sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

A glória tardia de ANNA AKHMÁTOVA

Por FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias...
Tomás Antônio Gonzaga: Marília de Dirceu, Cap. I, Lira 14
A glória é tanto mais tardia quanto mais duradoura há de ser, porque todo fruto delicioso amadurece lentamente…
Arthur Schopenhauer: Parerga e Paralipomena  
 
O Jardim do Asilo em Saint Remy (1889) de Vincent van Gogh

 
Anna Andrêievna Gorénko, mais conhecida pelo pseudônimo Anna Akhmátova, nasceu no dia 23 de junho de 1889, em Odessa, na Ucrânia. Uma das mais importantes poetisas do século XX, fez parte do Acmeísmo literário, movimento do modernismo russo, que buscava usar uma linguagem simples, clara e usual, divergindo tanto dos arroubos simbolistas quanto das tendências vanguardistas demolidoras. Conhecida como “Anna de todas as Rússias”, a escritora representou uma voz política e social na luta pela liberdade do país fazendo com que seus versos fossem ecoados como verdadeiros hinos da resistência a Stálin.
 
Anna Andrêievna Akhmátova (✰ Odessa, 23/06/1889 ✞ Moscou, 05/03/1966)

 
Durante os anos de Stálin, a Rússia teve quatro grandes poetas para expressar os sentimentos de seu povo oprimido: Pasternák, Anna Akhmátova, Óssip Mandelstám e Marina Tsvietáieva. Os dois primeiros sobreviveram ao terror, mas Mandelstám morreu em um campo de trabalhos forçados e Tsvietáieva foi levada a se enforcar em 1941. 
"Idade de Prata": assim a historiografia literária soviética designa o período de grande florescimento da poesia que houve no início do século XX, por oposição à Idade de Ouro, que foi a de Pushkin e seus contemporâneos.
Após a morte de Stálin, em 1953, Anna Akhmátova passou a ter o seu trabalho reconhecido internacionalmente, recebendo honrarias, como o prêmio literário “Taormina”, na Itália, em 1964 e um título honorário, em Oxford, no ano de 1965. 
O presente trabalho vai se concentrar na poetisa cujos poemas ecoaram como verdadeiros hinos de resistência a Stálin, não em toda a sua vida e obra, mas apenas no ano de 1964, quando começou finalmente a receber premiações pelo conjunto da obra poética. Nesse ano, dois anos antes de sua morte, ela tornou-se laureada do Prêmio Etna-Taormina. Depois de todos os tormentos em casa, o reconhecimento mundial veio até ela.
[COELHO, 2008, 430-432] nos dá detalhes sobre a premiação:
Uma noite, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir telefonaram para cumprimentá-la. A Comunità Europea degli Scrittori-CES tinha-lhe concedido o Prêmio Etna-Taormina. Na carta a Gian-Carlo Vigorelli, o presidente da CES, em que agradeceu essa honraria, ela falava de "um país que amei durante toda a minha vida, e que lançou um raio de sol sobre a minha obra".
Aqui ela relembrava a viagem de avião que fizeram seu marido Nikolai Gumilióv e ela, em 1912, ao norte da Itália e à Suíça. De fato, ela sempre se sentiu dentro da cultura europeia, tendo comparado a sua viagem de 1912 ao norte da Itália, como "um sonho que você lembra por toda a sua vida". Ela aspirava à Itália, a terra natal das pátrias, constantemente. "Mas nosso país, o governo não a deixou ir e até escreveu poemas amargos sobre isso", disse Tatiana Pozdniákova, chefe do departamento de ciência e educação do Museu Anna Akhmátova na Fountain House, em São Petersburgo. 
[AKHMÁTOVA, 2009, 30] aborda a questão:
Por que Akhmátova nunca saiu da União Soviética?, até então. Responde com as palavras do escritor e crítico emigrado Vladímir Veidlé num artigo publicado na Russian Review de janeiro de 1969: Sempre senti que, para ela, era necessário ficar, embora eu não soubesse explicar porquê. Mas intuía vagamente que era por causa de sua poesia: de todos os seus poemas não-nascidos, e que só poderiam nascer do contato com o povo que morava naquela terra que, até o fim, ela insistia em chamar de Rússia (e não de União Soviética).
Anna Akhmátova, então poetisa famosa em sua plena maturidade

Então, continuando sobre a segunda volta de Akhmátova à Itália:

Naturalmente, a documentação necessária para que ela viajasse demorou muito para ser liberada, o que a fez observar: O que é que eles estão achando? Que eu não vou mais voltar? Eu, que fiquei aqui quando todo mundo estava indo embora, eu que vivi neste país a minha vida inteira  e que vida!  ia mudar de ideia logo agora?
Apesar da demora, a papelada saiu a tempo de poder receber a homenagem em Taormina, na Sicília.
Continua o autor:
Akhmátova queria que Nina Olshiévskaia a acompanhasse, mas a atriz teve um derrame durante um espetáculo em Minsk, e Irina Púnina teve de tomar o seu lugar. A viagem até a Itália, feita de trem, pois o médico a desaconselhara a viajar de avião, foi longa e cansativa. Anna dependia de ajuda para carregar as suas malas, cuidar de seus remédios, apoiá-la quando andava; mas os cartões postais que manda a Náiman  que fora para Minsk, fazer companhia a Nina   dividem-se entre a preocupação com o estado da amiga e a alegria em rever Roma, a Piazza di Spagna, a Fontana di Trevi, o túmulo de Rafael no Pantheon.
Somente no final do Degelo, fase de distensão do governo Kruschtchov, a União dos Escritores da URSS presenteou Akhmátova, enviando-a para a Sicília.
Continua o autor:
Chegou exausta à Sicília, em 10 de dezembro (de 1964), mas se encantou com Taormina cheia de flores, e com o antigo mosteiro dominicano convertido em pousada, onde a instalaram. De lá, no dia 12, mandou a Náiman uma daquelas cartas telegráficas de quem não tem muita paciência para escrever: Recital de poesia no hotel esta noite. Cada um lê em sua própria língua. Amanhã, entrega solene do prêmio  em Catânia  depois, Roma de novo, e a volta para casa. Parece um sonho. Nem estou tendo dificuldades em escrever cartas. O médico deu-me remédios ótimos e estou me sentindo muito melhor. Como está a minha Nina? O que a reconfortaria?
Por mais difícil que fosse andar, fez questão de visitar o anfiteatro greco-romano no alto da colina de Taormina. E, de volta à Rússia, adorava contar como Irina ficara apavorada com o motorista italiano inteiramente maluco, que as levou de carro até Catânia, falando sem parar e dirigindo como um endemoniado por uma estradinha sinuosa, que serpenteava acima do mar.

A seguir, o autor relata as impressões de um dos que estiveram presentes à premiação de Akhmátova, tendo escrito sobre o comportamento da poetisa na ocasião:

O escritor alemão Hans Werner Richter, que estava presente à cerimônia no Hotel Excelsior, na entrega do prêmio, fez dela uma interessante descrição:
Ali estavam poetas de todos os países da Europa, jovens e velhos, conservadores e liberais, comunistas e socialistas, fazendo fila para beijar a mão de Anna Akhmátova; e eu juntei-me a eles. Anna estendia a mão a cada um que passava diante dela, inclinava-se, e recebia um cumprimento. Cada um o fazia à maneira de seu país: os italianos com charme, os espanhóis com grandeza, os ingleses com sobriedade. Só os russos conheciam o estilo que Akhmátova esperava. Paravam diante de sua tsarina, ajoelhavam-se e beijavam o chão. Não, não é isso que eles faziam, é claro; mas era como o tivessem feito. Era como se, ao beijar a mão de Akhmátova, eles estivessem beijando a terra russa, a tradição de sua poesia, a magnificência de sua literatura.

O autor ainda acrescenta a descrição do recital de poesia que se seguiu à premiação:

Werner descreve o recital de poesia que ela deu para duzentas pessoas, "declamando com uma voz que parecia uma tempestade distante" e, depois, o momento em que Aleksandr Tvardóvski, Arsênyi Tarkóvski, o pai do cineasta, e outros leram poemas dedicados a ela:
Era como a recepção de Ano Novo na corte de uma imperatriz. A tsarina da poesia aceitou com toda a naturalidade as homenagens do corpo diplomático da literatura mundial. Finalmente, ficou cansada e se retirou: uma grande mulher, erguendo-se acima de todos os poetas, uma figura de estatuária. Vendo-a afastar-se, entendi por que a Rússia pôde ser governada por uma tsarina. Vi quando ela recebeu o Prêmio Etna-Taormina das mãos do ministro da Cultura da Itália, e ouvi o discurso com que ela agradeceu, e no qual não havia uma só palavra supérflua. Era o agradecimento de uma tsarina a seus súditos.

Quais foram as palavras de agradecimento de Akhmátova à comissão organizadora do Prêmio Etna-Taormina para poesia? Apesar de minha exaustiva pesquisa, não descobri o registro  dessa fala da poetisa russa na cerimônia de premiação. Possuímos, entretanto, depoimentos de uma italiana presente à cerimônia, mas, de fato, faltam-nos as exatas palavras de Akhmátova na cerimônia. Teria ela declamado um de seus poemas? Teria ela narrado fatos relacionados com a perseguição política movida por Josef Stálin  durante seu regime totalitário (1928-1953) a seus opositores (incluídas aqui suspeição  de ela própria conspirar contra o regime soviético; a execução de seu marido, o poeta acmeísta Nikolai Gumilióv, em 1921 por seu envolvimento numa conspiração monarquista; e a perseguição, sentenciamento e prisão em gulags do seu filho historiador Liev Gumilióv durante vários períodos de sua vida)? Teria ela composto para a ocasião festiva um poema destinado a falar de sua vida itinerante em busca do ideal poético?

Na falta desses elementos históricos, precisamos recorrer ao que nos resta para revelar a dignidade e luta solitária pelo direito de livre expressão no stalinismo, período de maior opressão do regime soviético, vivenciada por ela no paroxismo da dor.

E, por último, o autor relatou sobre o último compromisso da ida de Akhmátova à Sicília:

A cerimônia se encerrou com a exibição especial do recém-concluído A Paixão segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, que viera a Catânia para apresentá-lo. No dia seguinte, Akhmátova recebeu os jornalistas e escritores, que a visitaram no hotel para cumprimentá-la. E lhes serviu caviar, geleia, pão preto e vodca Stolítchnaia, que trouxera de Leningrado dentro da mala.
 
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Sob o título "Monumento a Anna Akhmátova inaugurado na Sicília", a agência de notícias russa TASS anunciou, numa transmissão televisiva diretamente de Taormina, em 16/07/2015, a inauguração de um monumento à poetisa russa em uma cerimônia oficial ocorrida em 11/07/2015 que contou com a presença de representantes do governo local, diplomatas, jornalistas e estudantes.
Monumentos à poetisa já tinham sido erguidos anteriormente em Moscou, São Petersburgo, Bezhetsk e Odessa. Chegou a vez de Taormina prestar a sua homenagem à "Anna de todas as Rússias". 

Monumento dedicado a Anna Akhmátova erigido no pátio do Departamento de Línguas da Universidade de São Petersburgo


O busto de Anna Akhmátova está instalado na aconchegante praça da Fundação Cultural Giuseppe Mazzullo, ele próprio, importante escultor italiano. A "Grã-duquesa da poesia russa" está cercada pelas obras do escultor italiano, que parecem assemelhar-se à própria poetisa em diferentes etapas de sua vida, e por desenhos de Akhmátova por Amedeo Modigliani (1884-1920).
Em seu discurso de boas-vindas, o prefeito de Taormina, Eligio Giardine, parabenizou "a grande poetisa russa por seu retorno à Sicília", informando que antes homenageou a poetisa russa denominando uma das vias de Taormina com o seu nome. Segundo ele, Anna Akhmátova  pela terceira vez comparecia a essa municipalidade. Em seu discurso, relembrou as duas ocasiões em que ela presencialmente visitou a Itália: primeiro, quando ela, jovem e exultante como estava, na ocasião em que viajou pela primeira vez pela Itália com seu marido poetaa Nikolai Gumilióv em 1912; segundo, quando, já uma poetisa famosa, foi recebida na Sicília em 1964 e até chamada de "Grã-duquesa da poesia russa". E completa: é sua terceira viagem à Itália agora em bronze, em uma imagem criada pelo escultor ANDREY KLYKOV (✰1966 ✞ 09/04/2024).
 
 
Busto de Anna Akhmátova sempre de xale preto sobre os ombros




Busto de Anna Akhmátova na praça da Fundação Cultural Giuseppe Mazzullo, Taormina


 

II. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AKHMÁTOVA, Anna Andrêievna: Antologia Poética, Porto Alegre: L&PM, seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho, 2009, 208 p.
 
COELHO, Lauro Machado: ANNA, a voz da Rússia: vida e obra de Anna Akhmátova, São Paulo: Algol Editora, 2008, 483 p. + 1 CD de Anna Akhmátova recitando seus próprios versos.


3 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de levar ao seu conhecimento um trabalho de minha autoria sobre a poetisa russa ANNA AKHMÁTOVA, que esteve semi-concluído em meu arquivos durante longo tempo e que mereceu meus retoques finais para seu aprimoramento, depois que li o livro de LAURO MACHADO COELHO e sua tradução para os poemas da escritora.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2025/01/a-gloria-tardia-de-anna-akhmatova.html

Cordial abraço,

Francisco José dos Santos Braga disse...

Heitor Garcia de Carvalho (graduado em Pedagogia pela Faculdade Dom Bosco (1968), mestre em Educação UFMG (1982), Ph.D em Educational Technology - Concordia University (1987 Montreal, Canada); MBA Gestão Tecnologia da Informação, Fundação Getúlio Vargas (2004); pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psicologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008); professor associado do CEFET-MG) disse...
Muito obrigado.

Francisco José dos Santos Braga disse...

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão (jornalista, ex-correspondente em Londres, e professor, doutor em História Cultural, membro da Academia de Letras do Brasil, autor do livro "Lanternas Flutuantes") disse...
Linda rememoração, Braga!. No Brasil poucas pessoas conhecem a "Ana de todas as Rússias"; a poetisa ANNA AKHMÁTOVA. Eu mesmo não me lembrava dela mais.

Belo artigo!
Abraços
Aylê-Salassié