Dedico esta crônica ao ilustre tradutor dos principais poemas de Anna Akhmátova, além de jornalista e crítico musical, falecido aos 74 anos de idade, em 31 de janeiro de 2018, portanto há exatos 7 anos: Lauro Machado Coelho.
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias...
Tomás Antônio Gonzaga: Marília de Dirceu, Cap. I, Lira 14
A glória é tanto mais tardia quanto mais duradoura há de ser, porque todo fruto delicioso amadurece lentamente…
Arthur Schopenhauer: Parerga e Paralipomena
“Uma noite, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir telefonaram para cumprimentá-la. A Comunità Europea degli Scrittori-CES tinha-lhe concedido o Prêmio Etna-Taormina. Na carta a Gian-Carlo Vigorelli, o presidente da CES, em que agradeceu essa honraria, ela falava de "um país que amei durante toda a minha vida, e que lançou um raio de sol sobre a minha obra"”, referindo-se à Itália.
“Por que Akhmátova nunca saiu da União Soviética?”, até então. Responde com as palavras do escritor e crítico emigrado Vladímir Veidlé num artigo publicado na Russian Review de janeiro de 1969: “Sempre senti que, para ela, era necessário ficar, embora eu não soubesse explicar porquê. Mas intuía vagamente que era por causa de sua poesia: de todos os seus poemas não-nascidos, e que só poderiam nascer do contato com o povo que morava naquela terra que, até o fim, ela insistia em chamar de Rússia” (e não de União Soviética).
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Anna Akhmátova, então poetisa famosa em sua plena maturidade |
Assim retoma o autor sobre a segunda volta de Akhmátova à Itália:
Naturalmente, a documentação necessária para que ela viajasse demorou muito para ser liberada, o que a fez observar: “O que é que eles estão achando? Que eu não vou mais voltar? Eu, que fiquei aqui quando todo mundo estava indo embora, eu que vivi neste país a minha vida inteira — e que vida! — ia mudar de ideia logo agora?”
Akhmátova queria que Nina Olshiévskaia a acompanhasse, mas a atriz teve um derrame durante um espetáculo em Minsk, e Irina Púnina teve de tomar o seu lugar. A viagem até a Itália, feita de trem, pois o médico a desaconselhara a viajar de avião, foi longa e cansativa. Anna dependia de ajuda para carregar as suas malas, cuidar de seus remédios, apoiá-la quando andava; mas os cartões postais que manda a Náiman — que fora para Minsk, fazer companhia a Nina — dividem-se entre a preocupação com o estado da amiga e a alegria em rever Roma, a Piazza di Spagna, a Fontana di Trevi, o túmulo de Rafael no Pantheon.
Chegou exausta à Sicília, em 10 de dezembro (de 1964), mas se encantou com Taormina cheia de flores, e com o antigo mosteiro dominicano convertido em pousada, onde a instalaram. De lá, no dia 12, mandou a Náiman uma daquelas cartas telegráficas de quem não tem muita paciência para escrever: “Recital de poesia no hotel esta noite. Cada um lê em sua própria língua. Amanhã, entrega solene do prêmio — em Catânia — depois, Roma de novo, e a volta para casa. Parece um sonho. Nem estou tendo dificuldades em escrever cartas. O médico deu-me remédios ótimos e estou me sentindo muito melhor. Como está a minha Nina? O que a reconfortaria?
Por mais difícil que fosse andar, fez questão de visitar o anfiteatro greco-romano no alto da colina de Taormina. E, de volta à Rússia, adorava contar como Irina ficara apavorada com o motorista italiano inteiramente maluco, que as levou de carro até Catânia, falando sem parar e dirigindo como um endemoniado por uma estradinha sinuosa, que serpenteava acima do mar.
A seguir, o autor relata as impressões de um dos que estiveram presentes à premiação de Akhmátova, tendo escrito sobre o comportamento da poetisa na ocasião:
O escritor alemão Hans Werner Richter, que estava presente à cerimônia no Hotel Excelsior, na entrega do prêmio, fez dela uma interessante descrição:
“Ali estavam poetas de todos os países da Europa, jovens e velhos, conservadores e liberais, comunistas e socialistas, fazendo fila para beijar a mão de Anna Akhmátova; e eu juntei-me a eles. Anna estendia a mão a cada um que passava diante dela, inclinava-se, e recebia um cumprimento. Cada um o fazia à maneira de seu país: os italianos com charme, os espanhóis com grandeza, os ingleses com sobriedade. Só os russos conheciam o estilo que Akhmátova esperava. Paravam diante de sua tsarina, ajoelhavam-se e beijavam o chão. Não, não é isso que eles faziam, é claro; mas era como o tivessem feito. Era como se, ao beijar a mão de Akhmátova, eles estivessem beijando a terra russa, a tradição de sua poesia, a magnificência de sua literatura.”
O autor ainda acrescenta a descrição do recital de poesia que se seguiu à premiação:
Werner descreve o recital de poesia que ela deu para duzentas pessoas, "declamando com uma voz que parecia uma tempestade distante" e, depois, o momento em que Aleksandr Tvardóvski, Arsênyi Tarkóvski, o pai do cineasta, e outros leram poemas dedicados a ela:
“Era como a recepção de Ano Novo na corte de uma imperatriz. A tsarina da poesia aceitou com toda a naturalidade as homenagens do corpo diplomático da literatura mundial. Finalmente, ficou cansada e se retirou: uma grande mulher, erguendo-se acima de todos os poetas, uma figura de estatuária. Vendo-a afastar-se, entendi por que a Rússia pôde ser governada por uma tsarina. Vi quando ela recebeu o Prêmio Etna-Taormina das mãos do ministro da Cultura da Itália, e ouvi o discurso com que ela agradeceu, e no qual não havia uma só palavra supérflua. Era o agradecimento de uma tsarina a seus súditos.”
Quais foram as palavras de agradecimento de Akhmátova à comissão organizadora do Prêmio Etna-Taormina para poesia? Apesar de minha exaustiva pesquisa, não descobri o registro dessa fala da poetisa russa na cerimônia de premiação. Possuímos, entretanto, depoimentos de uma italiana presente à cerimônia, mas, de fato, faltam-nos as exatas palavras de Akhmátova na cerimônia. Teria ela declamado um de seus poemas? Teria ela narrado fatos relacionados com a perseguição política movida por Josef Stálin durante seu regime totalitário (1928-1953) a seus opositores (incluídas aqui suspeição de ela própria conspirar contra o regime soviético; a execução de seu marido, o poeta acmeísta Nikolái Gumilióv, em 1921 por seu envolvimento numa conspiração monarquista; e a perseguição, sentenciamento e prisão em gulags do seu filho historiador e antropólogo Liev Gumilióv durante vários períodos de sua vida, acusado por suposto envolvimento em uma conspiração contra os bolcheviques)? Teria ela composto para a ocasião festiva um poema destinado a falar de sua vida itinerante em busca do ideal poético?
Na falta desses elementos históricos, precisamos recorrer ao que nos resta para revelar a dignidade e luta solitária pelo direito de livre expressão no stalinismo, período de maior opressão do regime soviético, vivenciada por ela no paroxismo da dor.
E, por último, o autor relatou sobre o último compromisso da ida de Akhmátova à Sicília:
A cerimônia se encerrou com a exibição especial do recém-concluído A Paixão segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, que viera a Catânia para apresentá-lo. No dia seguinte, Akhmátova recebeu os jornalistas e escritores, que a visitaram no hotel para cumprimentá-la. E lhes serviu caviar, geleia, pão preto e vodca Stolítchnaia, que trouxera de Leningrado dentro da mala.
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Monumento dedicado a Anna Akhmátova erigido no pátio do Departamento de Línguas da Universidade de São Petersburgo |
5 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de levar ao seu conhecimento um trabalho de minha autoria sobre a poetisa russa ANNA AKHMÁTOVA, que esteve semi-concluído em meu arquivos durante longo tempo e que mereceu meus retoques finais para seu aprimoramento, depois que li o livro de LAURO MACHADO COELHO e sua tradução para os poemas da escritora.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2025/01/a-gloria-tardia-de-anna-akhmatova.html
Cordial abraço,
Aylê-Salassié Filgueiras Quintão (jornalista, ex-correspondente em Londres, e professor, doutor em História Cultural, membro da Academia de Letras do Brasil, autor do livro "Lanternas Flutuantes") disse...
Linda rememoração, Braga!. No Brasil poucas pessoas conhecem a "Ana de todas as Rússias"; a poetisa ANNA AKHMÁTOVA. Eu mesmo não me lembrava dela mais.
Belo artigo!
Abraços
Aylê-Salassié
Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga,
Muito grato pela oportunidade da leitura de matéria reveladora sobre a poetisa Anna Akhmátova, glória da arte russa durante a dramática resistência à tirania stalinista.
Saudações,
Cupertino
Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...
Muito obrigado, Braga.
Você, como sempre, nos brindando com um presente raro..
E assim vou conhecer ANNA AKHMÁTOVA. Seu trabalho sobre a ilustre poetisa russa dá o tom de sua dedicação à divulgação de cultura. E adianto, sinceramente, não conheço, ainda, os trabalhos dela...
Forte abraço poético de
GERALDO REIS
Caro amigo Braga
Agradecemos pelo envio de mais essa interessante postagem, que poderia se resumir na expressão da Poetisa Marina Tsvietáieva, conforme consta do primeiro parágrafo da presente Crônica, de sua autoria:
“Anna Akhmátova representou uma voz política e social na luta pela liberdade do país fazendo com que seus versos fossem ecoados como verdadeiros hinos da resistência a Stálin.”
Parabéns pela postagem!
Abraços, meus e de Beth.
Mario P. Cupello
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