o spinto está entre o dramático e o lírico. O soprano lírico-spinto é um soprano que, por características anatômicas singulares, desenvolve uma espécie de peso na voz. Seu timbre tem características encorpadas e metálicas ao mesmo tempo.
O termo utilizado pelos alemães para um soprano lírico-spinto é jugendlich Dramatischer, isto é, soprano dramático jovem, em oposição ao hoch Dramatischer.
O soprano lírico-spinto se sente confortável fazendo o papel, por exemplo, de Desdêmona na ópera Otello e Leonora na ópera Il Trovatore, ambas de Verdi; ou Madame Butterfly e Tosca em Puccini; ou ainda Adriana Lecouvreur de Francesco Cilea.
³ O significado original da frase “A vida é curta e a arte é longa” referia-se à necessidade de se aprimorar continuamente para atingir a perfeição, conceito que pode ser adotado em qualquer tipo de arte. Ou seja, a vida é curta demais para a grandeza da Arte.
⁴ Este foi um rumoroso caso dentro da ENM-Escola Nacional de Música, por ocasião de um concurso de composição de 1927, cujo prêmio seria uma viagem à Europa, do "discípulo" diplomado no curso de Composição da ENM que fosse selecionado. No concurso se inscreveram apenas Joanídia Sodré e Antônio Assis Republicano. Joanídia Sodré era professora na Instituição; Assis Republicano, ex-aluno que foi declarado inicialmente vitorioso no concurso por júri integrado por Giovanni Gianetti e Fernand Jouteux, além de outros. Mas Joanídia, sabendo que ele já tinha idade superior à idade-limite prevista no edital ("no máximo, 30 anos"), resolveu ir à barra dos tribunais. Estava claro que nem ela (por ser professora) nem ele (por já ter ultrapassado a idade-limite prevista no edital do concurso) poderiam estar na disputa. Ela não foi exatamente a vencedora do concurso, mas foi a agraciada com a bolsa de estudos na Alemanha por ter ganho a ação judicial por ela interposta, com que obteve a desclassificação de Republicano.
O Maestro Assis Republicano é hoje lamentavelmente um compositor relegado ao esquecimento por nosso povo, apesar de ter composto, naquela altura do concurso e depois, inúmeras obras grandiosas, especialmente a ópera O BANDEIRANTE composta entre 1920-4, que alcançou grande sucesso em São Paulo (1925 e 1927) e no Rio de Janeiro nos anos de 1924 a 1927. O compositor só não está totalmente esquecido porque o seu arranjo do Hino Nacional Brasileiro para bandas foi oficialmente adotado pelo Governo Federal em 1971.
Joanídia Sodré, apesar de seu excelente aperfeiçoamento na Alemanha, como compositora escreveu algumas poucas obras, entre elas a ópera “Casa Forte”, um trio e dois quartetos. Academicamente foi mais bem sucedida: foi a primeira mulher a se tornar diretora da ENM por dois mandatos entre 1945-1954 e, mais tarde, vice-reitora da Universidade do Brasil e sua reitora interina por quase um ano.
Sobre o assunto em questão, recomendo a leitura dos seguintes artigos:
3) Maestro Assis Republicano, por seu filho Esaú de Assis Republicano
⁵ A festa “Fresco Notturno sul Canal Grande”, em Veneza, é tradicional. Durante ela, realizam-se concertos num palco em plena água, rodeado por gôndolas e barcos repletos de pessoas. Em agosto de 1951, acompanhavam os cantores a Orquestra e o Côro do Teatro La Fenice. Constantina Araujo, recém-chegada à Itália, participou de um deles no dia 18/8/1951. Na ocasião, cantou “Ritorna vincitor” de Aída, o terceto do Ato I de "Il Trovatore", em conjunto com Mazziero e Guelfi, e a ária Pace, pace mio Dio, de “La Forza del Destino”.
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Crédito pela foto: Foto Ferruzzi - Venezia
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VI. AGRADECIMENTO
Agradeço à minha amada Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste artigo.
VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AYACHE, Ali Hassan: Crônicas Operísticas: Os ingressos para Samson et Dalila, Blog Ópera & Ballet, 24/01/2012.
FOLHA DE S. PAULO: Cultura FM resgata Constantina Araújo: Emissora de rádio transmite "Ernani", de Verdi, ópera estrelada pela soprano brasileira e regida por Previtali, por Irineu Franco Perpétuo, 20/03/1998.
LOPES, José Carlos Neves: Constantina Araújo, uma soprano brasileira (Álbum de recortes), Cornélio Procópio-PR: UENP - Universidade Estadual do Norte do Paraná, 2015, 190 p.
__________________. Blog dedicado à divulgação da carreira da grande soprano.
__________________. Operando Milagres (entrevista de José Carlos Neves Lopes à Tribuna do Planalto em 21/07/2003)
__________________. Constantina Araújo e a Ópera de Paris (artigo publicado no site Portogente, em 25/02/2004)
__________________. CONSTANTINA ARAÚJO - DE ÓPERA E CONCERTOS (artigo "Constantina Araújo: 6 novas fotos" com anúncio da produção de Obéron, de Weber (1954-55) com Constantina Araújo lançada em CD)
__________________. CONSTANTINA ARAÚJO - ERNANI (artigo anunciando produção de Ernani, de Verdi (1958) com Constantina Araújo lançada em CD)
OPERA CLICK: Ernani - Del Monaco e ahimé... Araujo
WORDPRESS.COM: Constantina Araújo, soprano (1922-1966)
7 comentários:
Estimado Braga, parabéns pelo belo trabalho sobre Constantina Araújo. Nunca ouvira falar dela. Surpreendente, fantástica! Vou ler, estudar com muita atenção o seu artigo e gravar um CD com as gravações do YouTube que você indica, para conhecê-la melhor, apreciar essa exuberante e injustiçada artista brasileira. Abraço do amigo Marcelo Câmara.
Caro professor Braga
Notável levantamento que inclusive traz luz a uma fase da história da ópera no Brasil ! Acho que mereceria uma edição em livro com CD essa sua contribuição sobre a referida cantora.
Saudações.
Cupertino
Bom dia, prezado confrade Francisco Braga. Parabéns pelo belo e bem elaborado texto sobre mais um dos "artistas esquecidos" que formam essa imensa galeria de nomes do Brasil, de Minas e de SJDR. Suas pesquisas nos mostram facetas fantásticas da cultura nacional que ficam submersas nesse imenso mar de nulidades que se tornou a política nacional para a Cultura. E em sua caminhada encontra, mais uma vez, o Fernand Jouteaux pontificando.
Com um fraternal abraço.
Paulo Sousa Lima
Quando escrevia meu artigo "125 Anos da Morte do maior Operista das Américas", publicado no Blog do Braga em 16/09/2021, deparei-me com o brilho e a extensão do registro vocal de CONSTANTINA ARAÚJO (1922-1966). Inicialmente coletei algumas árias mais notáveis que cantou aqui e no exterior para, em seguida, constatar que, antes de mim, outros já haviam denunciado o esquecimento da soprano dramático, como Raphael Cilento e José Carlos Neves Lopes. Teria sido ela uma dessas "personnes maudites", a respeito de quem estamos proibidos de pronunciar até mesmo o nome? Não o entendi assim e decidi fazer uma busca exploratória pela Internet e, à medida que avançava, cada vez mais me fascinava o assunto, apesar da exiguidade de gravações e do lapso na historiografia.
Hoje trago ao leitor do Blog do Braga os primeiros resultados de minha pesquisa, orgulhoso de meus achados, que não foram tantos mas suficientes para me fazerem acreditar na existência e "persistência do AMOR INDIVIDUAL À MÚSICA, QUE FLORESCE NO BRASIL", nas palavras do crítico musical Eurico Nogueira França (1913-1992) que previu que nós, "historiadores do futuro olharíamos com curiosidade e pasmo esta terra".
E ele não se enganou a nosso respeito.
https://bragamusician.blogspot.com/2021/12/constantina-araujo-soprano-dramatico-de.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Agradecemos pela gentileza do envio.
Abraços de Mario e Beth.
Caro Francisco Braga
Feliz e Santo Natal!
Gratidão pela remessa do link
Abraço
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