As glórias, que vêm tarde, já vêm frias...
Tomás Antônio Gonzaga: Marília de Dirceu, Cap. I, Lira 14
A glória é tanto mais tardia quanto mais duradoura há de ser, porque todo fruto delicioso amadurece lentamente…
Arthur Schopenhauer: Parerga e Paralipomena
“Uma noite, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir telefonaram para cumprimentá-la. A Comunità Europea degli Scrittori-CES tinha-lhe concedido o Prêmio Etna-Taormina. Na carta a Gian-Carlo Vigorelli, o presidente da CES, em que agradeceu essa honraria, ela falava de "um país que amei durante toda a minha vida, e que lançou um raio de sol sobre a minha obra".”
“Por que Akhmátova nunca saiu da União Soviética?”, até então. Responde com as palavras do escritor e crítico emigrado Vladímir Veidlé num artigo publicado na Russian Review de janeiro de 1969: “Sempre senti que, para ela, era necessário ficar, embora eu não soubesse explicar porquê. Mas intuía vagamente que era por causa de sua poesia: de todos os seus poemas não-nascidos, e que só poderiam nascer do contato com o povo que morava naquela terra que, até o fim, ela insistia em chamar de Rússia” (e não de União Soviética).
Anna Akhmátova, então poetisa famosa em sua plena maturidade |
Então, continuando sobre a segunda volta de Akhmátova à Itália:
Naturalmente, a documentação necessária para que ela viajasse demorou muito para ser liberada, o que a fez observar: “O que é que eles estão achando? Que eu não vou mais voltar? Eu, que fiquei aqui quando todo mundo estava indo embora, eu que vivi neste país a minha vida inteira — e que vida! — ia mudar de ideia logo agora?”
Akhmátova queria que Nina Olshiévskaia a acompanhasse, mas a atriz teve um derrame durante um espetáculo em Minsk, e Irina Púnina teve de tomar o seu lugar. A viagem até a Itália, feita de trem, pois o médico a desaconselhara a viajar de avião, foi longa e cansativa. Anna dependia de ajuda para carregar as suas malas, cuidar de seus remédios, apoiá-la quando andava; mas os cartões postais que manda a Náiman — que fora para Minsk, fazer companhia a Nina — dividem-se entre a preocupação com o estado da amiga e a alegria em rever Roma, a Piazza di Spagna, a Fontana di Trevi, o túmulo de Rafael no Pantheon.
Chegou exausta à Sicília, em 10 de dezembro (de 1964), mas se encantou com Taormina cheia de flores, e com o antigo mosteiro dominicano convertido em pousada, onde a instalaram. De lá, no dia 12, mandou a Náiman uma daquelas cartas telegráficas de quem não tem muita paciência para escrever: “Recital de poesia no hotel esta noite. Cada um lê em sua própria língua. Amanhã, entrega solene do prêmio — em Catânia — depois, Roma de novo, e a volta para casa. Parece um sonho. Nem estou tendo dificuldades em escrever cartas. O médico deu-me remédios ótimos e estou me sentindo muito melhor. Como está a minha Nina? O que a reconfortaria?
Por mais difícil que fosse andar, fez questão de visitar o anfiteatro greco-romano no alto da colina de Taormina. E, de volta à Rússia, adorava contar como Irina ficara apavorada com o motorista italiano inteiramente maluco, que as levou de carro até Catânia, falando sem parar e dirigindo como um endemoniado por uma estradinha sinuosa, que serpenteava acima do mar.
A seguir, o autor relata as impressões de um dos que estiveram presentes à premiação de Akhmátova, tendo escrito sobre o comportamento da poetisa na ocasião:
O escritor alemão Hans Werner Richter, que estava presente à cerimônia no Hotel Excelsior, na entrega do prêmio, fez dela uma interessante descrição:
“Ali estavam poetas de todos os países da Europa, jovens e velhos, conservadores e liberais, comunistas e socialistas, fazendo fila para beijar a mão de Anna Akhmátova; e eu juntei-me a eles. Anna estendia a mão a cada um que passava diante dela, inclinava-se, e recebia um cumprimento. Cada um o fazia à maneira de seu país: os italianos com charme, os espanhóis com grandeza, os ingleses com sobriedade. Só os russos conheciam o estilo que Akhmátova esperava. Paravam diante de sua tsarina, ajoelhavam-se e beijavam o chão. Não, não é isso que eles faziam, é claro; mas era como o tivessem feito. Era como se, ao beijar a mão de Akhmátova, eles estivessem beijando a terra russa, a tradição de sua poesia, a magnificência de sua literatura.”
O autor ainda acrescenta a descrição do recital de poesia que se seguiu à premiação:
Werner descreve o recital de poesia que ela deu para duzentas pessoas, "declamando com uma voz que parecia uma tempestade distante" e, depois, o momento em que Aleksandr Tvardóvski, Arsênyi Tarkóvski, o pai do cineasta, e outros leram poemas dedicados a ela:
“Era como a recepção de Ano Novo na corte de uma imperatriz. A tsarina da poesia aceitou com toda a naturalidade as homenagens do corpo diplomático da literatura mundial. Finalmente, ficou cansada e se retirou: uma grande mulher, erguendo-se acima de todos os poetas, uma figura de estatuária. Vendo-a afastar-se, entendi por que a Rússia pôde ser governada por uma tsarina. Vi quando ela recebeu o Prêmio Etna-Taormina das mãos do ministro da Cultura da Itália, e ouvi o discurso com que ela agradeceu, e no qual não havia uma só palavra supérflua. Era o agradecimento de uma tsarina a seus súditos.”
Quais foram as palavras de agradecimento de Akhmátova à comissão organizadora do Prêmio Etna-Taormina para poesia? Apesar de minha exaustiva pesquisa, não descobri o registro dessa fala da poetisa russa na cerimônia de premiação. Possuímos, entretanto, depoimentos de uma italiana presente à cerimônia, mas, de fato, faltam-nos as exatas palavras de Akhmátova na cerimônia. Teria ela declamado um de seus poemas? Teria ela narrado fatos relacionados com a perseguição política movida por Josef Stálin durante seu regime totalitário (1928-1953) a seus opositores (incluídas aqui suspeição de ela própria conspirar contra o regime soviético; a execução de seu marido, o poeta acmeísta Nikolai Gumilióv, em 1921 por seu envolvimento numa conspiração monarquista; e a perseguição, sentenciamento e prisão em gulags do seu filho historiador Liev Gumilióv durante vários períodos de sua vida)? Teria ela composto para a ocasião festiva um poema destinado a falar de sua vida itinerante em busca do ideal poético?
Na falta desses elementos históricos, precisamos recorrer ao que nos resta para revelar a dignidade e luta solitária pelo direito de livre expressão no stalinismo, período de maior opressão do regime soviético, vivenciada por ela no paroxismo da dor.
E, por último, o autor relatou sobre o último compromisso da ida de Akhmátova à Sicília:
A cerimônia se encerrou com a exibição especial do recém-concluído A Paixão segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, que viera a Catânia para apresentá-lo. No dia seguinte, Akhmátova recebeu os jornalistas e escritores, que a visitaram no hotel para cumprimentá-la. E lhes serviu caviar, geleia, pão preto e vodca Stolítchnaia, que trouxera de Leningrado dentro da mala.
Monumento dedicado a Anna Akhmátova erigido no pátio do Departamento de Línguas da Universidade de São Petersburgo |
3 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de levar ao seu conhecimento um trabalho de minha autoria sobre a poetisa russa ANNA AKHMÁTOVA, que esteve semi-concluído em meu arquivos durante longo tempo e que mereceu meus retoques finais para seu aprimoramento, depois que li o livro de LAURO MACHADO COELHO e sua tradução para os poemas da escritora.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2025/01/a-gloria-tardia-de-anna-akhmatova.html
Cordial abraço,
Heitor Garcia de Carvalho (graduado em Pedagogia pela Faculdade Dom Bosco (1968), mestre em Educação UFMG (1982), Ph.D em Educational Technology - Concordia University (1987 Montreal, Canada); MBA Gestão Tecnologia da Informação, Fundação Getúlio Vargas (2004); pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psicologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008); professor associado do CEFET-MG) disse...
Muito obrigado.
Aylê-Salassié Filgueiras Quintão (jornalista, ex-correspondente em Londres, e professor, doutor em História Cultural, membro da Academia de Letras do Brasil, autor do livro "Lanternas Flutuantes") disse...
Linda rememoração, Braga!. No Brasil poucas pessoas conhecem a "Ana de todas as Rússias"; a poetisa ANNA AKHMÁTOVA. Eu mesmo não me lembrava dela mais.
Belo artigo!
Abraços
Aylê-Salassié
Postar um comentário