quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

2010 - ANO CHOPIN > > > Parte 4 > > > "CORAÇÃO DO GÊNIO", por Janusz Ekiert (3ª Parte)


Por Francisco José dos Santos Braga



Nesta Parte 4 da série de ensaios dedicados a 2010 - ANO CHOPIN, trago minha tradução para esta 3ª parte (em continuação) do ensaio intitulado "Coração do Gênio", de autoria do musicólogo polonês Janusz Ekiert, como parte das homenagens que o Blog do Braga presta ao 200º aniversário do nascimento do grande pianista e compositor polonês Fryderyk Chopin.

O Drama

Suas quatro Baladas são as que melhor ilustram isso. Uma vez deixou escapar que tinha sido inspirado pelas baladas de Mickiewicz, mas depois se espalharam informações — de segunda ou terceira mão — de que fora influenciado por "O Świteź", "Switezianka¹" e "Konrad Wallenrod" de Mickiewicz.
As Baladas de Chopin têm realmente caráter narrativo, mas o progresso do drama sonoro ou as mudanças na atmosfera da segunda, terceira e primeira baladas não correspondem ao desenvolvimento dos acontecimentos nas obras de Mickiewicz. Nas Baladas e no finale da Sonata em Si Menor, Chopin transforma, de forma engenhosamente inventiva, a mesmíssima melodia. Quando ela aparece pela segunda ou terceira vez, o seu caráter modifica-se às vezes radicalmente. Aqui calmo e lírico, ali rude e dramático; por um lado, delicadamente dissimulado, por outro lado, brilhante pelo virtuosismo. Liszt e Wagner, e depois outros românticos, adotaram os métodos dele de modificar o Motif e deles fizeram seu princípio. Neles, o Motif ou tema e suas metamorfoses simbolizam o herói e seu mutante estado de espírito, transformações espirituais e novas situações em que se encontrou. Chopin não emprega qualquer roteiro literário; nenhum de seus títulos o sugere. Em suas Baladas e Scherzos cria como que aventuras de pura emoção, de puros estados de espírito, separados de qualquer pessoa ou acontecimentos definidos. E mesmo se compõe sob a influência de recordações pessoais, de lições escolares de história, do heróico passado da Polônia, do convento dos cartuxos em Valldemosa e do mau tempo em Majorca, da leitura de um poema de Heine ou Mickiewicz, mesmo se ele nos deixa supor que sua música nos conta algo, frequentemente o importante fio da meada é inteiramente transformado e irreconhecível. Chopin cria um teatro em que os heróis são só as melodias e harmonias no cenário de um múltiplo movimento e intensidade de sons, de suas interessantes estruturas, de exageros rítmicos e melismas. Ele exibe o encanto do mistério.

Dentre os seus quatro Impromptus, o caráter e a forma daquele composto em tonalidade de Fá Sustenido Maior² diferem dos outros. O desenvolvimento narrativo da frase e o humor reflexivo aproximam-no da balada. Certas seções criam antes uma ilusão de um diálogo do que de um contraste de temas. Deixam impressão não de desenvolvimento de idéias musicais, mas de seu alinhamento de acordo com alguma lógica misteriosa.
Mais distintos são os incidentes e arrebatamentos, experiências pessoais e artísticas, que deixaram seu traço nas suas obras juvenis, embora se façam lembrar também nas obras posteriores.

Chopin visitava com frequência as livrarias de música, sobretudo a de Brzezina, onde avidamente absorvia todas as novidades que vinham do estrangeiro, as composições de pianistas europeus famosos, como Hummel, Field, Moscheles, Weber, e onde se familiarizava com o difundido estilo brilhante. Foi encantado pela ópera. Não perdia uma única representação. Trasladava para o piano os segredos do canto e dos cantores, suas fantasiosas ornamentações das melodias, comparadas a beleza e sedução do bel canto a cordões de pérolas, à renda, a fitas ou a fogos de artifício. Em Paris, adorava o deus da melodia italiana — Bellini. Em alguns Noturnos de Chopin podemos sentir a influência da oração da sacerdotisa dos gauleses, "Casta Diva" da "Norma" de Bellini.

Todos os anos, durante as férias de verão no campo, embebia-se nas singularidades do folclore musical polonês, seus arcaísmos ásperos e roucos, bordões, antigas escalas sacras, "Hohlquint", a quarta lídia, a originalidade do tempo e ritmo.

Varsóvia

Chopin foi educado em Varsóvia em companhia dos meninos de famílias abastadas, que viviam na pensão dirigida por sua mãe. O pai francês, Nicolau Chopin, filho instruído de um camponês de Vosges, proprietário de vinhas, chegou à Polônia para fugir ao serviço militar no exército de Napoleão. Era professor particular de famílias aristocráticas, e então se tornou professor de francês no Liceu Varsóvia, frequentado por seu filho Fryderyk. A mãe de Fryderyk, Justyna Krzyżanowska, administrava a casa da condessa Ludwika Skarbkowa em Żelazowa Wola, nos arredores de Varsóvia. Esta última era prima distante de Justyna, órfã originária de família empobrecida. Nicolau Chopin tinha sido instrutor das filhas da condessa e de seu (próprio filho) Fryderyk. Durante quatro anos, compartilhou a mesa com Justyna Krzyżanowska, até que por fim se casaram. Depois, mudaram-se para Varsóvia.

A juventude de Fryderyk Chopin consistia em estudar composição com Józef Elsner, diretor do Conservatório de Música, a quem amava como pai, responsável tanto pelo rápido progresso no toque do piano, quanto pelos saraus particulares varsovianos e concertos em elegantes salões e pelas férias em propriedades rurais de seus colegas ricos.

Desde criança habituou-se ao prodígio e à admiração. Aos 8 anos de idade fez sua primeira aparição pública, após a qual seu nome virou o assunto da cidade. Os salões varsovianos começaram a disputá-lo e consequentemente dava concertos em palácios de aristocratas varsovianos. Entre "stuccos" e lustres de cristal, marulhava sob seus dedos o estilo brilhante. Aquele estilo envolvia o máximo de sons num mínimo de tempo. Era a moda da época, mas Chopin emprestou-lhe uma poesia sonora muito pessoal. À medida que seus Rondós, suas Variações sobre um tema de "Don Giovanni" de Mozart anunciavam o despertar de uma personalidade, a Grande Polonaise Brilhante, a Grande Valsa Brilhante, o Concerto para piano nº 2 em Fá Menor e o Concerto para piano nº 1 em Mi Menor foram obras em que o jovem gênio encontrou sua própria linguagem.

Esse jovem esguio de estatura um pouco mais que média, inicialmente tímido, posteriormente devia encher a atmosfera dos salões com intermináveis piadas. Via o mundo como uma comédia, animava os chás e bailes varsovianos. Os convidados morriam de rir quando ele demostrava seus "Polichinelos", como chamava as paródias de figuras bem conhecidas. Imitava o semblante e gestos de um professor de inglês ou punha uma peruca vermelha e posava como pastor evangélico. Não gostava de sentimentalismo e chamava as supersensíveis senhoritas de "bumbunzinhos românticos". Com os amigos tomava vinho e jantava, improvisava valsas, mazurkas, escocesas e, inclusive, tocava para dançarem. Escrevia cartas cintilando espírito humorístico e desenhava caricaturas. Durante as férias em Szafarnia, o jovem Chopin de 14 anos editou o "Correio de Szafarnia", parodiando o "Correio Varsoviano". Reagiu à notícia da imposição da censura sobre a imprensa e livros com alguns versos no seu "Correio de Szafarnia":
"Proszę bardzo cenzora/ Nie krępować mi ozora."
Por favor, ó (crítico) censor,/Na minha língua crepe não por.

As lições de história deixaram em Chopin uma visão de um passado poderoso da Polônia, quando era uma "defesa do Cristianismo" no leste, derrotando os turcos e tártaros, os exércitos russos e suecos e a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos; também deixaram uma visão dos grandes tempos do rei Jan III Sobieski, quando ele com seu exército salvou Viena de uma invasão turca e quando a carga dos hussardos poloneses decidiu a sorte do Cristandade. Uma memória brilhante era a morte do príncipe Józef Poniatowski durante a Batalha de Leipzig³, quando os poloneses estavam cobrindo a retirada de Napoleão. Reflexões sobre a sorte da Polônia e patriotismo podem ser ouvidas nas posteriores Polonaises heróicas de Chopin e em alguns Estudos. Sua saudade da Polônia repete-se em algumas Mazurcas, escritas em Majorca e Nohant.

Quase nunca transcrevia melodias populares. Nas Mazurcas romantizou e inventou-as de forma tão realística que elas pareciam um documento fidedigno da zona rural polonesa, tanto a da nobreza, quanto a dos camponeses. Os ares rurais eram bons para ele: tocava nos casamentos de aldeia com os músicos locais, tocava canções religiosas judaicas, andava atrás das jovens camponesas, caçava perdizes e coelhos, colhia cogumelos e morangos silvestres, andava a cavalo e se divertia. Informou a um amigo numa carta: "O cavalo vai onde quer, eu — como macaco no dorso de um urso — fico nele sentado com medo". Em outra ocasião, escreveu: "Meus queridos pais e vocês, lube siostrylle (amadas irmãzinhas)! A saúde me serve, como se fosse um cão adestrado".

O seu senso de observação registrava detalhes de um casamento de aldeia e festival da colheita. Chopin observava como a aldeia se divertia, sobretudo com a ajuda de vodca. Tinha na memória os taberneiros judeus e as discussões das jovens camponesas, a mazurca rural e os oberki⁴. Também se familiarizara com a melancolia de outra dança folclórica, kujawiak. Então adaptou todas essas danças a suas mazurcas. Nos bailes na casa senhorial, até o raiar do sol, ele dançava a mazurca dos nobres: também fogosa, mas mais elegante. As Mazurcas eram uma recordação das férias de verão.

Chopin foi a Berlim. Visitou o diletante de música, violoncelista e compositor, príncipe Antoni Radziwill em sua residência de verão em Antonin perto de Poznan. Escreveu algumas obras para ele, esteve aí duas vezes, deu lições à filha mais jovem do príncipe, Wanda, e admirava sua beleza. Eliza, a filha mais velha, desenhou retratos dele. Tinha 16 anos quando foi com a mãe e as irmãs, Ludwika e Emilka, para a Silésia, para submeter-se a tratamento no spa de Duszniki, que então se chamava Bad Reinerz. Mais tarde passou pela morte da irmã mais jovem, Emilka, e, pela primeira vez, soou ameaçante em seus ouvidos a palavra "tuberculose".

Como prêmio por ter completado seu estudo no conservatório, Chopin foi mandado por seu pai a Viena. Seus dois concertos no teatro no Carinthian Gate, o Kärntnertortheater, e sobretudo as Variações sobre um tema de "Don Giovanni" de Mozart foram um indiscutível sucesso. A platéia o fez voltar muitas vezes, embora no início tivesse penado com nervosismo e bebido água com açúcar para se recuperar-se. Mas não deixou passar a oportunidade de flertar com uma jovem pianista, a gorducha Leopoldina Blahetka. Seus itinerários o levaram também a visitar Kalisz e Breslau⁵, Poznan e Cracóvia, Praga e Dresden, Thorn e Danzig⁶ .

Suas últimas férias polonesas começaram em Poturzyn, a propriedade de seu amigo mais próximo, Tytus Woyciechowski. Chopin interrompeu-as para assistir à estréia operística da talentosa cantora Konstancja Gładkowska, cujos olhos azuis e cabelo louro já notara anteriormente, no concerto dos estudantes do Conservatório. Ela tinha então 18 anos. Seu pai era o burgrave do castelo real de Varsóvia. Seu mestre de canto foi o italiano Carlo Soliva. Ela deve ter lido no Correio Varsoviano: "As obras do senhor Chopin levam, incontestavelmente, o cunho de um grande gênio". Pode ser que tenha ouvido que o diretor Elsner teria anotado no registro de notas ao lado do nome de Chopin: "um gênio musical". Chopin, após meses de silenciosa adoração, tornou-se amigo dela e até a acompanhava quando cantava. Mantiveram em segredo esse amor, pois um jovem sem estabilidade material, mesmo que extremamente talentoso, não podia concorrer com ricos candidatos a marido, com os quais a mãe dela sonhava. Não eram acessíveis a ela os salões aristocráticos, em que Chopin era cercado por multidões de coquetes. Contudo, ela era cortejada por oficiais russos de uma determinada posição social, ajudantes-de-ordens do irmão do czar Grão-Duque Konstanty, que governava a Polônia. Eles vinham ao Conservatório para cantar duetos com ela. Chopin e ela atormentavam-se com ciúmes, passavam por momentos de desespero, indo por altos e baixos do seu amor.

Os pais e amigos noticiaram que Chopin deveria viajar para uma grande metrópole européia, embora não soubessem ainda qual serviria melhor para que seu gênio pudesse se desenvolver e revelar-se. Konstancja participou de seu concerto de despedida no Teatro Nacional. Cantou "Oh, quante lacrime per te versai" (Oh! Quantas lágrimas derramei por você) da ópera "La donna del lago" de Rossini, baseada num poema de Sir Walter Scott, "The lady of the lake". Ela trajava um vestido branco e tinha uma rosa no cabelo.

Chopin compôs os últimos compassos do Concerto em Mi Menor em Żelazowa Wola, onde nasceu. Ali também, com seus pais e duas irmãs , Ludwika e Izabela, passou suas últimas férias polonesas. Também compôs alguns Noturnos. Em sua melodia e ornamentações ouvia-se não só o fascínio do bel canto operístico que se apossava dele. Ouvia-se neles a força da individualidade que transformava aquele estilo italiano.

Em Chopin, o movimento fluente do arabesco é muito mais do que simplesmente um ornamento⁷ elegante ou uma passagem magistral. Tinha seu próprio colorido e caráter e possuía os atributos de uma melodia flutuante de uma excepcional originalidade. (Mesmo um rápido grupeto adicionado a um som mais longo não é um simples melisma ou recurso para exibição do virtuosismo de alguém, mas produz uma qualidade mais elevada e desempenha tarefa definida. Nos Noturnos enfatiza o poder de expressão de um dado som, o clímax do plano musical ou uma mudança na dramaturgia da composição musical.) Este era exatamente o objetivo da extraordinária arte da ornamentação que Monteverdi tinha mostrado em suas óperas, antes de ser destinado a um puro efeito de virtuosismo.

Quando, no Dia dos Finados de 1830, Chopin embarcou na diligência, no coração levava uma fita e no seu dedo um anel — oferecidos por Konstancja. (Dois anos mais tarde sua querida tornou-se esposa de um rico proprietário de terras, chamado Józef Grabowski.) Seis dias após a chegada de Chopin à Viena, eclodiu na Polônia a Insurreição de Novembro.
Os planos artísticos e a eclosão da insurreição dividiram sua vida. Os seus primeiros anos Chopin tinha passado em Varsóvia, os seguintes irá passá-los em Paris. Em Viena permaneceu meio ano, e então decidiu viajar para Paris. A derrota dos insurretos e a repressão dos russos interceptaram-lhe o caminho de volta. Tinha vinte anos quando deixou Varsóvia, para a qual nunca mais devia retornar, e tinha trinta e nove anos quando morria em Paris.


¹ A ninfa do lago Świteź [N.T.]
² Impromptu nº 2 [N.T.]
³ A Batalha das Nações ou Batalha de Leipzig foi uma batalha ocorrida em 1813, na cidade alemã de Leipzig, entre o exército francês de Napoleão Bonaparte e os exércitos de Rússia, Prússia, Áustria e Suécia. A batalha terminou com a derrota de Napoleão. [N.T.]
⁴ Plural de oberek, uma das cinco danças folclóricas nacionais da Polônia. As outras quatro são: krakowiak, kujawiak, polonaise e mazur (sendo mazurek= pequeno mazur, ou em inglês mazurka). [N.T.]
⁵ Nome alemão até 1945. Atualmente, Wrocław. [N.T.]
⁶ Nome alemão até 1945. Atualmente, Gdańsk. [N.T.]
⁷ Ornamento, em música, são desenhos musicais que enfeitam ou embelezam uma melodia ou acorde. Os ornamentos são notas ou grupos de notas acrescentadas pelo compositor a uma melodia. Sua finalidade é adornar as notas reais da melodia. Podem ser: apojaturas, arpejos, glissandos, trinados, floreios, cadências melódicas, portamentos, grupetos, mordentes, etc. [N.T.]
(Continua na Parte 5 desta série)



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

Um comentário:

Sérgio de Vasconcellos-Corrêa (compositor e Membro da Academia Brasileira de Música) disse...

Prezado Braga,

Belo trabalho. Todos os pianistas deste pobre país deveriam ler e matutar sobre o conteúdo deste ensaio, tão bem traduzido pelo amigo que não ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente.
Sérgio de Vasconcellos-Corrêa