Tradução do inglês e comentários por Francisco José dos Santos Braga
Dedico este trabalho de tradução e comentários ao Prof. JOSÉ CIMINO por sua trajetória de docente em vários educandários, em especial por ter sido incentivador da arte cênica por onde passou, a começar por São João del-Rei, tendo criado nesta cidade o TUNIS-Teatro Universitário Sanjoanense na década de 60 do século passado. O grupo projetou-se em âmbito estadual e nacional, tendo sido vencedor do Festival Nacional de Teatro Amador com a peça Morte e Vida Severina, no Rio de Janeiro, em 1968. No ano seguinte, venceu o Festival de São Carlos/SP com a mesma peça. Posteriormente, como Diretor da Escola Agrotécnica de Rio Verde/GO (1975-1989), continuou a incentivar a encenação de peças teatrais nas festas juninas. Essa sua passagem por Rio Verde rendeu-lhe ser agraciado com a medalha CONDAF pelo Ministério da Educação por relevantes serviços prestados à Educação Rural e Agrotécnica no Brasil e com o título de cidadão honorário de Rio Verde em 1988. Tradutor: Francisco Braga
As irmãs Brontë, pintadas pelo irmão Patrick Branwell, em 1834. Da esq. p/ dir.: Anne, Emily e Charlotte (entre elas, a sombra de Branwell / Crédito: Wikipedia |
I. INTRODUÇÃO
(...) Somos Três Irmãs é o tema da presente entrevista, uma obra teatral escrita por Blake Morrison, que escolheu usar As Três Irmãs de Tchekhov como um texto-modelo.
Blake Morrison espelhou muitos dos diálogos, traduzindo-os para se adequarem aos detalhes específicos da vida no Curato ¹ de Brontë. Ele manteve a estrutura de As Três Irmãs como um andaime em torno do qual ele constrói a história das Brontës. Morrison funde as Brontës e Tchekhov, biografia e ficção, num artesanato complicado, juntando peças e retalhos de tecido muito diferentes para criar uma peça que extrapola os limites do teatro, porque lida com diferentes camadas que apresentam uma peça de literatura que também é um quebra-cabeça a ser resolvido.
Morrison viu as conexões óbvias entre a vida das irmãs Brontë e a peça de Tchekhov — as três irmãs que se apoiam, um irmão problemático com problemas de bebida, pais mortos, o sentimento de distanciamento do centro, um velho servo que também é considerado parte da família e todos os temas que dizem respeito à cultura, literatura, trabalho, direitos das mulheres, amor e casamento, que são discutidos tanto por Tchekhov quanto pelas Brontës. Em 4 de fevereiro de 2015, visitei Blake Morrison em seu escritório no Goldsmith College, quando ele me concedeu uma entrevista muito generosa. Ele foi muito gentil em responder às minhas muitas perguntas sobre sua peça Somos três Irmãs. O texto a seguir é a transcrição de uma entrevista que Blake Morrison me concedeu, em seu escritório no Goldsmith College da Universidade de Londres, em fevereiro de 2015:
II. ENTREVISTA COM BLAKE MORRISON
FRITSCH: Minha primeira pergunta é sobre sua escolha de gênero (literário). Você é escritor; você escreve poesia, romances e peças teatrais. Por que você escolheu contar essa história em forma de drama?
MORRISON: Boa pergunta. Há uma companhia de teatro em particular com a qual trabalho. Eu não me chamaria de dramaturgo, porque eu só traduzi, transpus e adaptei peças do alemão e do grego antigo e sempre para a mesma companhia de teatro sediada no norte da Inglaterra, não muito longe de Haworth e do Curato de Brontë, em Halifax. E uma amiga minha, que é crítica de teatro do jornal Observer (chama-se Susannah Clapp), tinha visto algumas dessas produções que eu tinha feito, e ela me perguntou se eu já tinha pensado em adaptar As Três Irmãs de Tchekhov, porque “me parece”, ela disse, “que há muita coisa ali que lembra as Brontës”. Bem, eu pensei, essa é uma ideia interessante. Então, sugeri ao diretor de Northern Broadsides e ele concordou que era bem interessante. Então, eu tive que ir, mas achei os obstáculos muito grandes com que começar. Achei que as diferenças entre a peça de Tchekhov e a vida das Brontës eram muito grandes, então, por um tempo, deixei de lado. Então, voltei a ela, porque ele disse, “bem, você sabe que deveríamos encená-la”. E quando voltei a ela, comecei a ver maneiras pelas quais eu poderia ficar verdadeiro, de certa forma fiel a Tchekhov, à estrutura da peça de Tchekhov, mas realmente torná-la a história das Brontës. Então, para mim, nunca foi uma escolha — uma peça, um poema ou um romance... não, não... Sempre foi Tchekhov. Eu poderia usar Tchekhov como referencial para contar a história das Brontës?
FRITSCH: Quão profundo era seu conhecimento sobre a biografia das Brontës quando você começou a escrever a peça? Além disso, quanto tempo você pesquisou para se preparar?
MORRISON: Bem, eu não sou um especialista nas Brontës, nem mesmo tinha, quando comecei, qualquer tipo de expertise. Eu tinha, é claro, lido Jane Eyre, O Morro dos Ventos Uivantes e alguns dos outros romances, mas quando comecei minha pesquisa, usei particularmente o livro de Juliet Barker ², que está logo atrás de você nas prateleiras, porque é o mais detalhado, e eu particularmente gosto de uma coisa que ela enfatiza, eu acho, em sua biografia, na verdade duas — uma é que as Brontës não estavam isoladas do mundo, como Elizabeth Gaskell apresenta em sua biografia ³, mas elas tinham uma vida intelectual em torno de Haworth; e em segundo lugar, a história delas não era apenas sobre tragédia, melancolia e desespero, mas havia alguma leveza nela também. Então, achei o livro dela muito útil, e de fato enviei a ela um rascunho da peça, que ela não gostou muito, porque estava muito longe da verdade da história das Brontës. Depois disso, enviei outros rascunhos e segui alguns conselhos dela, e então ela começou a apreciar, a gostar. Ela também mora perto de Haworth e da companhia de teatro, então se tornou uma apoiadora da peça e do projeto. E também devorei muitas biografias das Brontës, li muitos livros, li todos os romances, li mais sobre Anne, porque não tinha lido muito dela, comecei, suponho, a usar alguns insights das biografias, mas também lendo as cartas e lendo os romances — para pegar falas, frases delas, que eu achava que poderiam ser representativas do que Charlotte, Emily e Anne acreditavam, pensavam e sentiam e usei na peça algumas dessas falas. Então, a resposta breve é, eu cresci naquela parte do mundo, perto das Brontës, eu vivi como se elas vivessem no topo de uma vila, então eu também usei esses paralelos. Eu não era um especialista. Estava apenas interessado, como qualquer um poderia estar, nelas. Bem, fiz a pesquisa, mas não como um acadêmico faria, mas como um escritor criativo, procurando coisas que pudesse usar.
FRITSCH: Minha terceira pergunta é sobre Tchekhov. Quer dizer, por que Tchekhov? Sei que você já disse que As Três Irmãs explora temas que preocupavam as Brontës, mas esse é um imenso desafio, especialmente se você pensar no contexto russo que dá suporte à peça.
MORRISON: Pareceu-me, quando a ideia me foi sugerida pela primeira vez... Isso é extravagante demais, isso é ridículo demais, isso é diferente demais... Mas, claro, é uma peça maravilhosa e a estrutura da peça é um modelo fantástico para usar de qualquer maneira. E, embora seja ambientada na Rússia, há paralelos suficientes com que trabalhar. Então, para dar um exemplo, a fala que todos lembram de As Três Irmãs é "Moscou, Moscou, Moscou". Então, isso me fez pensar qual era a relação das Brontës com Londres. Bem, ambivalente, eu acho. Há uma carta que Charlotte escreveu onde ela conta a seus amigos que estão visitando Londres sobre as coisas maravilhosas e majestosas na capital que você pode ver. E, claro, há aquela famosa viagem que fizeram a Londres para declarar suas identidades aos editores, ou seja, Anne e Charlotte; Emily ficou para trás. E elas tinham, como qualquer pessoa que cresceu na zona rural de Yorkshire, como eu, sempre desconfiamos um pouco da capital — Londres. Então, a atração pela cidade e essa leve resistência que achei interessante explorar na relação com a obra de Tchekhov. E, também, há conexões óbvias: três irmãs, um irmão artista problemático, pais mortos, o sentimento de distanciamento do centro, um velho criado e muita discussão sobre trabalho, casamento e amor. Uma coisa que acho que é comum na obra de Tchekhov e nas Brontës é a posição das mulheres na sociedade. Em Tchekhov, vemos uma classe de mulheres que estão frustradas com a vida que têm, embora seja uma vida privilegiada. As Brontës também estavam, eu acho, frustradas com a posição das mulheres na sociedade, mas, claro, a grande diferença era que elas trabalhavam. Trabalhavam muito. Trabalhavam muito duro para dar conta de seus deveres e de seu trabalho de escrita. Então, embora haja semelhanças na posição das mulheres na sociedade, a maneira como elas abordam o assunto não é a mesma.
FRITSCH: Você mencionou Os Brontës de Juliet Barker na introdução da cópia impressa da peça. E eu pergunto o quão importante foi esse livro para sua escrita? Você já falou sobre isso, mas há algo que gostaria de acrescentar?
MORRISON: Bem, há coisas específicas de que eu me lembre, por exemplo, sobre a questão de quão isoladas estavam as Brontës da sociedade intelectual e do mundo, que é o que Elizabeth Gaskell sugere. Juliet Barker enfatiza como eram ativas em ir às bibliotecas e como eram de fato. Esses são os tipos de detalhes que eu pude usar. Ela também conta a história sobre uma imensa tempestade, uma catástrofe que aconteceu quando as Brontës eram jovens; casas foram destruídas, e assim por diante. Eu percebo que seria uma oportunidade de explicar um problema que tive no terceiro ato, que corresponde na peça de Tchekhov a um incêndio. Localmente, é um desastre e as pessoas estão ajudando, as irmãs estão ajudando, e eu me preocupei em como lidar com isso, porque não havia incêndio equivalente em Haworth. Mas a tempestade, como coletada por Juliet Barker, me ajudou a encontrar um equivalente para o incêndio, a destruição em uma comunidade local, as irmãs ajudando a resolver o problema. Então, achei o livro de Juliet Barker o mais útil que li, e foi de Elizabeth Gaskell que realmente obtive a imagem —, que é muito importante na produção da peça, talvez não tanto no texto —, das três irmãs andando ao redor da mesa, conversando à noite depois que seu pai foi para a cama. Isso realmente veio de Gaskell.
FRITSCH: E quanto às obras literárias das Brontës? Você me disse que leu todos os romances. Eles ajudaram você a construir seu próprio texto ou de que forma os romances afetaram você e sua escrita?
MORRISON: Eles não afetaram a estrutura, mas afetaram as falas. Eu consegui captar, em particular, eu acho, ideias sobre amor, casamento e romance. Há muitas falas nos romances sobre esses assuntos de todos os três escritores, na verdade. Então, eu consegui pegar frases dos romances e usá-las na peça. Eu também peguei frases das cartas, particularmente as de Charlotte, e as coloquei na peça. Eu peguei uma coisa muito comovente que Anne deve... Eu acho que deve ter sido uma carta que Anne escreveu quando ela soube que estava correndo o risco de morrer, estava no fim de sua vida, e ela diz “Eu não tenho medo de morrer, mas há tanta coisa que eu quero fazer, tantos projetos, tantas coisas que eu quero realizar, é por isso que eu não quero morrer.” Foi bem no final da minha peça que escrevi algumas falas para Anne abordando essa questão. Então, dos romances e das cartas, consegui extrair algumas ideias e falas, mas há outra peça de Polly Teale ⁴, e ela fez uma peça sobre as Brontës, nada a ver com Tchekhov, e ela sai da história das Brontës transformando Charlotte em Jane Eyre ⁵, ou Emily se transformando em Cathy ⁶. De repente, os personagens da vida real se tornam personagens fictícios, e esse é o elemento de fantasia da peça de Teale. Eu não queria fazer isso. Fiquei perto de Tchekhov, a peça realista, e não abordei os romances do jeito de Teale. Abordei os romances usando algumas ideias e algumas palavras realmente usadas. Quer dizer, só para dar mais um exemplo, em Jane Eyre há um ponto em que Jane diz a Rochester “você acha que eu sou uma autômata, sem sentimentos?”, e pensei que isso poderia ser usado na peça. E, quando tivemos um ensaio, lá na casa paroquial, estava cheio de fãs, admiradores e entendidos de Brontë, e durante o coquetel de recepção, um deles veio até mim e disse: “Bem, eu gostei, mas a linguagem parece errada, por exemplo, a palavra autômato, ninguém diria autômato no século XIX”. E então eu disse: “Mas está em Jane Eyre”.
FRITSCH: Bem, você está na verdade respondendo a minhas perguntas antecipadamente. Em As Três Irmãs de Chekhov, Moscou é um símbolo do que Olga, Irina e Masha querem e podem nunca alcançar. Em Somos Três Irmãs, você usa Londres em vez de Moscou; você acha que funciona da mesma forma? Você acha que Londres seria a Moscou das Brontës?
MORRISON: Bem, você tem razão, em Tchekhov, elas estavam em Moscou no início, e isso é muito diferente das Brontës, que não tinham ligação anterior com Londres. Mas, seria o mesmo hoje para qualquer um em Yorkshire; a capital ainda tem uma espécie de glamour sobre ele. Embora as Brontës sejam meio puritanas e sua resistência à superficialidade associada à sociedade de Londres, outra parte delas era chamada pela capital. Mais importante, talvez, elas dependiam de Londres se quisessem que suas obras fossem publicadas. Londres era, você sabe, onde os livros eram publicados, e elas tinham ambições de ser escritoras. Então, elas tiveram que ter um relacionamento com Londres para se tornarem escritoras publicadas. E, mais tarde na vida, depois que Anne e Emily morreram, Charlotte passou algum tempo em Londres. Claro, ela não era membro da sociedade londrina, mas conheceu um pouco dela. Mas o ponto-chave foi a viagem, quando Charlotte e Anne decidiram ir e ser honestas com seus editores: “Não somos homens chamados Bell, somos mulheres chamadas Brontë”. Isso é lindamente descrito na biografia de Elizabeth Gaskell, e é muito detalhado em Juliet Barker, falando sobre os trens que pegaram, os lugares onde ficaram, os editores que ficaram chocados, como se apresentaram e, quando voltaram, como Emily ficou revoltada por querer permanecer anônima, e agora os editores sabiam que eram mulheres. Bem, essa cena teve que ser adicionada, não há nada assim em Tchekhov, e pensando no título da peça, é daí que vem Somos Três Irmãs. Senti que tinha que incluir essa cena, porque era uma cena dramática muito boa. A outra coisa, e desculpe, não faz parte da sua pergunta, mas pense nos problemas de transpor Tchekhov: Masha, como a figura de Emily, é casada; Branwell também é casado, então eu tive que mudar isso obviamente. Branwell é interessante, porque ele teve um caso com uma mulher, a Sra. Robinson, e ela se tornou o equivalente a Natasha. As três irmãs (de Tchekhov) resistem a Natasha, tal como as Brontës resistem à Sra. Robinson. O problema que eu tive foi por causa da encenação da minha peça, tudo acontece na casa paroquial; então a viagem para os editores de Londres é relatada, recontada, e uma coisa semelhante acontece com Branwell, porque eu não poderia ter Branwell na casa da Sra. Robinson. Eu tive que colocar a Sra. Robinson na casa paroquial, o que na verdade nunca aconteceu; na realidade ela nunca veio. Claro, era altamente implausível na realidade, mas isso é ficção.
FRITSCH: Quando abordamos a peça, vemos que você usou Tchekhov como uma espécie de andaime para trazer esta versão de As Três Irmãs. Por exemplo, Olga é Charlotte, Masha é Emily e Irina é Anne, então eu gostaria que você comentasse como você fez as conexões considerando suas personalidades. Olga e Charlotte são bem parecidas em muitos aspectos, mas, e Emily e Anne? Como funciona para você fazer essas conexões e estabelecer os paralelos?
MORRISON: Eu acho que há paralelos, mas para mim o que foi muito importante no final foi o fato de que as Brontës deveriam ser como entendemos que as três irmãs Brontë são. Se elas não correspondem exatamente às três irmãs em Tchekhov, que assim seja. O mais importante é que elas sejam reconhecíveis, a irmã mais velha como a controladora, a racional, a guardiã da reputação das outras duas; Emily, um pouco selvagem e tipo solitária; Anne, a caçula, sendo às vezes ressentida por ser a mais nova. Bem, eu não pretendo que a representação das três irmãs seja nova, porque eu já tinha muito trabalho transpondo Tchekhov. Eu não queria fazer nenhuma interpretação radical, como pegar as Brontës e apresentá-las de uma forma muito diferente do que o público espera. Há um livro, que eu li durante minha pesquisa, que diz que Emily deve ter tido problemas semelhantes à anorexia; este é o livro de Catherine Frank. No entanto, eu não estava interessado em nenhuma interpretação radical nova, eu quero que as pessoas sintam como “Ah sim, essa é Charlotte, essa é Emily, essa é Anne, é assim que eu sempre pensei nelas”. Sem dúvida, há paralelos, mas no final, o principal era ser como as três irmãs Brontës como as conhecemos.
FRITSCH: As três irmãs de Tchekhov eram órfãs, mas as Brontës não. Como foi importante esse fato na construção desses personagens em sua peça?
MORRISON: Bem, o começo da peça de Tchekhov inclui nostalgia, lembrando do pai que estava morto; o pai de Brontë, Patrick, viveu mais do que todos os seus filhos, então não há paralelo. Mas, a mãe morreu, e as duas irmãs mais velhas morreram e me parece bem possível que as irmãs Brontë tivessem memórias e tristes memórias de sua mãe e de suas irmãs falecidas, então no começo da minha peça não é a lembrança do pai, é a lembrança da mãe. Em Tchekhov, isso está acontecendo num dia onomástico, e eu o fiz como aniversário - o que é bem diferente para a cultura russa. Elas não eram órfãs, mas perderam a mãe, então encontrei correspondência sobre isso.
FRITSCH: Você também disse na introdução da edição impressa de Somos Três Irmãs que a história de Brontë é geralmente envolta em escuridão e miséria, e que sua peça tenta dispersar a melancolia e destacar a resiliência. E então, isso é apenas alimento para o pensamento, mas você não acha que As Três Irmãs de Tchekhov é tão sombrio quanto o que estamos acostumados a pensar sobre as vidas das Brontë? Quero dizer, por que você escolheu uma peça como essa para funcionar como um texto sombra se sua intenção era deixar entrar um pouco de leveza, como você também disse antes?
MORRISON: Sim! Você poderia dizer que há uma melancolia envolvendo As Três Irmãs, o final é trágico. Mas até Tchekhov considerou a peça como uma tragicomédia e ele a chamou de tragicomédia, e há humor ali, há muito humor. Talvez venha mais dos homens na peça do que das três irmãs (Olga, Irina e Masha). Não foi tão difícil usar essa peça, porque há leveza em Tchekhov, e eu queria que as Brontës tivessem essa mesma leveza também.
Então, acho que foi perfeitamente aceitável usar Tchekhov como comédia e tragédia, pois ambas participaram da vida das Brontës.
FRITSCH: Essa questão é particularmente importante para mim. Minha dissertação de doutorado analisa algumas imagens oferecidas por Somos Três Irmãs, destacando seu potencial simbólico. Em algumas passagens, você fala sobre tipos de flores e compara alguns personagens a flores, e eu gostaria de saber se isso foi intencional ou apenas um produto de sua abordagem poética à escrita.
MORRISON: É interessante, mas eu não tinha pensado muito sobre isso. Claro, como você pode ver, se for a Haworth e ao Curato, além dos pântanos, você se torna muito consciente do mundo natural ao seu redor e da variedade de flores e pássaros diferentes lá. Quando você cresce em um lugar como este, e eu cresci, você se torna muito consciente da natureza, pássaros, flores, vida animal e árvores. As Brontës costumavam caminhar nos pântanos; Emily em especial tinha esse amor apaixonado pela vida natural. Então, eu não acho que tenha racionalmente enfatizado pássaros ou flores; é apenas a paisagem e parcialmente o fato de crescer em um lugar como aquele.
FRITSCH: Li em uma entrevista anterior que você não se considera um dramaturgo. Posso perguntar por quê?
MORRISON: Bem, porque sempre trabalho com um texto existente. Na verdade, acho que isso é o mais próximo que eu chegaria de me chamar de dramaturgo, porque há muita coisa envolvida na criação e invenção de uma peça. Eu tinha o que você chamou de andaime. Eu tinha o andaime da peça original. E isso é o mesmo quando trabalho com Antígona, Greve Sexual de Lisa ⁷ e todas as minhas outras peças. Sempre uso o original para trabalhar na transposição. Acho que Somos Três Irmãs pode ser minha transposição mais radical.
FRITSCH: E quanto ao gênero da peça? Você disse que gosta de realismo e que queria ficar perto do realismo de Tchekhov. Pode falar um pouco sobre isso?
MORRISON: Eu não estava interessado em transpor cenas da ficção. Eu queria que essa história fosse a história da vida das Brontës. Não era uma adaptação de um romance. Eu não estava tentando confundir Charlotte e Jane, Emily e Cathy. Não. Eu estava contando a história da vida real das irmãs. Eu queria que parecesse uma versão realista plausível de suas vidas, e essa é uma tradição com a qual Tchekhov também está trabalhando — Realismo. Então, não é surreal, não é fabulista e não é uma alegoria; é um drama realista.
FRITSCH: O teatro britânico contemporâneo é uma teia complexa. Quero dizer, é composto de propósitos artísticos e estéticos compartilhando o mesmo lugar. Há nomes como Beckett, Pinter, Stoppard, John Osborne e Sarah Kane, que representam uma abordagem diferente do teatro, muito distante do que Tchekhov fez. Qual é a sua opinião sobre esse choque de visões estéticas? Você acha que ainda há espaço para o realismo no palco britânico? E como seu trabalho interage com a cena contemporânea?
MORRISON: Bem, acho que pode ser visto como uma peça antiquada, especialmente porque o assunto que importa é o início do século XIX, o cenário e assim por diante. Por outro lado, você poderia dizer que também é metaficcional ou pós-modernista na medida em que estou trabalhando com textos originais, transpondo-os e reinventando-os. Reinventando e reinterpretando um texto original. Uma das primeiras peças que me impressionou foi Rosencrantz e Guildenstern estão mortos, de Stoppard. A ideia deles saindo da peça de Shakespeare e falando sobre coisas, um personagem secundário sendo trazido para o centro do palco, para mim foi ótimo. É um tipo de jogo, trabalhar com um texto original e tentar fazer algo com esse texto original, sabe, de um contexto diferente. Então, eu não sei como minhas peças realmente se encaixam no drama britânico contemporâneo. Como eu disse, eu nem me considero um dramaturgo, mas um poeta e romancista. Então, eu nunca pensei realmente sobre meu relacionamento com o teatro britânico contemporâneo. Uma coisa que eu deveria acrescentar é — porque eu trabalho com essa companhia de teatro e diretor em particular, Barrie Rutter, que está atualmente ensaiando Rei Lear, e ele tem exigências e preconceitos sobre o que o teatro deve ser. Primeiro de tudo, discurso coloquial autêntico; era importante que as irmãs Brontë soassem como pessoas que viviam no início do século 19 em Yorkshire; elas têm aqueles sotaques; elas usam os idiomas daquela época. Segundo, cenário realista simples; sem vídeos, sem efeitos de iluminação extravagantes e também uma grande importância para a pronúncia correta do inglês. A maneira como as pessoas educadas falavam naquela época; proferindo o texto e a linguagem corretamente. Rutter acredita que muitas escolas de teatro não estão preparando os atores para pronunciar o texto corretamente; as pessoas não pronunciam as falas como deveriam. Então, ele se concentra nisso; ele se concentra na clareza. Se você for a uma produção da Northern Broadsides, você ouve cada palavra. E isso é maravilhoso para o escritor, porque o público vai ouvir cada palavra. Então, eu acho que trabalhar com ele e sua companhia também foi uma influência na minha escrita de peças; saber exatamente o que ele estava esperando e o que ele queria fazer provavelmente influenciou a peça.
(Fim da Entrevista)
* Professor do Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
III. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Termo traduzido por curato; às vezes, por casa paroquial ou presbitério. Patrick Brontë era curador (espécie de vigário) da Igreja da Inglaterra e casou-se com Maria Branwell. O casal gerou seis filhos: Maria, Elizabeth, Charlotte, Anne, Emily e Patrick Branwell Brontë. A família morou em Thornton, Yorkshire, na Inglaterra, e em 1820 mudou-se para Haworth, onde Patrick Brontë (pai) assumiu a função de curador da paróquia local, e foi nestes arredores que o talento literário das três irmãs (Charlotte, Anne e Emily) floresceu. Em 1846 as três irmãs conseguiram editar seu primeiro livro de poemas compartilhado sob pseudônimos masculinos de Currer (Charlotte), Ellis (Emily) e Acton (Anne) Bell.
² The Brontës (1994) by Juliet Barker.
³ A primeira biografia das Brontës, The Life of Charlotte Brontë, foi escrita por Elizabeth Cleghorn Gaskell a pedido de Patrick Branwell Brontë, e publicada em 1857, ajudando a criar o mito de uma família de gênio condenado, vivendo numa solidão dolorosa e romântica. Depois de ter permanecido em Haworth diversas vezes e ter hospedado Charlotte em Plymouth Grove, Manchester, e ter-se tornado sua amiga e confidente, a sra. Gaskell certamente tinha a vantagem e o privilégio de conhecer a família.
⁴ A peça Brontë (2005), por Polly Teale, explora as vidas das três irmãs bem como os personagens que elas criaram.
⁵Jane Eyre: uma autobiografia (1846) é o romance de Charlotte Brontë escrito sob o pseudônimo masculino de Currer Bell foi lançado originalmente em Londres em 3 volumes.
Além de Jane Eyre, Charlotte Brontë escreveu outras novelas: Shirley (1849), Villette (1853) e O Professor (1857).
⁶No Morro dos Ventos Uivantes (1847) de Emily Brontë (Wuthering Heights em inglês), escrito sob o pseudônimo masculino de Ellis Bell, foi lançado originalmente em Londres e publicado como dois volumes de um conjunto de três que incluía Agnes Grey de Anne Brontë sob o pseudônimo masculino de Acton Bell.
No romance de Emily, sua personagem Catherine (apelidada Cathy) era uma criança difícil e espirituosa, uma fonte constante de problemas. Esta descrição revela o caráter obstinado de Cathy, ao mesmo tempo que reflete as expectativas sociais da época, quando se esperava que as crianças, especialmente as meninas, fossem reservadas e respeitosas. A autora, através de Cathy, quebra esse molde, destacando-a como uma personagem forte e impactante no romance, o que, afinal, correspondia ao caráter da própria autora.
A segunda novela de Anne Brontë é The Tenant of Wildfell Hall (A Inquilina de Wildfell Hall em português) (1848) e foi publicada em três volumes com o mesmo pseudônimo masculino de Acton Bell. Esta é bem mais ambiciosa do que a sua primeira, Agnes Grey. O tema principal é o alcoolismo que causa a ruína de sua família. Hoje, essa novela é considerada pela maioria dos críticos como sendo uma das primeiras em defesa do feminismo. Sua personagem central é Helen Graham, que, diante do comportamento violento devido ao alcoolismo do marido Arthur Huntingdon, é obrigada a romper com as convenções sociais que a prenderiam num lar que tinha se tornado um inferno, e o abandona com seu bebê para procurar refúgio secreto numa velha casa de Wildfell Hall. Quando o álcool causou o declínio final do marido, ela retorna ao lar para cuidar dele em total abnegação até sua morte.
⁷Lisa's Sex Strike é uma nova adaptação da comédia de Aristófanes, Lysistrata, escrita especial para a Northern Broadsides Theatre Company por Blake Morrison.
Nesta nova versão, mulheres de duas comunidades unem forças para acabar com a guerra entre seus homens organizando uma greve sexual.
Nesta adaptação, o cenário é uma cidade atual no norte da Inglaterra, as mulheres são brancas e muçulmanas e o seu esforço de paz envolve a ocupação de uma fábrica local de componentes.
IV. BIBLIOGRAFIA
FRITSCH, V. H. de C.: THE BRONTËS ON THE STAGE: AN INTERVIEW WITH BLAKE MORRISON. Organon, Porto Alegre, v. 33, n. 65, p. 10, 2018. DOI: 10.22456/2238-8915.88815. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/organon/article/view/88815. (texto em inglês) Acesso em: 16 dez. 2024.
WIKIPEDIA: verbete Brontë family
___________: verbete Emily Brontë
___________: verbete Charlotte Brontë
___________: verbete Anne Brontë
6 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
BLAKE MORRISON é um poeta, novelista, crítico e dramaturgo inglês. Nasceu em Skipton, Yorkshire em 1950 e graduou-se pela Universidade de Nottingham antes de prosseguir seus estudos de pós-graduação no Canadá e na University College em Londres. No presente trabalho, veremos uma entrevista com esse escritor feita pelo Prof. VALTER HENRIQUE DE CASTRO FRITSCH do Instituto de Letras e Artes da FURG.
Seu entrevistado usa o texto de As Três Irmãs (1900) de Anton Tchekhov como cenário ou pano de fundo para a elaboração da peça Somos Três Irmãs de sua autoria. Suas personagens são três irmãs novelistas: Charlotte, Emily e Anne Brontë que floresceram no fim do primeiro meado do século XIX na região vizinha em que nasceu Morrison, em pleno período vitoriano. Sobre elas têm sido produzidos filmes, séries, óperas e peças teatrais. Vejamos o que o dramaturgo tem a nos dizer sobre essa sua experiência inédita, em minha tradução do inglês para o português.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/12/as-brontes-no-palco-uma-entrevista-com.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Não terminei a leitura e registro: estou gostando dessa "viagem". Ler e, de certa forma, viajar... E a viagem é menos metafórica do que podemos imaginar. Obrigado, Braga. Forte abraço poético.
Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
Obrigado, mestre!
Hugo Napoleão (escritor com destaque para seu livro Fatos da História do Piauí, advogado, ex-ministro das Comunicações do governo Itamar Franco, nascido em Portland (USA) e membro do IHGDF) disse...
Uma história que se passa lá está no Beleza Oculta de Lucinda Riley.
Hugo Napoleão
Adalberto Guimarães Menezes (Ten Cel reformado, tetraneto do Tiradentes, historiador, membro do IHG-MG, sócio correspondente do IHG de São João del-Rei, autor do livro Parque Histórico Nacional Tiradentes e do opúsculo Comenda da Liberdade e Cidadania) disse...
Caro amigo e muito culto Braga,
Suas mensagens são ricamente diversificadas e de grande apelo intelectual.
Infelizmente, pela minha visão e pela minha idade (97 anos), não tenho podido acompanhar, como gostaria, toda a sua produção intelectual.
Aproveitando, desejo a você e sua família um bom Natal e feliz ano novo.
Abraço.
Adalberto
Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga
Apesar do "andaime" do realismo russo para a peça de tema correlato, haveria a diferença entre um mundo em situação pré-revolucionária e o outro de plena consolidação pós-revolucionária.
Parabéns pela divulgação traduzida. Saudações,
Cupertino
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